31/10/2005


Fotopoema 44. Augusto Mota. Posted by Picasa

Agora

música não, agora -
nem vozes,
nem canto de pássaro ou pessoas,
nem o segredar do vento,
nem a raiva que em rajadas dementes
desce dos olhos irados dos homens
do meu tempo -
só quero que o silêncio das pedras
me ensurdeça para sempre.
António Simões, inédito, "Seis poemas com pedras dentro", in JL, 2000.

Legenda Íntima 44. Augusto Mota. Posted by Picasa

A Parede Do Tempo

Tocas na pedra
e sentes na ponta dos dedos
a parede fria do tempo -
ali, dura, inexorável;
teu corpo estremece -
é então que em tua alma
começa a bater as asas
um pássaro de asas cálidas;
é um murmúrio de vento,
um canto de menino que ouves agora -
e a pedra fica quente
como os pães acabados de sair do forno
nas tardes da tua infância
e abre-se em fatias de luz.
António Simões, inédito, "Seis poemas com pedras dentro", in JL, 2000.

Quando Os Pássaros Sobem No Ar

Quando os pássaros sobem no ar
Eu vou também,
Mais alto, sempre mais alto,
Aonde eles nunca poderão chegar -
Preso à terra,
Subo com as asas ocultas das pedras.
António Simões, inédito.

30/10/2005


El Cuento. Óleo sobre tela sobre madeira.
1,20 m X 1,90 m. Gerardo Camargo. Posted by Picasa

Só Assim

Palavras não, agora -
Quaisquer que sejam, não as vou ouvir.
Quero que me fales de outro modo:
Afaga-me primeiro o rosto;
Deixa depois os teus dedos,
Silentes como a luz,
Percorrer-me o corpo devagar
Como quem soletra
As sílabas infinitas da ternura
Só assim sabe escutar-te
Meu coração.
António Simões, inédito.

Mortaje. Óleo sobre tela sobre madeira.
1,20 x 1,20 m. Gerardo Camargo. Posted by Picasa

Azul

Vivia feliz na oficina de meu tio abegão,
vendo-o esculpir, pacientemente, com a enxó,
na rija madeira de azinho, os raios das rodas dos carros,
com a leveza com que o vento afaga as searas;
às vezes, nas tardes de oiro de Verão,
de regresso das lonjuras das planícies do Alentejo,
aparecia um homem num cavalo branco,
que parava em frente da porta
à conversa com o meu tio;
o infinito vinha preso às patas, às rédeas e à crina do cavalo
e ao sussurro cantante da fala do cavaleiro -
quando se iam embora os dois, deixavam atrás de si
um pouco do azul desse céu
que alagava o chão da oficina coberto de maravalhas de azinho
e ia subindo até ficarmos todos -
meu tio e eu e o senhor Carvalho, o ajudante -
a nadar em grandes braçadas nesse azul do espaço;
quando minha tia abria a porta dos fundos
que dava para a oficina,
o azul entrava-lhe pela casa dentro,
e nessa noite a ceia tinha um sabor diferente,
porque, sem ela saber, era com a água do infinito
que se coziam agora os grãos com abóbora no lume de chão
que ardia na maciez dum solo de violoncelo;
quando no fim da tarde eu regressava a casa,
minha mãe, desprevenida,
afogava-se, invariavelmente, no azul de meus olhos castanhos;
se procurarem bem,vê-la-ão ainda, sorridente,
lá bem no fundo da memória,
azulada de ternura -
António Simões, inédito, Louredo, Évora, Março de 1999.

Inmerso. Óleo sobre tela sobre madeira.
1,20 x 1,20 m. Gerardo Camargo. Posted by Picasa

diálogos interrompidos

II -
são 17h55m
dói-me a cabeça
tento aproveitar o tempo
leio
quero escrever
não pensar
inventar letras
teclá-las
cruzam-se sentimentos
pequenos / grandes nadas
feitos de gestos
de (f)actos que foram correndo no
tempo
.incomoda-me o relógio.
gabriela rocha martins, inédito, in "Hydra".

diálogos interrompidos

I -

levanto-me cansada
um vazio inoperante enlaça-me
penso
finjo que escrevo
oiço
a 1ª sinfonia para piano e orquestra de Tchaikovsky
.vivo num mundo paralelo.
gabriela rocha martins, inédito, in "Hydra".

29/10/2005


Silêncios. Peter Thompson. Posted by Picasa

sul - I

ao sul
há narcisos
e fantasmas
e pequenos /
/ grandes
eus
esquizóides
.náufragos em passagem.
gabriela rocha martins, inédito, in "Hydra".

sul - II

para lá de palavras e máscaras
há solidões remissíveis
verdades omitidas
para lá de actos e ambivalências
há silêncios subservientes
onde amora o medo
para lá de cátedras e doutos
há desertos permanentes
anversos inteligentes
anátemas secretos
.dejectos.
gabriela rocha martins, inédito, in "Hydra".

Acordar. Fotografia de Tiago Santos. Posted by Picasa

poema II

O sol abre os braços
Acorda redondo no sono
Traz à boca, a boca
O sabor da saliva quieta
O lado ansioso e azul da janela
O sol abre os braços
Oferece o seu coração jugular diamante
e as costas doem-lhe de sangue
e os ombros pesam-lhe
carregados de estrelas e negro
Sandro William Junqueiro, inédito, Julho de 2005.

Sujeito Indeterminado


E encontra-se à venda nas principais Livrarias do País...
Posted by Picasa

23 - posteridade

Adormeceu à sombra de uma fama
efémera. E começou a sonhar alto,
cada vez mais alto. Até que despertou
com a intensidade de um pesadelo
vazio de tudo.
Augusto Mota, in "Sujeito Indeterminado".

15 - antivírus

Apaixonou-se na net. Juraram
fidelidade na net. Tiveram relações
na net. Como não se protegeu devi-
damente, o computador contraiu
uma terrível infecção.
Augusto Mota, in "Sujeito Indeterminado".

28/10/2005

14 - metamorfose

Odiava moscas. Uma noite sonhou
que se transformara em camaleão.
Ficou radiante.
Augusto Mota, in "Sujeito Indeterminado".

11 - perfeição

Gostava de pintar horizontes a perder
de vista. Como se vistos através das
portas da alma. E tão reais, tão reais,
que um dia, ao sair do ateliê, até se
enganou na porta e nunca mais foi
encontrado.
Augusto Mota, in "Sujeito Indeterminado".

Legenda Íntima 52. Augusto Mota Posted by Picasa

A

A porta abriu-se. E foi nesse preciso instante que a chuva incessante deixou de cair.
O inspector foi encontrado. Sentado à sua secretária, numa das muitas salas de paredes cinzentas do instituto prisional: com o pénis flácido a espreitar pela fechadura das calças, a cabeça atirada para trás e os braços pendidos e moles ao longo da cadeira como os braços de um decapitado.
Parte da sua massa encefálica e sangue, parte das suas ideias e emoções, estavam ainda agarradas ao tecto, dando-lhe cor. Uma mancha escura esborratava toda a área branca do tecto acima da sua secretária num diâmetro de dois metros como uma garatuja infantil. Enquanto a arma fria, criminosa depois de já ter exercido a força, descansava indiferente junto aos seus sapatos de camurça.
O projéctil penetrara-lhe dois dedos acima da garganta e saira-lhe pelo topo da cabeça; traçara a linha vertical de um fio-de-prumo suspenso, mas ao contrário: como se a terra fosse o peso que empurra e o céu o íman que recebe. Mais, a bala abrira-lhe um buraco tal na cabeça, que podiam introduzir naquela abertura, dois, três dedos de uma mão comum, sem que estes voltassem sujos de qualquer vestígio de carne.
Agora era um homem morto.
Já não era o hábil e forte inpector, que representara e administrara durante anos e anos, um dos sectores mais importantes da segurança do governo. Agora era um homem morto. Mais ainda ontem, de pé, junto à janela onde vigiava todas as entradas e saídas do instituto, o inspector fumara profanamente um charuto oblongo e expirara o fumo branco como se fosse viver para sempre. Não tinham ainda passado, sequer, vinte e quatro horas desde a sua última reza. Desde a última vez que rezara: de olhos abertos, sem rosário e sem as palmas das mãos unidas, a um Deus em que só ele acreditava; pedindo-lhe: força, obstinação, poder.
Dois médicos forenses, por ordem expressa do governo, observavam agora, atenta e escrupulosamente, o cadáver sentado e ainda morno do inspector. Trabalhavam juntamente com outros investigadores, que vestidos com sobretudos cinzentos e rostos perfeitamente escanhoados, cobriam com um pó cor-de-rosa todas as superfícies verticais e horizontais daquela sala de paredes cinzentas, em busca de indícios, farejando sinais.
Falavam em voz baixa para não perturbar a morte. E formulavam dentro das suas cabeças - em silêncio, para que ninguém os ouvisse - algumas hipóteses: assassinato ou suicídio? E com o espanto aceso nos olhos, sem terem ainda provas objectivas sobre o que na realidade acontecera, aventaram uma conclusão: o inspector era agora um homem morto; e um homem morto é um homem que não tem dúvidas.
No corredor contíguo à sala do acontecido, e com apenas uma parede a separá-lo de todo este aparato macabro, o adjunto do inspector - aquele que de mais perto e durante mais tempo privara com o agora morto - dobrado sobre os seus próprios joelhos, chorava ao mesmo tempo que ria. Não se conseguindo perceber se a sua volumosa emoção era oriunda de uma dor impronunciável, ou antes de uma alegria extrema.
O adjunto do inspector, interrompeu por diversas vezes a comoção que o atingia, de forma a regularizar a respiração. E entre dentes chegou mesmo a murmurar:
- Não acredito que estejas morto.
E repetiu:
- Não acredito que estejas morto.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No céu não há limões".

Legenda Íntima 53. Augusto Mota.Posted by Picasa

desespero

Houvesse, ao menos, um restaurante perto para tomar um copo de água! Tenho uma sede enorme de infinito e não consigo dormir numa situação destas. Seria melhor voltar para o campo ou para a praia. Que importa? Que posso eu fazer se estamos numa sala de espera? Esperar por um comboio é ter sede de infinito. É sentir-se voar alto e depressa, como se lá de cima víssemos a terra coberta por uma espessa camada de nuvens. O campo ou a praia são sempre recursos de evasão que ainda se ligam com esta sede de infinito. Os restaurantes estão longe e a época está má para o negócio. Os turistas sentiram-se traídos e não querem mais voltar aqui. Tudo acabou. Não haverá mais férias. Não haverá mais esperança. Estamos mortos como se fossemos só palavras. Talvez estejamos só longe, do outro lado da fronteira.
A fronteira? Será que ainda não completámos o ciclo da nossa vida? Quem se esqueceu de pôr uma vírgula no testamento dos nossos antepassados? Mortos? Na fronteira? Como poderemos ter alguma coisa a declarar? Abram primeiro as portas e voltaremos atrás. Renovar esperanças é negar sempre o desastre, é não discutir qualquer coisa. Contrariar, isso sim, pode ser o descarrilamento do comboio a caminho da fronteira. Fazer esperar os passageiros é trair a excursão.
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora,", 1962.

27/10/2005


cidade dos mortos. Fotografia de Myriam Arh'Or Posted by Picasa

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / - base do pensamento puro.

Quincey de pernas cruzadas ( o tornozelo de um dos pés sobre o joelho de outra perna ) estava sentado num puído sofá de couro. Estendeu a mão até ao bule chinês e deitou numa taça chá fumegante. O sabor misturou-se no pensamento. Tinha aprendido directamente o seu nome, o seu local de nascimento, a sua língua. Outros conhecimentos mais elaborados estavam, no entanto, desenhados fora da sua pele. Crescera para essa zona mal definida e identificara alguns dos postulados necessários à sua sobrevivência. Na selva tinha o andar seguro e silencioso do animal nocturno que caça as suas presas com a fortuna dos deuses. As garras reflectem um átomo gigantesco dotado de saber e instintos supremos. A mesma sensação percorria-o quando observava no ecrã profundo da noite o movimento dos astros. Seguia o rasto à procura das estrelas, à procura do alimento. O acontecimento num dos casos era perseguir a vítima para matar. No outro era partir da morte para descobrir e descodificar um princípio universal. Encheu e acendeu o cachimbo...envolto numa nuvem de fumo. As formas nunca tinham ocupado muito tempo da sua atenção. Ouvira da boca de alguém, que demandara as rotas do Oriente e se fixara no Egipto, que as viagens começam na morte e acabam no sono. Olhou pela vidraça suja e viu o cisne branco cego de um olho elevar-se e cruzar as águas do lago. Parara de chover. As palavras do viajante, meditou, tinham um significado obscuro. A acção filosófica iniciava-se na morte e terminava no sono... Ocorreu-lhe outro verbo metafísico: pensar. Se estendesse, torcesse a cabeça para o campo psicológico, facilmente, detectaria movimentos sensoriais; ver... Fechado no meio do presente, se não tivesse acesso a outros mecanismos ( crias do Olímpico Urano ) ficaria eternamente fechado no interior do círculo. Ver o quê? Ver o cisne cego? E o cisne cego vê o quê?
O interior do seu cérebro com os nervos acoplados num sistema real? Podia, bem sabia, repetir os gestos, alterar o estado mental. Na parede oposta existia um grande espelho. Quincey podia ver Quincey ( a sua imagem ) desligado da sua vontade, ensaiar pequenas imprecisões, rupturas. O tempo, no entanto, actuava como instinto, não como conceito. E o instinto é implacável na sua ordem do real. Levantou-se do sofá e saiu para a rua. Mas o que o esperava lá fora era um labirinto. Nas ruelas estreitas da casbah erra sem destino. Sombra contra sombra sob a égide dos músculos. Os seus passos caminham-no para a cidade dos mortos. Esses habitantes que se distraem a pentear os cabelos uns dos outros. Sibilam pelas gengivas sinais de ouro. Dançam ao cair da noite. ( Os mortos dançarão mesmo? Que interessa se dançam ou não, se parecem possuir um pensamento que a nossa linguagem, por mais que se desenrole, não tocará nunca. ) A espécie humana, que mais não é que uma tribo, carece de uma linguagem de ouro para interpretar os sinais eternos. O pensamento esfarrapado, que cobre com tiras uma ou outra faixa da actividade humana, encontra uma textura resistente e maleável, na cidade dos mortos. A imagem de Quincey reflectida no espelho tem, no caso da distorção, uma intensidade semelhante à oposição entre o pensamento da tribo ( estilhaço ) e o da cidade ( ordenado ). O núcleo do pensamento parece sediar-se na cidade dos mortos. O passeio de Quincey prossegue nos e nos labirintos tortuosos da casbah fumegante, queimada pelo óleo, pela menta, pelo cordeiro e pelo ópio persa. Atraído pelo cheiro entra num botequim, iluminado pela chama impalpável de uma vela. Senta-se um tamborete, obscurecido, a um canto. A chama misteriosa revela a prata difusa que, do exterior, se esbate na lâmina translúcida da porta. "Cisne Branco", assim se chama o botequim, onde indiferentemente se bebe vinho quente e menta. Pendurados na parede, dois retratos a óleo, que o proprietário afirma retratarem dois parentes seus. A palidez da chama não deixa ver muito mais, mas Quincey percebe que aquela imagem possui um rasto alienígena. Dirige-lhe ícone o pensamento - Os instrumentos utilizados pela filosofia ( raciocínios, jogos de linguagem ) operam aquém da elipse solar. O método mesmo quando transcendental, se não busca atingir o pensamento, embota os seres inteligentes. O coto fica com a alma transfigurada, a lâmina enferrujada, a chama apaga-se. Amoníaco numa folha de papel... cristais... - base do pensamento puro.
Jaime Salazar Sampaio, inédito, Janeiro 2004.
( galardoado com o Grande Prémio de Teatro da APE ).

Dossiês de papel...cristais. Fotografia de Myriam Ach'Or Posted by Picasa

Máquina Alguma de Poupar Trabalho

Máquina alguma de poupar trabalho
Eu fiz, nada inventei,
Nem sou capaz de deixar para trás
Nenhum rico donativo
Para fundar hospital ou biblioteca
Reminiscência alguma
De um acto de bravura pela América,
Nenhum sucesso literário ou intelectual,
Nem mesmo um livro bom para as estantes
- apenas uns poucos cantos
vibrando no ar eu deixo
aos camaradas e aos amantes.
Walt Whitman, "Poemas",
trad. de Eduardo F. Alves.

Canto A Mim Mesmo


Walt Whitman, poeta, nasce, no dia 31 de Maio de 1819, em West Hills, Long Island.
Em 1835 trabalhou como impressor em Nova Iorque e no Verão do ano seguinte começou a ensinar em East Norwich, Long Island. Entre 1836-1838 deu aulas, e de 1838 a 1839 editou o semanário "Long Islander", em Huntington. Voltou ao ensino depois de participar como jornalista, em 1840-41, na campanha presidencial de Van Bure.
No início de Julho de 1855 publicou, em edição de autor, a 1ª edição de "Leaves of Grass" que não mencionava o seu nome, e, continha, apenas, 12 poemas e um prefácio.
A sua obra poética centra-se na colectânea "Leaves of Grass", dado que, ao longo da sua vida, o poeta dedicou-se a rever e completar aquela colectânea que, durante a sua vida, teve oito edições.
A 2ª edição era composta por 32 poemas, intitulados e numerados. Entre eles encontrava-se "Poem of Walt Whitman, an American", que haveria de chamar-se "Song of Myself" ( Canto de Mim Mesmo ).
Esta edição, publicada no Verão de 1856, foi recebida, por alguns críticos com entusiasmo, mas mal recebido pela maioria, o que, no entanto, não impediu Whitman de continuar a trabalhar novos poemas para a referida Colectânea.
Walt Whitman faleceu a 26 de Março de 1892.
Cinco anos mais tarde foi pubicada, em Boston, a décima edição de "Leaves of Grass ( 1897 ) a que se juntaram os poemas póstumos "Old Age Echoes".
Nos seus poemas, Whitman elevou a condição do homem moderno, celebrando a natureza humana e a vida em geral, em termos muito pouco convencionais. Em "Leaves of Grass", Whitman exprime, em poemas visionários, um certo panteísmo e um ideal de unidade cósmica que o Eu representa.
"Introduziu uma nova subjectividade na concepção poética e fez da poesia um hino à vida. A técnica inovadora dos seus poemas, nos quais a ideia de totalidade traduziu-se no verso livre, influenciou não apenas a literatura americana posterior, mas todo o moderno lirismo, incluindo Fernando Pessoa".
Canto a Mim Mesmo
( fragmentos )
1
Com música forte eu venho,
com minhas cornetas e meus tambores:
não toco hinos
só para os vencedores consagrados,
toco hinos também
para as pessoas batidas e assassinadas.
Vocês já ouviram dizer
que ganhar o dia é bom?
Pois eu digo que é bom também perder:
batalhas são perdidas
com o mesmo espírito
com que são ganhas.
Eu rufo e bato o tambor pelos mortos
e sopro nas minhas embocaduras
o que de mais alto e mais jubiloso
posso por eles.
Vivas àqueles que levaram a pior!
E àqueles cujos navios de guerra
afundaram no mar!
E a todos os generais
das estratégias perdidas,
que foram todos heróis!
E ao sem número de heróis maiores
que se conhecem!
Posted by Picasa

Fotopoema 37. Augusto Mota Posted by Picasa

Soneto de Água

Vou encher este soneto de água,
( quando estiver cheio é uma piscina ),
depois, vou ver de minha alma e trago-a,
pra banhar-se na água que imagina.
Entramos de mão dada, depois largo-a,
( contra o que o bom senso determina! ),
e deixo-a diluir angústia e mágoa
pra que volte à leveza de menina.
Na água de si mesma, que é só alma,
nessa frescura antiga ela se acalma -
e ao vê-la assim tão feliz, prometo
que a partir de agora, hei-de manter,
para recreio da alma e seu prazer,
sempre cheio de água este soneto.
António Simões, inédito, 2004.

26/10/2005


Fotopoema 41. Augusto Mota Posted by Picasa

desp(ed)ida

reencosto-me no teu peito
à procura de abrigo
e encontro-me nos teus braços
protegida
quando me abraças e murmuras
amo-te
nos lençóis que descobrem
nossos corpos
nús
toco teu sexo
enlaçada
na fúria do desejo
desp(ed)ida
então
apenas
somos
um
no momento
sublime
.(d)o encontro.
gabriela rocha martins, inédito, in "jamais canto de amor".

Fotopoema 40. Augusto Mota Posted by Picasa

construção bizarra

vem
meu amor
corroer o pensamento dos deuses
e fazer de seus desígnios
projectos invictos
reais
nossos
vem brincar com os duendes
e construir imagens
claridades
( o mundo
além do nosso quarto
é uma construção bizarra )
vem
meu amor
recriar o infinito
levantar os olhos
brincar com as estrelas
e mergulhar no mar
vem
de manhã
ao acordar
ser o outro lado do poema
.realidade.
gabriela rocha martins, inédito, in "jamais canto de amor".

Legenda Íntima 49. Augusto Mota Posted by Picasa

Legenda Íntima 40. Augusto Mota Posted by Picasa

Sidra Azul

Não entendia a linguagem do mundo,
nem a obscura mitologia dos anjos, com a sua urina violácia,
mas algures a vida era possível, na sua extrema inocência,
porque eu sonhava com desertos puros,
contra o azul ultramarino, o mar e os violoncelos.
Inventava Deus, a própria inocência, o sangue e as labaredas,
escrevia a infância azul - peixes coagulados,
doces glicínias, rodeada de sombras taciturnas,
florestas, orquestras verdes.
Escutava Brahms, o Concerto para violino e orquestra,
Opus 77.
Tudo era insólito, excepto a beleza, rodando os sonhos,
cobertos de navios, triângulos perfeitos,
ânforas afundadas,
o peito cercado brilhando, o coração aceso,
como uma montanha, convocando o mel
e os rios longínquos, os cometas da dança.
Não entendia o mundo, nem a linguagem de brumas
indizíveis, articulando o peito,
com a sua linguagem desmedida,
o corpo convocado para destruir incêndios, sonoros, impuros,
entre prímula e diamante,
desertos obscuros convocados para destruir todo o vazio,
pelos olhos químicos, transparentes,
a reunir claros contextos.
Não entendia a linguagem do mundo.
Inventava Deus, a sidra amarga e cantava a cidreira doce,
a sidra azul,
e os rios eram tristes, pela imensidão tremenda.

Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

25/10/2005


Requiem. Linóleo. 9,5 X 9,5 cm.
Augusto Mota. 1962 Posted by Picasa

tróia - um ciclo

Estou a terminar o meu ciclo de Tróia. Já desfiz os cavalos no hrizonte e aguardo que o fumo se esvaia pelas frinchas de todas as casas que ameaçam ruína, para, célere, proceder à recolha dos objectos abandonados no ardor da luta. O céu vermelho e negro anuncia novidade na manhã que se aproxima. As aves de rapina, essas, souberam afastar-se da atmosfera sufocante da cidade. Só as muralhas permaneceram alterosas na defensiva. Tudo o mais ruiu com o fragor do cataclismo.
Se a princípio a besta imperava no ataque, resfolgando metralha e fumo, agora, culpada e traiçoeira, abandona o campo da luta com aquela alegria que só os loucos descobrem no pandemónio. Para trás há trevas e traição, aquela traição que se costuma esconder em todos os cavalos que o homem fabrica no seio da cidade. Depois vem sempre a noite que se imiscui nas verdadeiras intenções e ajuda a fraqueza dos cobardes.
Passa a surpresa e todo o ataque. O fumo esvai-se perpétuo por todas as fendas das casas em ruína. A traição perde-se num galopar frouxo e repetido. Neste amanhecer começa a divisar-se a peste em todas as ruas. Bichos horrendos saem das casas, vorazes e incontidos como se o fumo lhes tivesse aguçado o apetite de destruição. Espalham-se abstractos pela cidade e germinam múltiplos em cada fecundação. A cidade está perdida! Sente-se asco de viver na aparência das próprias pedras. Resta só o despontar do astro. Depois acreditamos na redenção.
Ei-la, a redenção! Vive diluída no fumo que evolui do horizonte em curvas de prazer. Descobrem-se, em cada evolução, novas formas de amor e sempre os mesmos gestos de carícia. Para longe ficaram todos os monstros e todas as aves de rapina. Aqui, neste plano, continua imperioso o verdadeiro amor. A cidade liberta-se do fumegar nocivo e respira a vida de outrora.

Em Barbacã os cidadãos honestos queimam na praça pública

os últimos fragmentos do cavalo traiçoeiro.

Completou-se o ciclo de Tróia.

Augusto Mota, inédito, in "Metáfora,", 1962.

Sujeito Indeterminado. Augusto Mota
esta manhã fui agradavelmente surpreendida com este "Sujeito Indeterminado", breviário de brevíssimos textos do "jardineiro-filósofo"Augusto Mota.
e não resisti ao ímpeto de o ler, de um fôlego.
aliás, é impossível resistir a esta tentação...
...como é impossível resistir à tentação de sobre o livro escrever algumas despretensiosas notas.
então,
comecemos pelo título.
não sei se por acaso ou não, no título aparece "Sujeito Indeter/minado". de facto, todos os textos são pequenas minas que o autor lança ao leitor desprevenido. e, nós ficamos "cidrados", "colados" a uma pertinaz sucessão, onde tudo/nada é deixado ao acaso.
a brancura da folha, alvíssima - também aqui há primorosa escolha - escurece, apenas, numa subtil, porque ténue, imagem, numa mancha de água consentida, ou no vestíbulo primorosamente escrito por Alberto Pimenta. aqui, aliás, tudo é consentido. até o absurdo.
( "À semelhança da arte conceptual, que não pinta ou representa objectos, mas sim projectos ou ideias, na mini-ficção não há acções, mas apenas o que poderia chamar-se a sua meia-luz, isto é, a linguagem que as encena"
- Alberto Pimenta, in vestíbulo. )
mas são as 70 folhas, que compõem o livro, que nos comprometem. e fazem-no porque o autor leva-nos a uma viagem imparável, através das nossas/suas ideias. somos induzidos de página em página, sem querermos, convencidos de que tudo já está dito, para, na página seguinte sermos surpreendidos, de novo. e o que mais fascina, neste livro, é a possibilidade de, cada um, ser o próprio autor.
é, também, no mundo do "conceptual" que Augusto Mota é artista, porque é de arte que aqui se fala, meus Amigos ...sendo este brevíssimo breviário a sua "barca de Noé"!
- um cheiro a tinta de impressão -

10

arma

Usava as palavras como arma.

Depois guardava-as secretamente

como se fossem livros. Um dia, por

descuido, a biblioteca pegou fogo e

ele sucumbiu à explosão do arsenal

das suas próprias ideias.

...decididamente, um livro a não perder!

09 / Naufrágio

Passava horas a fio a navegar na net.
Um dia apanhou uma tempestade
das sérias e salvou-se por um triz,
agarrado ao teclado. Mas o rato foi
o primeiro a abandonar o computa-
dor.
Augusto Mota, in "Sujeito Indeterminado".

Os Cabelos em Marte

Eu era uma pedra, um mapa, uma cidade, um nome
iniciando o seu percurso alquímico,
dizendo o tempo desconexo, enumerando cavalos,
borboletas de alfazema, ervas luminosas,
os pássaros e os saltérios ( os cabelos em Marte ).
Toda a vida esperei, com o rosto cego,
esperando a morte das crisálidas, a inocência
amarelecida,
de encontro às nuvens, cega pelo galope cego
dos cavalos cegos, seguindo a cegueira,
oh, a pobre cegueira parada dos meus dias,
a minha cegueira cintilante,luminosa, contudo,
esquecendo os relâmpagos,
na sua essência melancólica, na sua mecânica
de excessos.
Manobravam, sobre mim, as formas, os gumes
sem limites,
o corpo, os planetas sagazes,
tocada pelo profundo açafrão das estrelas,
entre balanças precipitadas,
velaturas nas janelas enunciando o espírito,
os anéis de fogo,
nocturnos arquipélagos expressando a unanimidade
das trevas,
os olhos nublados, numa turbulência sôfrega,
inventando asas, pérolas,
como uma rosa tímida, sumptuosa,
em joelhos sobrenaturais.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

"Passion". Pedra. Posted by Picasa

Pedra Ante Pedra

pé ante pé,
pedra ante pedra,
palavra ante palavra,
minha alma percorre perplexa
o pântano desta página,
enquanto tece a teia do poema
e traça o caminho
da ( incessante ) viagem,
fingindo não saber
que fica no infinito a outra margem.
António Simões, inéditos, "Seis poemas com pedras dentro", in JL, 2000.

24/10/2005


Quadras & Quadros. "Minha Mãe amassa o pão".
Minha mãe amassa o nada. Augusto Mota.Posted by Picasa

plenilúnio

Procuro o tempo entre os espaços claros que a Lua cheia deixa marcados no relevo suave das encostas. As árvores povoam de sombras os atalhos que nos levam às recordações de ontem, quando, no planalto sobranceiro à memória do corpo, cruzámos os gestos e os olhares ao ritmo dos segundos que pareciam esgotar a eternidade. Sobre estes campos enluarados estamos a reviver o percurso fértil pelas artérias da cidade e refazemos, no retiro da memória, o ardor da caminhada até ao cimo de nós. Majestosa vista essa sobre o cansaço que parecia querer esmagar a respiração, enquanto os olhos, bem abertos, pronunciavam silêncios e mais desejos! Como hoje, o luar invadia as janelas e atravessava as espessas cortinas da noite. A cidade não bulia como de costume. O movimento dos carros, ao longe, chegava-nos como se fossem ondas espraiando-se mansamente pelo areal. E a luz que recortava os gestos e beijava a escuridão reanima-se hoje, aqui, enquanto repetimos, como invocação, as mesmas palavras que ecoaram pelas ruas mais secretas da cidade.
Os segredos das cidades reanimam-se, assim, com as palavras que evoluem entre os gestos e a escuridão e que, por vezes, até se escondem na infância dos dias.
Abrimos o peito ao fulgor desta Lua cheia e deixamos que a natureza se entregue ao ritual cíclico de sentir a claridade vaguear pelo tempo que oculta a memória precisa dos gestos. De todos os gestos. Mesmo daqueles que, subitamente, vêm ao nosso encontro e nos repetem todas as palavras que gostamos de ouvir através das noites límpidas e frias de Inverno. Esses gestos ganham outro sentido quando, no segundo dia do segundo mês de cada ano, anunciam o novo percurso do corpo e da realidade e nos faz percorrer sendas perigosas no desfiladeiro das emoções, que este luar ainda mais excita.
Hoje não há concerto para elogiar datas e promessas. Os laranjais junto às fontes são já melodia fresca e festiva. As águas calmas reflectem o sorriso claro da Lua e a noite começa a minguar. Colhemos ainda romãs nos pomares à beira-rio e procuramos, no alvor de um novo dia, orquídeas selvagens que bastem para entrelaçar nos raios do Sol que, de mansinho, vai acordando a madrugada e a vida.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

Legenda Íntima 58. Augusto Mota. Posted by Picasa

As Idades da Luz

Invento o desconhecido. E todos pensaram essa fonte,
Deus levitando na pureza da noite,
as minhas mãos adormecendo entre as florestas,
no degelo interior a sugerir a plenitude,
os domínios sagrados amadurecendo as vagas
e as entranhas,
os cumes lisos, no auge das vozes petrificadas.
Sempre o desconhecido
- a vida inscrita nos seus labirintos -
as colinas rasgadas em frente às Idades da Luz.
No lume vertiginoso, o céu articulado,
um leque de essências, uma sinfonia de Bruckner.
A matéria culmina e todo o ser desperta.
Todo o barco é berço e todo o ser é água
a completar o Todo.
Todo o ser é silêncio de desmembrados cravos de espuma.
Todo o ser é um rio denso e luminoso.
Terrível é o grito - e maravilhoso, o dos bebedores
da sombra.
Trabalho a arritmia louca das canções,
penetro a fundo nos gritos.
Invento o tecido estranho das metáforas,
porque o universo é fresco e suavemente imortal.
Desço pelas ladeiras íntimas, íngremes.
Amo esse esplendor e a louca sinfonia do mundo,
o silêncio de guelras abertas precipitando as sombras,
o corpo, com os seus pomares translúcidos,
a lua e a vertigem, com suas paisagens tenebrosas,
revolvendo negras insígnias, cósmicos segredos,
raízes lentas, vagarosas,
janelas exactas do fulgor secreto
das árvores, dos nomes.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".


Legenda Íntima 36. Augusto Mota. Posted by Picasa

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / Falemos de Outra Coisa

Falemos de um remo. Falemos de quartzo.
Falemos do que seja nuvem e esquecimento.
Falemos de uma asa. Falemos de uma rocha.
E que a pedra dure até chegar ao nada.
Falemos de um riacho. Falemos de um mendigo
pedindo uma palavra, pedindo um só lírio.
Falemos só da cinza quando a dor afaga
as brumas de uma noite interminável.
João Rui de Sousa, inédito, in "Obstinação do Corpo", Janeiro de 2004.
( Grande Prémio da Crítica em 2003 ).

Ínfima Distância

Sempre te quis dizer o beijo
de distraídas naves que são íntimas
partículas de terra trémula
- Oculta, indecifrada.
E também dizer-te o ínfimo
da distância
que há entre os lábios túmidos
e os frutos aguardados.
João Rui de Sousa, inédito, in "Obstinação do Corpo", Janeiro 2004.
( Galardoado com o Grande Prémio da Crítica em 2003 ).

23/10/2005


Vinheta Lua e Sol. Augusto Mota. Posted by Picasa

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / arte in vitro

I
tocatta a quatro mãos...
...em fuga
existe o luar
a sombra dos poetas e os seus reflexos ,nos sonhos
?fora ,os riscos da rotina .de viver
é necessário acordar .levantar e começar um novo dia
.bocejo
.9h00
- come o nosso poema ,mas lava os dentes .como medida de precaução - dizes-me à laia de despedida
.atiro um beijo ,agarro o casaco ,pego nas chaves do carro e desço as escadas a correr .faz frio .o carro não pega
.vou a pé ,tropeçando em coisas e pessoas feias
.10h00
subo as escadas devagar .bom dia .sento-me à secretária .ligo o computador
.sou um autómato .sou um robot .enter
!devoro palavras e risos durante o dia
.18h30
.saio
.lembro-me que não trouxe o carro e amaldiçoo as coisas e as pessoas feias
.sou um autómato .sou um robot .enter
!quem distingue de mim o outro lado de mim
?2h01
em cima da cama o livro dos nossos poemas .os de hoje e os do futuro
.adormeço .onde se projectam as sombras
?sonho a preto e branco
sem legendas
II
thriller em mãos...
...dúplices
sem legendas
recomeço o thriller que o cineasta deixou esquecido no canto esquerdo de um qualquer quarto
.tinha de ser aquele quarto .aquele canto
.era Verão .foi Inverno
.não sei filmar - reflicto - certa de que
os robots ,mimeticamente ,reproduzem os gestos para que são programados...
... e o meu servidor insiste no mesmo relatório de erros
.o conflito entre o tudo e o nada
.o nada de me saber aquém dos limites
o tudo de te querer para além do nada
temporária confusão
inserida no livro de poemas jamais escrito
no meu presente / no teu futuro
no thriller lê-se a palavra FIM
( subsiste ,obsessivamente,
a dúvida )
o nada e o tudo
acordo
agarro as chaves do carro
desço as escadas a correr e
atiro a porta
ao sair
vivo a vida
e sorrio
ao
sol
meu
astro
maior
gabriela rocha martins, inédito, Janeiro 2004.

Toccata a quatro mãos. Fotografia de Joseph Mara Posted by Picasa