29/09/2005


Fotopoema 36. Augusto Mota Posted by Picasa

as estrelas-do-mar

Que mares e que marés inundam as praias do nosso viver? São os braços que, cansados, se esforçam por nadar por entre as vagas de uma melodia celta a caminho da harpa das ilusões. São os dedos que, cansados, iludem o timbre das cordas num desenho novo dos sons. São os olhos que, cansados, já não lêem a partitura escrita nas pautas do vento. São os pés que, cansados, já não percorrem os trajectos do corpo.
Ouvimos, agora, os sons do vento leste como se uma harpa imitasse os longos e prolongados murmúrios das marés em noite de lua nova. E esperamos que o auge da maré-cheia lance à praia as estrelas-do-mar ( Astropectum irregulares ) que enfeitarão o firmamento de nossas mãos e as pautas de todas as melodias. Com elas desafiaremos os esforços dos mares e das marés. Com elas em nossas mãos saberemos ler as partituras do vento e iluminaremos os trajectos do corpo, nadando entre vagas e ilusões.
Depois de cumprido o ritual de tal viver, as estrelas-do-mar serão, de novo, cadentes, para riscar a noite em direcção ao mar alto, onde se apagarão para repetir o ciclo das marés e do corpo.
Augusto Mota, in "Geografia do Prazer", 2000 ( inédito )

casa caiada, in www.sitiodoshaikais.blog.sapo.pt Posted by Picasa

.

era um minúsculo ponto preto
na parede caiada;

era meu irmão insecto
que de mim não sabia;

era minha alma cheia de alegria
porque nele reparava:

era a tarde suspensa, deslumbrada,
a ver o que dali saía;

era meu velho, solitário coração
que finalmente encontrava companhia.
António Simões, inédito, in "poemas com insectos dentro".

quietude

insecto
quieto,
onde me projecto,
inquieto
a mim
agora quieto,
por fim.
António Simões, inédito, in "poemas com insectos dentro".

libélula Posted by Picasa

Em Silves, Onde as Fontes

Agora, uma flor sai da fenda
mais alta da muralha e muda a cor
da pedra à volta, dá-lhe novo brilho
como se o tempo fosse um arco vivo.
Húmido canto chega deste rio
que foi lugar de festa e de viagem:
ainda se ouve um canto nesta margem,
um alaúde, um baile, a dança leve.
Chegaram os cruzados e o silêncio
tocou o fundo da água da cisterna.
Dispersaram-se os sons do alaúde
nos jardins do alcácer, onde as fontes
acompanhavam vozes e corriam
para um tempo de terra e poesia.
E alguém chorou a sorte destes campos
que, um pouco mais a sul, vêem o mar.
Alguém deixou a marca para sempre
de um perfume mais branco que as partidas.
Guardam flores de sangue alguns caminhos.
Os guerreiros passeiam sob as naves
Chega do mar um vento luminoso
que toca a pedra ruiva do castelo:
traz o gosto da amêndoa, da laranja,
das rosas bravas, soltas sobre a terra.
O Garb Al-Andaluz mostra as ruínas:
nos poços, nas cisternas de arenito
corre, ainda, o perfume dos vestidos,
esvoaçando leves sobre os corpos.
Quem dera ouvir, agora, Ibn Ammar
a ciciar os versos da paixão!
Quem dera, em Silves, ver Al-Muthamid
a oferecer-lhe a rosa do perdão!
Quando chega o perfume incandescente
dos laranjais em flor, canela e tâmara,
ouvem-se versos soltos, prolongados
pelas margens do Arade, o mesmo rio.
De Abu-Afan não falam as memórias:
já os candis se apagam sobre o mar.
Firmino Mendes, in "A Terra e os Dias",
Pedra Formosa, 2000.

Herança Árabe... Catarina Posted by Picasa

Silves, A Capital da Palavra Ardente, Dois Dias Depois

Al Mu'tamid traçara-lhe o destino, a rota do Sul,
as cores fortes, a fronte clara, a herança mourisca.
Dois dias depois, uma a uma, guardo todas as suas pétalas,
os seus ramos altos, as suas reminiscências odorosas,
os seus átrios de luz e poesia.
Nos seus rios, correm lendas antigas, desdobradas
em murmúrios ávidos, incendiados junto às laranjeiras
abertas, em suas copas de magia.
Dois dias depois, recordo a sua igreja, o seu castelo,
a sua terra vermelha,
o Foral que lhe concedeu a liberdade.
No seu hálito fulvo e branco, há cálices, redomas
onde a palavra arde e o silêncio urge.
Nas ruas, há relatos, centelhas, clamor, memórias claras,
fruto e seiva que se desprende das árvores e das libélulas
inebriadas, sobre espáduas de harmonia.
Dois dias depois, sobre clepsidras antigas, recordo
a sua candura, as suas gentes, as fontes e os dias floridos,
acesos, sobre candelabros flutuantes,
junto aos ramos de perfume e os beirais
onde os pássaros debicam, na frescura da noite,
seu corpo azul de alegria.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, 26 Abril 2005

28/09/2005


Fotopoema 33. Augusto Mota Posted by Picasa

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade

Uma pequenina luz


Posted by Picasa
Uma pequena luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a litle ligth
uma picola... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente a sopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não alumia apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia.
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre:
brilha.
Uma pequena luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.
Jorge de Sena

De mãos dadas. Fotografia de Duarte Belo Posted by Picasa

MENINO DO CAIS

Menino triste
da borda do cais
dá-me a tua mão.
Voemos como pássaros
ao encontro de Zeus.
No Olimpo, onde as crianças
mandam mais do que deuses
ordenarás assembleia geral.
Ponto único:
Paz e felicidade.

O Olimpo reunirá.
Os deuses dos ares e dos mares
agitar-se-ão.
Os deuses da guerra hão-de guerrear.
Finalmente os deuses da Paz ganharão.
Tu e eu, de mãos dadas,
desceremos como pombas,
poisaremos na borda do cais.
Então, tu sorrirás.
Glória Maria Marreiros, inédito

27/09/2005

é dentro da maçã
que a borboleta
sonha as asas
Carlos Alberto SilvaPosted by Picasa

26/09/2005

Lamento


Legenda Íntima 55. Augusto Mota Posted by Picasa
Para a Fernanda Sal Monteiro
Que metáfora, como onda solitária, varre o areal da madrugada, mesmo antes de as primeiras pegadas anunciarem as viagens para sul?

Que onda solitária, como metáfora, varre o areal da memória, mesmo antes de as primeiras viagens para sul anunciarem as primeiras pegadas?

Tristes lamentações estas de fim de Verão, quando as viagens já são sem retorno e não deixam na areia da vazante rasto que nos possa ensinar o caminho de regresso a casa!

Assim, mais vale rumar a norte e esperar que os ventos propícios nos refresquem os olhos, enquanto as águas mais frias nos avivam a memória de tudo o que ainda há para fazer: seja adormecer ao som da lua nova, à beira-mar, seja acordar ao som dos primeiros raios de sol, à beira das fontes que alimentam o rio, como se alimentassem a vida.

Vamos, pois, lavar as mãos nesta corrente fria que nos atravessa a garganta e, com elas ainda húmidas, escrever no areal da memória a metáfora solitária da despedida.

Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000

Azares

- Lá vai... lá vai...
Panha o cesto, pá!
- Na dou dade... vem de través!...
- É como a porca da vida
sempre, sempre 'travessada
q'ond'a gente a quer comprida.
c'um rai!
Panha o cesto. Panha o pêxe.
-Já dou dade, mé pai!
Glória Maria Marreiros, in "Algarve, a gente e o mar"

Labareda. Linóleo 14,5X10,5 cm
Augusto Mota, 1963 Posted by Picasa
Mais uma vez,
a explosão do sol borrifa tons avermelhados,
pela paisagem,
desde o Mar.
A clarabóia estilhaça-se em luz vibrante
e o pedaço de vidro ri com reflexos atrevidos,
no Chão.
O globo do campanário despede fulgores,
para o Azul.
A proa do barco ardeu
e os montes de sal são fogueiras.
Tudo crepita na labareda do Sol!
André Ala Reis

Barco-lergo. Linóleo 14X10cm
Augusto Mota. 1965Posted by Picasa
Como se os corpos flagelados dos navios
fossem a minha própria carne.
aqui me tens exacto, real e nu -
-apenas com um heroismo averbado à margem
da minha biografia:
"Salvou a lua de morrer afogada num espelho".
Aqui me tens, adjacente ao teu corpo e ao teu tempo,
neste estaleiro antigo onde o sonho e a angústia
dos homens geram barcos
sob a vista de um mar que se masturba.
E, afinal, é só uma a verdade que quero desfolhar
sobre o intrínseco de tua adolescência:
Aquela que esqueceu aos próprios deuses
não obstante os nós mnemónicos que deram no pescoço
dos cisnes.
Eis porque das profundezas de mim é que te surjo
a contemplar-te. E exulto - exulto porque sinto
que é o infinito quem ouga nos teus olhos.
Francisco Arcos, in Contacto - suplemento cultural de O ALMONDA

VITÓRIA - desenho - 21X24 cm.
Augusto Mota. 1960
( Ciclo Poético Adolescentes Guerreiros ) Posted by Picasa

Tirem-me os Deuses

Tirem-me os deuses
em seu arbítrio
superior e urdido às escondidas
o Amor, glória e riqueza.
Tirem, mas deixem-me,
deixem-me apenas
a consciência lúcida e solene
das coisas e dos seres.
Pouco me importa
amor ou glória,
a riqueza é um metal, a glória é um eco
e o amor uma sombra.
Mas a concisa
atenção dada
às formas e às maneiras dos objectos
tem abrigo seguro.
Seus fundamentos
são todo o mundo,
seu amor é o plácido Universo,
sua riqueza a vida.
A sua glória
é a suprema
certeza da solene e clara posse
das formas dos objectos.
O resto passa,
e teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
e inútil do Universo.
Essa a si basta,
nada deseja
salvo o orgulho de ver sempre claro
até deixar de ver.
Ricardo Reis, in CD "Dizer Pessoa"

CONQUISTA - desenho - 21X26cm
Augusto Mota. 1960.
( Ciclo Poético Adolescentes Guerreiros ) Posted by Picasa

25/09/2005

À Espera dos Bárbaros

O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão-de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergue tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhes
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois consules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos,
De ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloquências.
Por que subitamente esta quietude?
( Que seriedade nas fisionomias! )
Porque tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
Kostantinos Kavafis, in infinitomutante.blogspot.com

Fotopoema 35. Augusto Mota Posted by Picasa

que sabemos nós das dores de cada um?

para o Augusto Mota

Que sabemos nós das dores de cada um?
sabemos dum rio dum pomar duma flor
dum pássaro morto na primavera
e tudo isso escrevemos num poema
- mas das dores de cada um que sabemos nós?
dos homens anónimos que viajam na solidão dos eléctricos
dos meninos que amanhecem mortos
junto aos muros das grandes cidades que sabemos nós?
sabemos acaso como doem as suas lágrimas no silêncio
quando a tarde é uma pedra de melancolia
caindo sobre os ombros?
ah tudo isso escrevemos num poema
mas de tudo isso que sabemos nós?
quando as luzes se acendem na cidade
e a noite é uma lágrima
que sabemos nós do desespero das mãos vazias
dos olhos que não vêem mais que a noite
para além duma janela sem cortinas?
ah tudo isso escrevemos num poema
mas dos que ficam para contar aos que vierem
das suas dores na madrugada
e da esperança que a noite trará um dia às suas mãos vazias
e aos seus olhos que não vêem mais do que a noite
para além duma janela aberta sem cortinas que sabemos nós?
ah tudo isso escrevemos num poema.
Luis Pignatelli, in "Obra Poética - 1953-1993", editora & etc.

24/09/2005


Da Amizade.
Fotografia de Fernanda Sal Monteiro Posted by Picasa

Encontro a 90 graus

Um traço mais outro traço
encontraram-se.

"E depois,
como ficaram os dois,
que fizeram de concreto?"

Perguntem
ao ângulo recto!
António Simões, in "A Festa das Letras"

LIBERDADE - desenho - 21cmX20 cm.
Augusto Mota, 1960.
( Ciclo poético Adolescentes guerreiros ) Posted by Picasa

A Água, a Flor e o Lume

A água, a flor e o lume, as variações do hipocampo,
a Estela Guedes falando de Herberto Helder.
Estávamos em Silves, a noite era fria, o vento lúcido,
ao longe, um incêndio.
A água era a ânsia, a flor, onde os meteoros passavam
e se acolhiam.
Entre o hipocampo e a amígdala, a serotonina
um hibisco secreto.
Sobre montanhas claras hialinas, as libélulas
circulavam.
Nas oscilações da lua endógena, o céu floria,
nas grandes árvores do cérebro.
Nas metáforas da água, o céu era uma estrela
que cantava a luz, o seu odor.
A noite era um violino, onde os leões bebiam
a sua sede.
Ao longe, o deserto brilhava, entre âmbar, rolas.
No corpo, as neblinas transformavam-se,
em canteiros verdes.
Num rasto de sândalo e perfumes, lavava os meus olhos.
Nos limões repletos, o sonho dilatava-se,
amígdala cerebral era uma floresta de musgo,
um pedúnculo dourado.
Estavamos em Silves.
Entre artefactos de cortiça e cancioneiros de lume,
a sede estendia-se, a lua flutuava e o silêncio fluia,
nas suas membranas cor de pérola.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, Lisboa, 14 Maio 2005

Quadras & Quadros. "minha mãe amassa o pão".
Minha Mãe massa a Lua. Augusto Mota Posted by Picasa

Minha Mãe Amassa o Pão

Minha mãe amassa a cal,
Que é alva como a farinha -
Cal dos montes, afinal,
Onde a brancura é rainha.
Minha mãe amassa a lã
De imaginário rebanho -
Come-se o pão de manhã:
Pão fofo, sabor estranho...
Minha mãe amassa o touro
Correndo pela planura -
Vindo do curro do forno,
Esse pão ninguém segura.
Minha mãe amassa o rio,
Que é a sua mente inquieta -
Comeu desse pão, sorriu,
Seu filho ficou poeta.
Minha mãe amassa o grande
E o mais pequeno também -
E o pão se encolhe e se expande,
Ao sabor da minha mãe.
Minha mãe amassa a cor
Da aurora quando nasce -
Come-se o pão, e o rubor
Vem alegrar-nos a face.
António Simões, in "Minha Mãe Amassa o Pão", Câmara Mun. de Beja

Quadras & Quadros. "minha mãe amassa o pão".
Minha mãe amassa a cal. Augusto Mota Posted by Picasa

Quadras & Quadros. "minha mãe amassa o pão"
Minha mãe amassa a asa. Augusto MotaPosted by Picasa

Quadras & Quadros. "minha mãe amassa o pão"
Minha mãe amassa a renda. Augusto Mota Posted by Picasa

a dizer o instante

olha as tuas mãos a escrever poemas
a dizer o instante
a consumir o fogo que se expande, a existência.
olha as tuas mãos a chorar nas minhas.
olha! são searas são vinhas que tangem a beleza
e a embebedam de sinais.
maria gomes, inédito, coimbra 2005

A fuga

um sino afaga matematicamente a fuga do tempo
e uma melodia póstuma pousa nas minhas mãos
eu dou as minhas mãos ao vento
que ama a chuva em sossego
e depois escrevo.
maria gomes, coimbra, 25 janeiro, 2004

Lábios Triangulares, por Thierry Le Gou Posted by Picasa
Se preferes um poema que te acolha,
voga pelo infinito desta folha,
que é como eu neste momento faço.
António Simões, in Soneto de Vogar Devagar

22/09/2005


Fernando Pessoa - visto por Luís BadosaPosted by Picasa

"(...)

Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque que se abra lento, a consciência de dever-se repousar.
Não sei o que é o tempo, não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro. Julgo às vezes que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que a moldura para enquadrar o que é estranho.
Nunca tive alguém a quem pudesse chamar 'Mestre'. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma. (...)"
Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego, Companhia das Letras

Legenda Íntima 51. Augusto Mota Posted by Picasa

Fotopoema 34. Augusto Mota Posted by Picasa

O Equinócio de Outono

O Outono avizinha o período da morte da Natureza.
Segundo os "Mistérios Eleusianos", no 'Hino a Demeter' ( Deusa grega da Vegetação ) escrito por Homero, Setembro é o mês em que se revê o desaparecimento de Perséfona, filha de Demeter, raptada por Plutão, Senhor dos Mortos. Demeter procura-a durante anos, enquanto a vegetação morre e desaparece da Terra. Vendo isto, Zeus negoceia com Platão o resgate de Perséfona, conseguindo que esta passe dois terços do ano com a mãe em alternância a um com ele. O grande mito grego que retrata a morte e ressurreição, na metáfora de Perséfona, enquadra-se na concepção oriental generalizada na necessidade da morte anual de uma divindade ligada à vegetação, como medida preventiva, para que esta renasça na Primavera seguinte. Era comumente aceite a ideia de que rituais semelhantes, praticados tanto na Primavera ( sementeiras ) como no Outono ( colheitas ), contribuiam para o crescimento e fortalecimento de cereais e plantas. Substitutos dos deuses, simbolizados nas formas de animais ou de alimentos representativos, eram ingeridos em refeições cerimoniais, propiciatórias desta fertilidade.
Por outro lado, estes rituais têm a faculdade de reconcialiar o homem com a morte, enfatizando a possibilidade de vida após a morte.
Etnografia. Equinócio de Outono, in http://paginas.sapo.pt

Outono. Jonathon Earl Bowser Posted by Picasa