25/09/2014

Rosário breve


MDI





Esta é a edição n.º 1501 do nosso Jornal. Muito bem. As minhas fuças estão pespegadas nesta página há apenas 375. Muito bem na mesma.
Há casamentos que não duram nem a décima-parte dos já quase trinta anos hebdomadários deste título.
São matrimónios, por assim dizer, sem direcção, sem escrita, sem aparato gráfico, sem quem os assine – muito menos leia. Os casamentos efémeros, de tão vulgares, nem grande publicidade chegam a ter.
Por seu lado, ele há também e também por aí andam jornais que nem para forrar a gaveta-do-bacalhau servem. São pasquins devotados ao serviço pulha e infecto dos gigantes da indústria e dos anões do comércio. São coisinhas que lambem. Praticam o “jornalismo” papa-croquetes dos portos-de-honra, das tasquinhas com seu secretário de Estado portátil, das feirolas “medievais” pré-congeladas e pré-embaladas para pasmo dos asnos que confundem a História com as barracas de farturas.
Tais casamentos e tais publicações não duram – porque são existências moles, invertebradas, servis, viscosas, instantâneas, aguadilhas, vocacionadas para bufas de si mesmas.
Nos matrimónios céleres, enfim, não toco.
Já nos jornais sim, toco – mas faço-o de dedos em pinça repugnada: ena tanto especialista!, ena tantas sabedorias!, ena tanta cagança!, ena tanto sobrinho de banqueiro!, ena tanto autarca!, ena tanta namorada do CR7!
A excepção está à minha frente. Escritorzeco de pastelaria de província, habituei-me a este lugar de alumínio no extremo norte da galeria da Rita. A excepção é um casal já encanecido, desses que os anos em comum volvem idênticos como irmãos naturais.
Arreiam boa roupa lavada. Calçam óptimo couro.
Ela veio de fina blusa branca sobre saia de xadrez-da-Escócia. É de olhos azuis como duas janelas viradas para o mar na manhã clara.
Ele é cavalheiro de porte não pequeno, camisa cinzenta matizada de uma chuva de rápidos riscos verdes, calças de fazenda ponderosa, morna, daquela que faz bem à pele.
Evidentemente, invejo-os.
Às vezes, vem aqui o filho ter com eles. Tornam-se então uma espécie de namorados veteranos que se dão ao luxo de ter um amigo mais novo. É bonito de ver-se.
Venho a saber que se casaram em 1985 – há 1501 semanas, mais precisamente.
Desiludidos fiquem uns, satisfeitos por eles se quedem, como me quedo eu, os demais – pois que nem aqueles nem estes esperaram jamais que Ribatejanamente durassem tanto.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», de 25 de Setembro de 2014


editado por augusto mota 
  

22/09/2014

Olhares Montanheiros








Depois das férias cá estamos nós a regressar à rotina do "Café Com Livros". Assim, o próximo “Café Com Livros” será no dia 27 deste mês de Setembro, pelas 15h e 15m no Moinho do Papel, onde teremos a companhia de dois "Olhares Montanheiros" que encontraram, na palavra escrita e na fotografia, a forma de partilharem connosco as suas vivências por esse mundo fora, subindo e respeitando cada pedaço de montanha que iam vencendo. 
É pois, pelo olhar de João M. Gil e Nuno Verdasca que os segredos das montanhas se desvendam em imagens simples e soberbas, pela lente indiscreta das suas câmaras fotográficas. Em passos aventureiros, mas seguros, a beleza de planaltos, picos, encostas e desfiladeiros, desfaz-se numa montra de palavras concretizada no livro “Olhares Montanheiros”.
O fascínio das montanhas fará com que neste “Café Com Livros” brotem histórias, conversas e poemas…
Esperamos por si. E até lá, não recuse:
- Um café quente
- Um livro fresco
- Uma ideia nova…


                     Abraços trestulianos

editado por augusto mota


14/09/2014

Fotopoema









in «O CORPO, LUGAR DE EXÍLIO», edição "Castália", 2013 

O livro está à venda em www.amazon.com 
Quem estiver interessado e não esteja familiarizado com as compras na Amazon poderá dirigir-se directamente à autora. 




Texto transversal







10/09/2014

Fotopoema








Editado por Augusto Mota

04/09/2014

Crónica


ISTO DAS CORES





Na mesa em frente à minha, um homem doente. É quase ’inda rapaz: uns bons (ou maus) quinze anos deve ele perfazer a menos dos meus. O rosto dele é um clarão sanguíneo. A moção gestual dele é muito lenta – como se até o ar lhe doesse. De que sofrerá? De estar vivo naquele corpo, talvez. Tomou (mas tão lentamente!) um copo alto de café-com-leite. Ei-lo a respirar do esforço. O copo de água atira-lhe quatro comprimidos (um azul, um verde, um rosa e um prateado) para o labirinto gástrico (vermelho-negro). O olhar dele é feito de duas ilhotas pretas sobre nácar coagulado. A roupa é de lavada decência – alguém (a mãe?) trata dele ainda. Usa ao pescoço um fio religioso que lhe pesa na cerviz: Deus custa quilogramas na aflição.
Tomou-o cedo de mais a terminação: o meu Leitor e eu, é a um moribundo que assistimos.
Repórter coscuvilheiro, junto da patroa do botequim indago dele. Diz-me ela que o rapaz é de família de bem & de bens. Mais me conta que, de quatro filhos, é ele o último. Último duas vezes: porque dos quatro o mais novo e porque único desde que, aos três outros, os finou aquela maleita irreciclável da turbina cardíaca.
Chega entretanto à esplanada a minha pomba das sete e dez. Veio com a alba no bico. É lustrosa fêmea: maciça, virente-plúmbea, duas graciosas dedadas de tinta permanente na junção posterior das asas. Cabeça muito viva, mui latina, mui ladina. Mesmeriza-me sem pudor: quer do comer que sabe ela lhe trago eu no saco. Faço-a esperar um pouco: estou a escrever para o meu Leitor. Ela circunvagueia como um polícia aborrecido da vida. Pica do chão, por desfastio, uma migalha invisível. Sinto a indignação a crescer nela. Mas, por me faltarem dois parágrafos crónicos, haverá de esperar um pouco mais.
Quando dela aparto o olhar, descubro, para serena mágoa minha, que se foi já embora o moço do atávico coração. Ei-lo longe já além, além passando milimetricamente a passadeira. Causa ele uma fila nervosa de carros impacientes: ser automobilista é não cuidar do coração. Perdi-o. O meu Leitor perde-se dele. Não voltaremos, talvez a escreve-lê-lo. Resta-nos a pomba. São sete e dezassete da manhã, sete minutos a demorámos já.
Vou ao saco. Tenho arroz para ela. Quatro singelos bagos tenho eu para ela: um azul, um verde, um rosa e um todo de prata – como só ela. 

Crónica de Daniel Abrunheiro, in "O Ribatejo", de 4 de Setembro de 2014

Ilustração: Arte postal, Miguel Flávio, flo-master e tinta da china sobre postal dos CTT, 1963

Editado por augusto mota