25/07/2013

Rosáro Breve

 
 
 MALHAR  NO  LINHO


 
 
É com uma espécie de estupor sereno que confiro a terraplanagem da existência, mercê duvidosa dos anos compressores. A uma banca de Café de bairro, não se me estraga a vocação de viajante sentado, mais atento à fábrica de imagens com que por dentro giro e digiro a luz do mundo do que à orwelliana suinicultura em que o meu (e teu) descoroçoado País se degradou.
Vindo e indo de temperada moderação (e modulação) o corrente Estio, chega a ser gratificante apontar os óculos aos enigmas simples disso a que à falta de melhor palavra chamamos Realidade. Cuida, ó Leitor(a), que se não trata, por parte minha, de uma passividade mas sim de um alternativo malhar no linho, por assim dizer. Tu e eu, para bem mal nosso, sabemos que à desPolítica não há que dar confiança – há que dar palha, por ser burra. Só que, enquanto de todo me não vibrar través a nuca o cutelo da hora última, todo o instante me será primeiro – pois que cada novo dia ou é renascimento ou não é dia nem novo.
Em menino, eu não temia o futuro. Naturalmente não, posto que cada criança é o futuro mesmo feito corpo. Só se envelhece quando se passa a temê-lo. Nos entrementes, porém, como a gente sabe, os anos a tudo terraplanam. Outra conjunção adversativa, ainda assim, saibamos opor a tal “porém”: todavia. Assim: todavia, subir em idade (para descer a/o tempo) não é tudo amargor. À infecta fauna do regime “cagarro” de nossos tristes dias, o alegre e comovente e comovido momento contraponho, esse de quando, a casa volvendo, me dou de rosto com a taça de fruta fresca que a minha Senhora pôs a presidir à camilha antiga e limpa que a Avó dela lhe transmitiu. Como jóias vivas, os frutos dão de si a colorida água-forte & a substanciação do açúcar. Por outro mais simples lado: são pêras.
A visão é mais-que-perfeita como um pretérito longe feito perto hoje, não todavia suficiente para me fazer esquecer, ante todo este espúrio e estupefaciente carnaval de crocodilas lágrimas antecipadas pró-pré-morte de Nelson Mandela, que em 1987 (há meros 26 anos, portanto), reunida a Assembleia Geral das Nações (alegadamente) Unidas, ia a moção plenária um apelo à libertação incondicional desse gigante sul-africano. Votaram a favor 129 países. Três votaram contra: os EUA, então tragicomicamente rendidos ao Reagan, a Grã-Bretanha, da Thatcher, e um tal Portugal dum tal… Cavaco.
Nem quem viola é preso, nem quem é violado esquece. A nossa amnésia carneirinho-multitudinária persiste em procrastinar (isto é, adiar; isto é, odiar) o evidente. E o evidente é a quinta de porcos do velho Orwell, que a tudo e todos, filósofos de Café de bairro incluídos, pretende terr’arrasar.
Por meu linho, que à camilha da minha Senhora dá corpo como outrora o futuro corpo deu à minha infância, que o não permitirei sem luta. Nem sem pêras, dessas doces e de anatomia tão similar ao violino e, já agora, à minha Senhora também. 



Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 25 de Julho de 2013.
 

22/07/2013

Soneto


A QUE TRAGO  DENTRO
 




Imagino-te à porta, à minha espera,
Numa casa que é só pensamento –
Venho de longe, duma outra era,
Mas tu vives para além do tempo.

Tu és a que foste, a que já era
Antes de o meu próprio nascimento,
E que minha alma sem saber trouxera
Nos sonhos que eu à noite invento.

Teu avental feito de ar ou linho,
Preso à linha grácil da cintura,
Os braços puxando-me para ti.

E na luz desses olhos adivinho
Uma emoção que tudo transfigura:
Foi sempre e só contigo que vivi.


                                             António Simões

 
Foto: Augusto Mota / Agapanto azul (Agapanthus africanus

08/07/2013

Legendas íntimas



Litania de Sombra



 




LITANIA DE SOMBRA
 
Não perguntem nada: nós estamos dentro
do aro de frio, no frio do muro,
tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
                                  Nós estamos mudos.

Puseram açaimes nas ventas do vento,
ergueram  açudes nas águas do mar...
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
ou fora de tudo.
                          Não perguntem nada.

Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre gládios
                             a ríspida sombra.

Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
                              E talvez perdidos.





David Mourão-Ferreira, in Canto IV de «OS QUATRO CANTOS DO TEMPO» (1953-1958)






Fotos: Augusto Mota / teias de aranha orvalhadas (com manipulação cromática)