30/11/2005

Legenda Íntima 61.
Augusto Mota.
Quando a tristeza é muita dizemos nossas
as lágrimas da própria natureza.
33.
c

h
u
v
a

a mulher pintav a

o

cio

n

e

l

si mE

.pedra.
gabriela rocha martins, inédito, in "cantigas de diabo e mal dizer".
ERECTO, O
H
O
M
E
M

CAMINHA CAMINHA
E A SOMBRA vai Rod
ando
Ro
dan
do com o des andar do
sol
pequenina ao Meio - Dia
Quando o ocaso se adivinha
Cresce TANTO, TANTO...
Alon GA, A LON GA...
Fica MAIOR do que o sonho.
Fica MAIOR do que o H
O
M
E
M.
Vem a noite, o H
O
M
E
M
Tom ba.
CHU...CHU.....Chu...
O HOMEM dorme.

Glória Maria Marreiros, inédito.

29/11/2005

Margarida.
Fotografia de Myriam Ach'or

( requiem )

Ai, esta voragem dos dias! Este perpétuo veneno em minhas mãos, dúcteis, insidiosas, mas alegres pelo orvalho de tudo o que fortaleceste em mim! O ritmo agora é outro na verticalidade dos dedos. As unhas andam mais polidas pelas ânsias da noite e debato-me e arranho-me por os olhos não alinharem as perspectivas todas com os teus. Mas isto só por ausência física. No resto sou fraterno em minha dádiva surda, em meu calor que compartilho na mesma com o espaço que devias habitar. Nem há desperdício porque te sei. Por isso, tudo é natural e a emoção disfarçada da partida e da chegada é sempre uma viagem só para os olhos.
O minuto da separação é pálpebra que se fecha para sonhar a realidade. O apito da locomotiva, por vezes, é que tira sabor às coisas. Mas o beijo leve e quente no cais da estação é ainda o mais nítido regressar à realidade. É um outro acordar para melhor dormir sobre as recordações.
Augusto Mota, inédito, in "O Artefício da Loucura", 1964.

27/11/2005

Algemas.
Fotografia de Brian Spade.

No me olvido del vuelo

He quebrado las máscaras
he transitado
sobre mis proprias muertes
Me he visto transmutando
de gaviota a paloma
de halcón a águila
He comido mis vísceras
regresado en mujer
Me encuentro parada
en mis dos piernas
transito
el último tramo del camino
aún guardo las alas
en los rincones
No me olvido del vuelo.
Ana Mayol, inédito, Argentina.
Frida

O Canto, A Reminiscência

A música tomba nos precipícios de Wagner, anda sobre as letras
sombrias, liga as redes, o transe, os monumentos,
os remos e as rimas genesíacas,
a água ardente rumando, entre a proa e a popa, ao ocidente,
ao espírito de Deus, às nuvens, à neve e ao mercúrio
- um barco deslizando.
Sempre ouvi falar da cabeça vazia, da vertigem
e do corpo que se despenha, em sereníssimos acufenos,
sobre um branco alfabeto que movimenta o sono,
revolvendo as sílabas roxas, como entranhas,
auras de pedra.
Algures, um silêncio inventado, outra forma de existir,
o corpo hesitante escrevendo o canto, a reminiscência.
Por vezes, tenho pensado que poderia escrever o meu lugar,
quando inóspita era a matéria,
na magia geológica de estratos simplificados,
vazando as rosáceas, o vazio entre as letras.
Porque a terra ardia, pelo seu centro doloroso, sobre pálpebras,
orquestras negras.
E eis que chego à imagem exacta do meu rosto,
ao terceiro acto da Valquíria.
A minha vida era redonda, como uma papoila,
rompendo todos os textos.
Tremia de medo.
A relva tinha joelhos tímidos, os meus olhos voavam.
Eu era uma chama humedecida exaltando o sangue
e os ritmos ocultos, o corpo, os meteoros,
deslumbrados arco-íris, sonhos petrificados
e a matéria luminosa
de todas as metamorfoses.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in " Idades Sonâmbulas".

26/11/2005

Legenda Íntima 70.

Augusto Mota.

Quando se pescam novas sensações nas águas

calmas do prazer, a própria natureza se

diverte a encorajar o êxito da faina.

( sensações )

Loucura, sábia loucura esta que me arrebata todo, mas todo, para os minutos em que me sinto respirar sem mim. Invejo os átomos que se escondem nas sensações, nas agora estúpidas sensações que não atravesso com o olhar.
É isso, sou um homem permanentemente desacreditado. A história e a glória de minhas mãos pertence sempre ao fracasso. Vivo nem sei como. Tenho os olhos a ocidente e o sexo a oriente. Assim não sei como governar os segundos e os anos. Vou desistir de viver. É que não arranjo maneira de fazer de tudo isto um diálogo permanente com a sensatez da minha própria razão.
Dói-me tudo hoje. Tudo. O norte onde não habito, porque estou no sul. O sul que não habito, porque estou no norte. O sexo e os olhos é que parecem estar parados. Fui vítima daquilo que não me deram: a unidade de mim quando jovem criança. Deviam ter-me prendido a imaginação e os dias às pernas das mesas. Fiquei demasiado senhor e desconfiado daquilo que tocava. Depois dei nova grandeza ( outra grandeza ) àquilo que queria distante, ou sabia distante e queria perto das mãos. O mundo revelou-se-me demasiado desfeito, demasiado inoportuno para o que eu já sabia. Entrei cedo demais na música das flores e no círculo dos segredos mais íntimos do universo.
Tudo se reduz, afinal, ao relativo de nossas sensações, ao tempo exacto de nossas sensações. E como gostaríamos de as prender, ou matar, quando elas se impõem à memória com uma permanência exacta, viva, real, quotidianamente exasperada.
Assim concluímos tanta coisa errada!
Augusto Mota, inédito, in "O Artifício da Loucura", 1964.

150 anos depois. A Eça de Queirós, com um dia de atraso...

Em 25 de Novembro de 1845, nasce na Póvoa de Varzim, José Maria Eça de Queirós, considerado como um dos maiores romancistas portugueses.
Após o curso de Direito, ingressa, em 1872, na Carreira Diplomática.
Foi, inicialmente, colocado em Cuba. Mais tarde, em Inglaterra. Segue-se o cargo de cônsul, em Paris( 1888), cargo esse que desempenhará até à sua morte.
As primeiras obras, publicadas em Portugal, foram ensaios e relatos curtos, caracterizados por uma fortíssima ironia e uma fantasia macabra. Mais tarde, integrará o grupo de intelectuais portugueses, impulsionadores das reformas artísticas e sociais, característica do realismo e naturalismo literários. É, durante os seus anos como cônsul, que Eça de Queirós escreve as suas obras mais famosas, nas quais denuncia os males da vida portuguesa contemporânea. Por exemplo, em "Os Maias", considerado o seu melhor romance, e, escrito em 1888, Eça descreve a degenerência de uma família, como símbolo da decadência da alta burguesia portuguesa, e, "A Cidade e As Serras" ( publicada, postumamente, em 1901 ) relata a sua nostalgia pelas belezas rurais portuguesas.
Faleceu, em Paris, em 16 de Agosto de 1900.
Em 1901, Carlos Loures entrevista Eça de Queirós, em Paris....
- A França e a sua cultura influenciavam fortemente os políticos e os intelectuais portugueses. Aliás, é a sua fórmula: Portugal é um País traduzido do francês vernáculo. Passados tempos, alterou essa formulação: Portugal é um país traduzido do francês em calão.
- É verdade. E se a primeira fórmula, mais subtil e exacta, colando-se à realidade como uma pelica, foi acolhida com secura e impaciência, a segunda foi recebida com reboliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante. Já a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do Príncipe real e num sermão.
- A que atribui essa diferença de acolhimento?
- Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto a ideia do calão nos sugere, sobretudo a nós lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias, de que eu, ai de mim, estou aqui privado!
....

Exercício de Assimetria

Sorriste:
Sorri.
Partiste:
Fiquei só.
António Simões, inédito, 1970.

20/11/2005

Vogais e Consoantes no Carnaval das letrinhas*

Ontem à tarde, apareceu, dentro da minha carteira ( a vantagem de gostar de grandes sacos ), este tesouro...outro que não resisti à tentação de ler, de imediato, e sem fôlego. Mas, como sempre acontece com as minhas leituras, depois do espanto inicial, volto para descobrir os tesouros interiores. Os meus e os dos outros. E descobri-os na escrita de uma Senhora das Letras - Glória Maria Marreiros - a eterna menina, aquela que gosta de chamar meninas às outras... Na doçura de um jardim de muitas folhas a que a Autora chama "Livro", as "meninas-letrinhas" a,e,i,o,u falam entre si, naquele linguajar muito próprio das crianças... e brincam com o significado das palavras, num trocar de sentidos, a que só o sentido da Glória consente - "fixe, fixe" - são termos usuais num rodopio que nos reporta às traquinices da nossa infância. E é, nos sótãos das nossas infâncias, que a Autora vai buscar as máscaras que as suas letras-crianças usarão -
Nós somos cinco letrinhas
Todas chamadas vogais
Sem nós não há palavrinhas
Nem histórias nem carnavais!
- todavia, a estas cinco letras, outras 18, "quais soldadinhos de chumbo", as consoantes, se juntarão, e, ao som do canto dos pássaros que, também habitam no livro-jardim, participarão em alegres brincadeiras.
E o encanto maior deste livrinho alcança-se quando, duas Crianças, Leitoras de verdade, se juntam no coro do Alfabeto...
Nós somos muitas letrinhas
- nenhuma letra é igual -
no livro muito certinhas
brincamos ao Carnaval.
...
"O LIVRO-JARDIM fechou-se
e...
o meu conto acabou-se"
Mas não. O conto não se acabou. Fechou-se para continuar no nosso imaginário... por ele, obrigada, Glória!
Nota de rodapé - Esqueci-me, empolgada que estava na releitura e escrita, de fazer referência às ilustrações de Simona Traina...é que esta menina também sabe brincar ao faz-de-conta, e, soube acompanhar, com crescente ingenuidade, o imaginário de Glória Maria Marreiros.
Razão tem o Eduardo Prado Coelho quando nos fala de casos de amor...
Gabriela Rocha Martins
__________________________________
* O livro, com a chancela da "Campo de Letras" pode ser adquirido em qualquer Livraria do País.
Legenda Íntima 63.
Augusto Mota
Todas as peregrinações, tanto as interiores,
como as exteriores, quando levadas
a bom termo, são autênticos
ordálios que procuram
satisfazer o espírito
e apaziguar
o corpo.

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / Democracia da Leitura

Que significa ler? Etimologicamente aquele que lê é aquele que escolhe, que vai colher na árvore dos textos os frutos escolhidos: ler é eleger, escolher as palavras que emergem do fio do discurso, dar-lhes o brilho e a cor que lhes convêm, e por isso todo o leitor é um eleitor, e não há leitura sem uma política da leitura, e não há verdadeira leitura sem uma democracia da leitura.
"Democracia da Leitura" - utilizei esta expressão no filme Conversa Afiada de João Botelho, onde os textos de Pessoa e Sá-Carneiro eram lidos, não por leitores profisionais, mas por gente que não fazia profissão de saber ler, e por isso eles hesitavam, eles, os leitores incertos, tropeçavam nas palavras, embrulhavam as sílabas, mas por isso mesmo, neste modo vulnerável de desemaranhar os textos, eram cada um deles o cidadão comum, anónimo, vulgar, que exerce o direito de eleger, o direito de ler. Tratava-se assim de um acto colectivo ( mas "ler" é também "reunir", "coleccionar", "fazer a colecta" ) em que a comunidade se fazia à volta do isolamento da leitura, coro implícito e silencioso, ou ruído de fundo nos corredores dos conventos medievais, quando a leitura de cada um era ainda uma leitura em voz alta e o coro se fazia na diversidade dos textos e dos corações ali recolhidos ( isto é, lidos e relidos por Deus na eterna recolecção dos textos divinos ).
E foi dessa leitura que cada um ganhou o seu estatuto de "intelectual", aquele que tem a capacidade de compreender, porque é capaz de "inter-legere", isto é, de escolher naquilo que há para ler o que vale a pena ser lido, e escolher no atropelo dos textos o que vale a pena ser retido para dar aos textos o sentido que eles têm, ou melhor, esse sentido que eles podem ter, porque ler coloca-nos sempre no futuro de cada texto: o leitor escreve para que seja possível. E assim cresce a inteligência de cada um na inteligência de todos, colocando-se o intelectual no seu lugar de ser orgânico, elemento de um corpo que aumenta ( o autor é aquele que aumenta o mundo e que nisso provisoriamente se autoriza ) em sentidos e sentido, preso da paixão do inteligível, disponível para o processo da inteligência comum, e no entanto sempre privada, sempre no círculo da leitura, sempre na luz do "abat-jour", murmuradamente como diz o vice-cônsul no India Song: "o amor é a inteligência de ti" - dessa mulher desconhecida que dança até de madrugada.
Havia um termo para "amor" que era "dilectio" e dizia-se "amante dilecto", o amor que se tratava, entre aquele que diligentemente escolhe um ser, um objecto amado, e uma pequena zona do mundo, incisão ou cicatriz, que passa a ser o lugar, o corpo, o olhar, o gesto ou o ciciar da pele que se tornam, entre todos os possíveis, os que se dizem predilectos. Trata-se então de não negligenciar o que se elegeu ou recolheu, e criar em torno desse amor a sua lenda, isto é, o corpo de palavras a serem lidas como um mito, lenda e legenda de um encontro, de uma imagem, de uma fotografia, o fotograma dilecto, a fotografia delida, a fotografia lida e relida na gramática da sua luz, no drama da sua memória, na elegância de um olhar silencioso, na repetição do nome que a nomeia.
Eduardo Prado Coelho, in "O Leitor escreve para que seja possível", Janeiro de 2004.

18/11/2005

Legenda Íntima 67.
Augusto Mota.
Não é conveniente desnudar completamente
as raízes de todas as emoções. É que há,
no subsolo de cada personalidade,
um infindável e ínfimo sistema
radicular que protege e,
secretamente,alimenta
o tronco visível do
nosso existir.

CASA, PROCURA-SE

Ando procurando casa,
Quero mudar-me este Verão -
A alma já me extravasa:
É pequena esta morada
Para tanto coração.
Vou visitando os olhares,
Em busca de novo abrigo -
Se comigo te cruzares,
Prende-te aos meus vagares
Nesta via que prossigo.
Deixa que na tua pele
Minha alma pouse os lábios -
E que esse beijo tão breve
Pra dentro de ti me leve
E acalme os meus cuidados.
Tua alma é arejada,
Cabem lá as minhas dores?
Vou aí fazer pousada,
Se tudo nela me agrada
E paciente tu fores.
Minha alma às vezes acorda,
E não tem hora nem dia,
A velha dor sempre nova,
E dentro da dor soçobra -
Queres esta companhia?
A de um velho coração
Que anda procurando casa -
Que quer outra habitação,
Com alicerces no chão
E por telhado uma asa?
Mas onde esta dor profunda
Possa caber à vontade -
E encontrar em ti ajuda,
Que a dor dilua e cubra
Da ternura que te invade.
Queres este velho poeta
Que continua menino
E na alma sempre inquieta
A dor do mundo projecta,
E a outra, do seu destino?
Dá-me só a tua mão
Pra que a ternura se acenda -
Teus olhos logo dirão,
Se avanço na instalação -
Depois, discute-se a renda.
Posso pagar-te em poemas?
Um por dia chegará? -
Só quero que tu entendas
Que melhores pagas ou prendas
Do que as palavras, não há.
Nada mais tenho pra dar-te
Do que esta escrita empenhada -
Com maior ou menor arte,
Contigo tudo reparte
Meu estro em tua morada.
Mas se ninguém me quiser,
Se minha alma é excessiva,
Há sempre casa e mulher
Onde o poema estiver -
Onde ele vive, que eu viva.
António Simões, inédito, in "Poemas Circulares: Moradias e Navegações".
Vilaverde.
Fotografia de Nelson d'Aires.

agosto

Recebeu o troco
e levantou-se lentamente tão lentamente quanto lhe era possível a fim de retardar o seu regresso ao calor da rua
Não é que lá fora estivesse melhor Antes a inércia de mudar de posição e a incerteza do tempo de espera
Acendeu um cigarro Começou a descer a rua enquanto as pessoas à sua volta obrigavam-no a pequenos desvios ávidas da rotina do dia a dia Não tinha porém importância porque ele descia expectante E só por isso achava graça a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo cheios dessa importância de correrem para o tédio que sabia domesticamente enfadonho
A praça estava cheia Parou frente aos isqueiros - os mesmos de sempre que há anos se mantinham no mesmo sítio - Olhou os títulos dos jornais Verificou que na esquina da Loja das Meias ainda lá estava a camisa que gostaria de comprar Seguiu em frente parando em cada montra cumprindo o ritual de ver o já visto deleitando-se na confeitaria dos primeiros anos do séc. XX - nos bolos e na montra - olhando as armas que nunca pensaria usar vendo de soslaio o imobilismo de alguns comerciantes Virou à direita e subiu mais uma vez a rua de desesperantes esperas e desesperas Das escadinhas à direita saiu a miúda Hesitou em dar-lhe a importância do costume mas o estado de alma permitiu-lhe um outro olhar Valeu a pena As sandálias gastas As pernas soberbas - bem feitas - mesmo bem feitas Aliás todo o corpo era bem feito não necessitando da saia apertada nos sítios errados Ajustou o seu passo ao dela e sorriu à mudança de ritmo de andamento Depois passaram a trocar os olhares nas montras e entre a brincadeira e o jogo de acelera e trava de montra-descarada-montra-impessoal foi-lhe descortinando o rosto de menina que não teve tempo de brincar as rugas que lhe haviam chegado o peito que terminava num estômago apertado por um cinto Pararam no largo Olharam-se OLÁ-OLÁ e aquele longo olhar contou todas as estórias As contáveis e as outras Despediram-se como amigos O calor continuava em todos os lados mesmo estando à sombra e sendo 19h30m Começou a descida para casa É notável como a cidade pode oferecer o passeio conforme as necessidades Se tivesse seguido a rua dos eléctricos além de já ter chegado há muito tempo não teria sido crítico de moda e de arte nem teria pena da amiga que arranjara Pior Tinha-se impacientado com a espera Subiu ao nono andar A casa estava naturalmente fresca e foi bom abrir as janelas para deixar entrar o sol e o rio Luz Água Silêncio Acendeu um novo cigarro e correu para o duche Deixou a água correr ao longo do corpo Primeiro sem ordem Depois em escolha metódica Curva a curva Dos pés à cabeça que inclinou em ângulo certo de modo a incidir no pescoço no peito no estômago nas ancas nos pés De novo a repetição dos jogos de água e os sentidos que se apuram Esqueceu a passagem do tempo Mas não a suficiente para precisar de um pouco de música Agarrou a toalha e serviu-se de wiskhy Estendeu a mão Tirou o 3º andamento 5ª sinfonia de Malher e deixou-se ficar quieto oitava a cima garganta a baixo Brincava com os dedos e com o copo quando o telefone tocou O ciclo fechava-se e ele viu sentada a seu lado a imagem que guardara o dia inteiro Chegava de modo breve e seguro com aquele sorriso nos olhos que dizia
é bom amar
Atendeu
naquele estender de mão cingir de corpos - curiosamente mesmo nos mais íntimos encontros mesmo nesses nunca haiam assumido qualquer compromisso - e no falar das generalidades diárias
era bom ouvi-la
Mesmo quando não tinham coisas novas a dizer ficavam a recordar os instantes de ontem só pelo prazer de amar Era noite escura quando se despediram Desligou o telefone levantou-se vestiu-se comeu qualquer coisa e saiu
Ana esperava-o A rotina O dia a dia O tédio
gabriela rocha martins, inédito, "quando a poesia se veste de prosa".

17/11/2005

A HORA AZUL

Ilustração de Augusto Mota,
in "Diálogo", suplemento de cultura,
letras e artes do "Diário Ilustrado",
9 Julho 1957.

A HORA AZUL

Quem me dera pensar que assim era!
E vejo a hora feliz rindo azul.
Falla cantaria se fosse outra a Primavera.
Não é do sonho num país do Sul.
Mataram o poeta, feneceu a estrela
Ficou muda a mesa do banquete.
Oh! Hora Azul, que paz retê-la!
Porque o voo a pomba não repete?
Só homens comendo. Os deuses mortos. Flores?
Não! Mas ia de alma a alma uma
Flor infinda. Restos não há se lá fores
Nem a flor perfumou ou perfuma.
Só homens lá, só almas alargando
Cada alma. E a paz não era pomba
Já, mas aquele eflúvio brando
Que de cada alma tomba e tomba.
Mas era Falla afinal que falava
E o sonho morreu, a pomba não.
Escorre-me o vulcão de futura lava:
Esperança é o que todos são!
António Simões. in "Diálogo", suplemento de cultura
letras e artes do "Diário Ilustrado", 9 Julho 1957.
Legenda Íntima 65.
Augusto Mota.
Em certos jogos de carícias as cartas atiradas
para a mesa fazem parte de um baralho
viciado, porque alguém retirou o ás
de copas do respectivo naipe.

a árvore dos sonhos

Por prazer do sonho adormeço sob o cansaço da viagem da véspera e revejo os frutos que já repousam em minhas mãos. Todo o pomar de nossas intenções se abre às carícias do vento fresco e brando que murmura novos desígnios para futuras colheitas.
Continuo pelas margens do sono e do sonho e sorvo cada uma das sementes carnosas que tais frutos me oferecem em sua rósea aparência. São romãs, por certo, pois vejo-me a descansar os olhos na frescura da sua polpa, como se estivesse a preparar os ingredientes de uma bebida requintada. Ou de um tónico para todos os males que definham as noites e se atravessam nas paisagens agrestes de alguns sonhos opressivos.
Que estranho é este laboratório do sonho quando fazemos o jogo dos pequenos prazeres e deixamos que tudo aconteça e seja retribuído em oferenda simbólica! Por isso os frutos são intenções e cada árvore a sagração do nosso existir. Por isso temos de colher tanto fruto para amenizar a memória deles em nossas mãos e descrever cada gesto como louvor e purificação. É que a paz, a nossa e a dos outros, se define e é aceite quando tudo está bem conjugado na gramática dos nossos verbos particulares. De outro modo definharão as sensações já antecipadas com tanto prazer e o sonho não passará de angústia adiada, de criação subvertida, de vigília atormentada.
Vamos, pois, adormecer sabiamente e desejar que no pomar dos sonhos frutifiquem as romãs e as intenções que alimentarão o exercício dos dias.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Os Frescos.
Tinta plástica e caseína sobre platex.
3,60m X 1,70m. Augusto Mota. 1969.

16/11/2005

Os Doces.
Tinta plástica e caseína sobre platex.
3,60m X 1,70m. Augusto Mota. 1969

15/11/2005

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / Loas e Lais a Fernando Pessoa

III
E, se a gema do Mestre é sal e pão,
Se Opiário, foi alucinogéneo,
Não façam, só da "polis", a prisão,
Não matem, outra vez, o verde Génio.
Paulo Brito e Abreu, inédito, Janeiro 2004.

Treze Maneiras de Cantar um Melro


Wallace Stevens é um dos maiores poetas norte americanos do séc. XX, ao lado de Ezra Pound, T.S. Elliot, William C. Williams e Marianne Moore.Posted by Picasa
I
Em vinte montanhas nevadas
Só uma coisa se movia:
O olho do melro.
II
Eu estava entre três opções,
Como árvore
Em que pousaram três melros.
III
O melro girava no vento outonal.
Era um figurante na pantomina.
IV
Um homem e uma mulher
Dá um.
Um homem e um mulher e um melro
Dá um.
V
Não sei se prefiro
A beleza das inflexões
Ou a das insinuações,
O assobio do melro
Ou o instante depois.
VI
O gelo cobria a longa janela
Com bárbaros cristais.
A sombra do melro
Cruzava de lá para cá.
E na sombra
Desenhou-se
Uma causa indecifrável.
VII
Ó homem magro de Haddam,
Por que sonhais com aves douradas?
Acaso não vedes o melro
A caminhar por entre os pés
Das mulheres que vos cercam?
VIII
Sei de nobres canções
E ritmos lúcidos, irresistíveis;
Mas sei também
Que o melro tem a ver
Com o que sei.
IX
Quando voou além de onde a vista alcança
O melro demarcou o limite
De um de muitos círculos.
X
Ao ver melros voando
Numa luz esverdeada,
mesmo os cáftens da eufonia
Exclamariam espantados.
XI
Ele atravessava Connecticut
Num tilburi de vidro.
Certa vez teve medo:
Por um instante pensou
Que a sombra da carruagem
Eram melros.
XII
O rio está correndo.
O melro deve estar voando.
XIII
Era noite, a tarde toda.
Neveva
E ia nevar.
E o melro imóvel
Num galho de cedro.
William Stevens. in " William Stevens - Poemas",
Trad. de Paulo Henriques Britto.

Quadras & Quadros.
"minha mãe amassa o pão".
Minha mãe amassa a rosa. Augusto Mota.
Posted by Picasa

Treze Maneiras de ( Não ) Colher Uma Rosa*

I
Colocam-se as mãos à volta da rosa,
sem lhe tocar,
para lhe roubar a forma,
das pétalas ao pé.
II
Toca-se na rosa com a boca,
até nossos lábios serem pétalas.
III
Aspira-se-lhe o perfume intensamente,
até substituir o sangue
em nossas veias por inteiro.
IV
Fecham-se os olhos,
e, como num sonho,
levamos a rosa para dentro
do nosso coração.
V
Embrulha-se a rosa no nosso olhar,
atada com os fios do vento.
VI
Atrai-se a rosa a um encontro,
num lugar secreto da nossa alma,
e não se deixa mais sair de lá.
VII
Olha-se a rosa fixamente,
e com o fio de aço do nosso olhar,
corta-se-lhe o pé.
VIII
Tira-se todo o jardim à volta da rosa,
para que ela venha até nós,
ferida de solidão.
IX
Captura-se-lhe a chama
quando a sua cor se confunde
com o poente ou o raiar da manhã.
X
Deixa-se que o crepitar da rosa
entre em nossa alma,
misturado com o sussurrar de uma seara.
XI
Faz-se-lhe uma embuscada
quando o vento da tarde
transporta o seu perfume
dum lado para o outro.
XII
Esperamos pacientemente
que se dilua no orvalho que a cobre toda,
e bebemo-la depois,
gota a gota.
XIII
Deixamos a rosa, livre, intacta,
para a podermos colher,
com a avidez dos nossos sentidos.
António Simões, inédito.
______________________________
* O título é uma glosa do poema de Wallace Stevens "Treze Maneiras de Olhar um Melro".

Primeiros passos.
Fotografia de Nelson d'Aires.Posted by Picasa

Os Dias da Criação

Estreitava o caos, a dialéctica das sombras, os dias da criação.
Abraçava a luz.
Era como se o mundo fosse translúcido e mágico,
como um perfume raso,
como um ovo marinho que rebentasse,
porque algo já não cabia dentro dele,
e num deslumbramento que tudo abarcasse,
pudesse de novo nascer, com as folhas tenras, os pássaros
e os répteis, até chegar aos mamíferos.
Eu era antiga, como uma fonte, o ar era sagrado.
Pelos campos, a turfa, os umbrais vazios,
as lágrimas estéreis,
um clamor volátil, onde eu descobria indómitas cisternas,
a lua e os vergéis luminosos.
Os dias eram longos, povoados de mar, estrelas e solstícios.
Os olhos límpidos acordavam sobre as flores,
saindo pela noite, devastada pela escuridão dos incêndios.
Mágicas eram as folhas, e eu nascia em cada ser,
com os cavalos e os prados azuis.
Pelos olhos ancestrais, as aves surgiam,
as penas de veludo, pavões do céu ( aves de Juno ).
E eu podia assim nascer, narrar a poesia, a criação,
crescer no silêncio e dizer por dentro
de que se alimentavam os habitantes das flores.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in " Idades Sonâmbulas".

14/11/2005


Re Criação.
Fotografia de Nelson d'Aires.Posted by Picasa

Aras de Dioniso

Escrevo os dias e os nomes, os flancos, e as páginas,
o novo tempo límpido e poderoso,
sulcando anímicos vulcões, a terra e o seu fulgor luminoso,
bebendo o fogo líquido, universal,
os relâmpagos e as espirais, sobre aras de Dioniso.
Sei que sou invisível, porque nasço das vinhas
dolorosas.
Canto as uvas doces, o vinho e as imagens,
os fragmentos de luz, os seus tesouros subtis,
as suas asas florentes.
Nas frases, os pensamentos são corolas de mel,
retidas na sua estação mais densa.
Escrevo os dias e os nomes, o olhar gravado
nas texturas da memória, resumindo, o testemunho,
o domínio, os tesouros do esquecimento.
Sei que sou um fragmento, entre ruínas e despojos,
estirados, nos desenhos do vento.
Canto as uvas doces, os hinos de sol, a penumbra
deslumbrada,
e o meu rosto arde nos fulcros arrebatados dos ciclos,
das idades,
sulcando os gumes, a suavidade

da claridade transcendente.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

Fotopoema 39.
Augusto Mota.Posted by Picasa

Grades, nem de vento

Apanha-se um pássaro
( só em pensamento )
e faz-se-lhe uma gaiola
com grades de vento.
E diz-se: "Pássaro voa!";
se ele desaparecer,
é porque a gaiola é boa -
é gaiola de o não ser.
Mas se o pássaro não voar
da gaiola em questão,
é porque mesmo de vento,
ela pode ser prisão.
E enquanto o pássaro dorme,
caçador arrependido
arranca as grades de vento,
uma a uma, sem ruído.
De manã, quando acordar,
o pássaro acorda o poeta,
e vão os dois pelo ar -
só é livre quem liberta.
António Simões, Fevereiro 1984.

Fotopoema 36.
Augusto Mota.Posted by Picasa

Canto a Carlos da Maia

Ai Marinheiro...Marinheiro!
Que das águas doces
do ventre de tua mãe
- como se um príncipe fosses -
na terra de Olhão nasceste um dia.
Não sei se ventava ou chovia
mas certamente o sol brilhava
nessa noite de euforia
envergonhando a lua
que beijar-te queria.

Ai Marinheiro...Marinheiro!
Sulcando os mares da Vida
velejaste, timoneiro,
pensando rumos diferentes
de bonança e calmaria
onde as ondas fossem esperança
e a espuma fosse alegria.

Foste herói e professor,
cidadão, extremoso filho,
sigrando na terra o trilho
do Amor e da Verdade.
Foste amigo, foste pai
dos homens que dirigiste
mastro de lealdade
da bandeira que seguiste.
Por ele, teu filho - teu sangue -
orfão ficou em Outubro
quando teu corpo exangue
foi um grito verde e rubro.

Ai meu herói! Meu herói!
Se os astros adivinhassem
outro fado te dariam...
E os mares que tanto amaste
suas águas abririam
para engolir quem matou
antes que a morte matasse
quem à Vida se entregou.

Ai Carlos da Maia! Marinheiro... Marinheiro!

Glória Maria Marreiros.

13/11/2005


Jardim-Catedral.
Fotografia de Augusto Mota Posted by Picasa.

C

Agora um estranho vento experimenta X: as copas agitam-se freneticamente degladiando o espaço e a luz; os galhos quebram-se como palitos nos dentes; as folhas tremeluzem como se gritassem, para depois, mudas de tanto apelo estéril, caírem exaustas do alto, como pássaros feridos.
Na terra, as árvores são olmos, pinheiros e ciprestes, romãzeiras e macieiras.
Nos canteiros são rosas, gerberas e lírios. E há também, por vezes pássaros que, ocultos no coração das árvores, ameaçam o canto partindo o silêncio em dois.
No jardim existe um banco.
Uma ferrugem verde alastra-se pelo metal carcomendo-o como peste. A sua madeira, gasta e descascada pelos suscessivos sóis e tempestades, está também ela oca e pútrida. Todos os cães vadios vêm-lhe urinar nas pernas e todos os pássaros distraídos lhe defecam o assento. Mesmo assim este é o banco preferido do pequeno. É sempre nele, que o pequeno se senta quando vem ao jardim. É sempre nas suas costas que, com uma navalhinha que traz oculta no bolso das suas calças o menino desenha: um menino uma casa uma bola um sol um peixe e uma estrela. E é também nele sentado, que, no Verão, o pequeno lambe uma bola de gelado, vendo o sol desaparecer enxertado atrás das gargantas das gruas que imponentes despontam no horizonte.
O pequeno chega a correr e a tossir. O vento sopra de norte. O pequeno fita o céu, senta-se no banco e tosse novamente. Um fio de ranho amarelo espreita o jardim pendendo-lhe da narina esquerda. O pequeno leva a mão ao nariz e depois às calças afiando os dedos como facas. De seguida olha para oeste e vê um vulto deitado junto a um dos canteiros. Num salto, põe-se a correr na direcção do canteiro. Corre com as pernas arqueadas, sentindo nos olhos o frio e o vento. Quando se aproxima do volume quieto, ouve o coração bater-lhe por dentro como uma máquina centrífuga e leva as mãos encardidas à boca desdentada.
É ele, diz o pequeno.
Um corpo coberto de sangue jaz a seus pés. O cheiro pesado que se cheira é o cheiro da morte quando se desata. A decomposição avança rápida: um sem número incalculável de larvas visíveis já lhe trabalha o interior; moscas gordas e verdes e outros insectos de aspecto repelente rodeiam-lhe os olhos, o nariz e a boca, a barriga e as pernas.
Uma orquestra de asas estéricas sarapintam todo aquele corpo rijo numa zoada infame.
É ele, diz o pequeno.
Trinta lágrimas sujas descem-lhe como berlindes pelo pano do rosto. O pequeno tenta enxugá-las, com as costas da mão. Tosse. O ranho pende-lhe da narina como um yo-yo amarelo que ele puxa novamente para dentro. Agacha-se junto do cadáver. Afasta com gestos veementes os insectos mais gulosos e afaga com a ternura da ponta dos dedos o lombo arrefecido. Chora enquanto o vento lhe assobia ao ouvido todos os nomes daquilo que encontra. E com a raiva a pôr-lhe saliva na boca e a pele das maçãs do rosto esborratada, o pequeno diz:
-É ele. Está morto - grita.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No céu não há limões".

Jardim-Catedral. Fotografia de Augusto Mota.Posted by Picasa

Soneto a Dois Corpos

Repara bem: isto é o meu corpo -
Com palavras me esculpo e dou forma,
Enquanto vai envelhecendo o outro,
A carne do verso é sempre nova.
Repara melhor: é também teu corpo,
Pois tu que me lês não ficas de fora:
Sílaba a sílaba, traço-te o rosto
Onde meu olhar, feliz, se demora.
Habitamos os dois este soneto:
Ao evocar-te, nele te esculpi,
E passo a ter a tua companhia.
Mas deixar-te partir eu não prometo,
Nenhum de nós pode sair daqui,
Que o soneto depois se desfazia.
António Simões, in "Soneto de Água e Outros".

Fotopoema 42.
Augusto Mota Posted by Picasa

a dança das horas

Debruçados sobre um horizonte de fim de tarde aguardamos as palavras que virão animar o silêncio e a espera. Por entre os fios que puxam o Sol para trás do palco, onde dançam as horas do dia, vemos letras dispersas na paisagem que assiste ao espectáculo dos sentidos. E ouvimos o vento empurrar tais letras lá de muito longe até nós, para, assim, podermos juntá-las a nosso bel-prazer e saborear o significado das novas palavras que as mãos tacteiam em busca de um perfume secreto que acalme a dança das horas no palco das emoções.
À medida que o Sol se apaga para lá da cortina de fundo, as estrelas recolhem os fios ainda quentes de sustentarem o dia e convidam a Lua a entrar em cena. As horas exercitam novo bailado e descem no palco os fios da noite. Da teia pendem os cabos que seguram as palavras justas para o espectáculo das horas que, como marionetas, dançam o nascer da Lua. E o perfume da noite traz o sono antes do sonho e tudo adormece na paisagem. Esta, cansada, inclina-se e as letras que sobraram da construção das palavras escorregam pela linha do horizonte abaixo e fogem, apressadas, para o território-das-coisas-que-esperam. Onde desesperam.
É difícil este bailado das horas num cenário de palavras escolhidas pelas mãos sobre as letras que caminham insistentemente para nós. À noite, sobretudo, quando a paisagem se reduz a um palco iluminado pelo luar das recordações e os actores agradecem, à boca de cena, os aplausos que nunca tiveram. As horas esgotam o tempo real e ficamos, apenas, com uma saudade imensa para viver o sonho que as palavras permitem, antes de as letras deslizarem todas pela fronteira do horizonte abaixo, a caminho da inutilidade e do desespero.

Na vida real somos actores de um outro destino onde não vemos os fios que movem os nossos passos e obrigam o nosso querer. Só no sonho educamos os gestos do corpo e saboreamos o perfume do tempo que não existe nas horas.

Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

12/11/2005

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diálogos interrompidos

III-
abraço
( amor / amigo / amante )
lunar
.mar.
gabriela rocha martins, inédito, in "jamais canto de amor".
IV-
o sol
( estrela / astro maior / calor )
conversa
o
m
a
lua
n(o)ú abraço
.música em mim.
gabriela rocha martins, inédito, in "jamais canto de amor".
V-
converso com um copo vazio
1,2,3
pedras de gelo
digo
atrom uotse
d
e
v
o
l
v
a
m
-
m
e
.a aventura.
gabriela rocha martins, inédito, in "jamais canto de amor".

10/11/2005


Mãos Entrelaçadas.
Fotografia de Brian Spade. Posted by Picasa

Amor Virtual

Se as mãos de alguém viessem, virtuais,
Suavizar-me a dor, afagar-me a testa! -
Ligo o computador, busco os sinais,
Gigaherz da ternura que resta.
Carrego numa tecla e tu sais
Ao meu encontro com ar de festa:
E nas mãos, de súbito naturais,
O afago mais doce se manifesta.
Peço ao computador que derrame
Dentro de mim mais memória ram,
Pra reter-te pra sempre num ficheiro.
1000 gigabites, meu coração,
Onde cabem os que a mim se dão,
Como tu a mim te deste por inteiro.
António Simões.

Elegy XX / To his mistress going to bed


John Donne* ( 1572 - March 31, 1631 ) was a jacobean metaphysical poet. His works include sonnets, love poetry, religious poems, Latin translations, epigrams, elegies, songs and sermons.
Donne was born and raised in a roman catholic family. His father, also John Donne, was an ironmonger, who died in 1576, and left his three children and wife, Elizabeth, the daugther of John Heywood, an epigrammatist, and relative of Sir Thomas More, alone. His brother had died of a fever in prison after harbouring a priest, and a uncle, himself a jesuit priest, was executed by being hanged, drawn and quartered. Queen Elizabeth's government uniformly burdened Catholics with harassment and financial penalties. Donne was educated at the Oxford ( Hertford College ) and Cambridge; however, Catholics were barred from graduating. He travelled on the Continent and in 1596-97 accompanied the Earl of Essex on his expeditions to Cadiz and the Azores.
Come, madam, come, all rest my powers defy;
Until I labour, I in labour lie.
The foe ofttimes, having the foe in sight,
Is tired with standing, though he never fight.
Offwith that girdle, like heaven's zone glittering,
But a far fairer world encompassing.
Unpin that spangled breast-plate, wich you wear,
That th'eyes of busy fools may be stopp'd there.
Unlace yourself, for that now it is bed-time.
Off with that happy busk, wich I envy,
That still can be, and still can stand so nigh.
Your gown going off such beauteous state reveals,
As when from flowery meads th'hill's shadow steals.
Off with your wiry coronet, and show
The hairy diadems wich on you do grow.
Off with your hose and shoes; then soffly tread
In this love's hallow'd temple, this soft bed.
In such white robes heaven's angels used to be
Revealed to men; thou, angel, bring'st with thee
A heaven-like Mahomet's paradise; and though
Ill spirits walk in white, we easily know
By this these angels from an envil sprite;
Those set our hairs, but these our flesh upright.
License my roving hands, and let them go
Before, behind, between, above, below.
O, my America, my Newfoundland,
My kingdom, safest when with one man mann'd,
My Mine of precious stones, my empery;
How am I blest in thus discovering thee!
To enter in these bonds, is to be free;
Then, where my hand is set, my soul shall be.
Full nakedness! All joys are due to thee;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys. Gems wich you women use
Are like Atlanta's ball cast in men's views;
That, when a fool's eye lighteth on a gem,
His earthly soul might court that, not them.
Like pictures, or like books' gay coverings made
For laymen, are all women thus array'd.
Themselves are only mystic books, wich we
( Whom their imputed grace will dignify)
Must see reveal'd. Then, since that I may know,
As liberally as to thy midwife show
Thyself; cast all, yea, this withe linen hence;
There is no penance due to innocence:
To teach thee, I am naked first; why then,
What needst thou have more covering than a man?Posted by Picasa

Elegia: indo para o leito.
Fotografia de Christian Coigny. Posted by Picasa

Elegia: indo para o leito

Vem, Senhora, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado.
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
E deixa que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens, tu meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que minha mão adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo prazer provém
De um corpo ( como a alma sem corpo ) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atlanta:
O olho de tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns ( a que tal graça se consente )
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
O corpo de um homem te é bastante.
John Donne,
trad. Augusto Campos.
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* John Donne acompanhou o Conde de Essex na sua expedição a Cádiz e Açores. Segundo fontes documentais, Essex esteve em Silves. Incendiou-a e saqueou a parte mais significativa do Arquivo Paroquial da Catedral de Silves, então, levado para Oxford e Sevilha.
Ainda hoje é possível consultar esses documentos na Biblioteca de Oxford.

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zig / zag, zag / zig

PORTUGAL, OLIVENÇA E A DINÂMICA PENINSULAR
Ciclo de Palestras sobre o Relacionamento Peninsular e a Questão de Olivença

24 de Novembro, às 18h30m, na Casa do Alentejo

"Olivença: Continuidade Cultural e Mudança Social"
pela Professora Doutora Ana Paula Fitas
( doutorada em Estudos Portugueses - Cultura Portuguesa do séc. XX, pela Universidade Nova de Lisboa, autora da primeira tese de doutoramento sobre Olivença, docente do Ensino Superior e investigadora na área das Ciências Sociais )

Moderador
Francisco Bélard
( jornalista do semanário EXPRESSO )