15/08/2014

Ficção breve



SALA DE ESPERA  I






Estas mulheres cheiram a flores de enterro.
Sentadas nas cadeiras verdes, quase todas vestidas de negro, orelhas argoladas de ouro, poderiam ser minhas mães. Estoiradas de filhos, gastas mas rijas, contam-se mutuamente os episódios iguais das vidas. Uma só vida multiplicada: o mesmo filho de motorizada, o mesmo falecido esposo, os mesmos vasos com sardinheiras ao mesmo janelo da cozinha. Eu não tenho motorizada, mas poderia ter tido. Talvez devesse ter tido uma. O que tenho é sono. Vem-se cedo para aqui, há muita gente para o mesmo. Copos, depressões, tristezas vitalícias. Chá, café ou leite. Dão bolachas. A instalação sonora debita o terço dos nomes, esses portáteis rosários. Espero o meu nome. Uma reprodução fotográfica do tamanho da parede apresenta um caminho na manhã de uma bosque.  Ninguém vê o caminho. Celestina de Jesus, gabinete 3 . Só sabemos este caminho, ao cabo do qual nos darão bolachas, paroxetina e flores velhas como mães de motorizadas. 




Texto de Daniel Abrunheiro, in «O Preço da Chuva», Pé de Página Editores, Coimbra, 2006, p. 119

Foto de Augusto Mota, com manipulação cromática


editado por augusto mota 
  

01/08/2014

Texto transversal 106







Ficção breve



O  CASO  DA  MORAL  DA  PORCA






O meu vizinho tem uma porca que escapou à morte por causa do cio. Foi ele, não ela, quem mo disse. E eu acreditei e acredito. Acredito mas penso. Várias coisas.
Penso que, afinal, o sexo não é a porcaria que dizem. Pelo menos a partir de sábado passado, dia da matança que não foi de matança.
Reparei há muito no facto português de as quatro letras da palavra "amor" serem as quatro primeiras, também, de "a morte". Mas isso é ortografia nacional. Este caso da porca ciosa (que se chama Ruça mas é branca e rósea como uma solteirona involuntária) levou-me para outros aléns pensativos. Mesmo. Muito.
Perguntei ao meu vizinho como é que ele sabia. Que ela, enfim, estava "saída". Ele respondeu: "Anda distraída. E despreza o comer." Fiquei maravilhado. O povo é deveras o maior sábio. Porque eu quis ver a Ruça. E vi: estava distraída. No olhar, aquela ausência mística de actriz de telenovela. No grunhir, aquela surdina que nasce das trompas do sul do corpo. No mexer, aquela preguiça enérgica de quem iria mas não vai porque só iria se fosse. Na hora, aquele instante de quem, estando ali, está acolá, perfumando de alma uma essência de corpo, tendo "corpo", por outra ordem, as mesmas letras de "porco".
A Ruça não foi abatida no sábado passado. E não o será enquanto estiver como está. O que é bom para os porcos, penso ainda, também há-de ser bom para as pessoas. Sobretudo a moral. Que é esta: se sentirmos a morte por perto, o melhor é comer pouco. Comer pouco e distrairmo-nos muito. O mais possível.


 Texto de Daniel Abrunheiro, in «O Preço da Chuva», Pé de Página Editores, Coimbra, 2006, p. 93.

 Foto obtida na net.

editado por augusto mota

 

Texto breve


O SENHOR  DO  MEL




Depois da cresta, uma alça da colmeia ainda com algum mel


O senhor do mel cochila à sombra.
Aos pés, a caixa de papelão com boiões de mel caseiro também passa pelas brasas. Está um calor de alto julho. As moscas irisadas de verdeazul tracejam de som a hora da tarde. O ar resulta da condensação da luz e da memória da água. O senhor do mel está velho. Tem cabelos brancos e pele encarnada. A boca entreaberta como um pano de teatro mastiga palavras sonhadas, trabalho de abelhas. Eu passo e escrevo.



Texto de Daniel Abrunheiro, in «O Preço da Chuva», Pé de Página Editores, Coimbra, 2006, p. 131.

Foto de Augusto Mota