31/01/2015

Café com livros




CANTA, AMIGO CANTA





No passado sábado, dia 24, teve lugar no auditório do m|i|mo – museu da imagem em movimento, mais uma tertúlia “Café com livros”, a já tradicional iniciativa do grupo Trêstúlias com(vida). Perante uma sala cheia foram apresentados os convidados: Rui Pato, médico e músico, guitarrista de Zeca Afonso, e João Carlos Callixto, autor do livro “Canta, amigo canta – Nova Canção Portuguesa (1960-1974) ”, Âncora  Editora, Lisboa, 2014. 

João Carlos Callixto nasceu em Lisboa em 1977. A música portuguesa tem sido a sua paixão desde a segunda metade dos anos 90 do séc. XX, mas o período sobre o qual mais se tem debruçado é o que medeia entre o advento do vinil no nosso país, em meados dos anos 50, e o denominado boom do rock português, nos inícios dos anos 80. Entre 2011 e 2012, foi um dos autores da série documental em 26 episódios «Estranha Forma de Vida – Uma História da Música Popular Portuguesa», transmitida pela RTP e nomeada para o Prémio Autores 2012, da SPA. Actualmente é autor do programa de música "Passado ao Presente", transmitido semanalmente na RDP Internacional. «Canta, amigo canta», que tem prefácio de Rui Pato, é fruto da sua paixão pela obra de uma série de cantores e grupos que transformaram o Portugal da época, com reflexos bem presentes até ao dia de hoje, pelo que este livro pode ser considerado um “verdadeiro dicionário de cantores e grupos” dos anos a que diz respeito. 

 
João Carlos Callixto e Rui Pato 

Rui Pato encantou a assistência com muitas e variadas estórias da sua colaboração com Zeca Afonso, algumas das quais podem ser encontradas neste sítio: José Afonso - Rui Pato - Sapo que, por sua vez, foram transcritas da obra "Livra-te do medo - estórias e andanças do Zeca Afonso", de José A. Salvador, editora “A Regra do Jogo”, 1984.

A tertúlia começou com poesia, dando a conhecer o livro «Para Ti», do escritor João Morgado, do qual David Teles leu o poema “A Árvore dos Peixes”:

 
David Teles lendo "A Árvore dos Peixes"

A ÁRVORE DOS PEIXES 

Contigo nascem peixes nas árvores
e não estranho
porque contigo
o mundo
não tem nada a ver
com o mundo que eu conheço…

Comemos um peixe negro
debaixo da árvore em que nasceu,
descascamo-lo como se fosse fruta
mas sabemos que é um peixe
filho de uma árvore.

No meu mundo
as árvores não são mares
e não dão peixes,
mas esse é o meu mundo.

Quando estou contigo
o mundo é diferente
e há barcos na folhagem das árvores
à sombra das quais comemos peixe
acabadinho de colher.

Se fosse para o mundo ser igual
sempre igual
eu não estava contigo.

Até podia ser feliz na mesma
num mundo de árvores
que dão frutos e não peixes
mas seria feliz sozinho
e eu estou encantado
de estar a teu lado
e comer peixe com as mãos.

No nosso mundo somos felizes
mesmo quando toco a tua pele
com os dedos sujos de peixe
porque ao fim da tarde
subimos o tronco
e tomamos banho nus
na copa da árvore.

O mundo é tão diferentemente belo
quando estou contigo…
e acho que isso explicaria a razão
porque estou contigo
se outras razões melhores não tivesse!

Afinal, é simples o nosso segredo!

Agora, vem, vem sem medo,
vamos ao mar,
vamos ao fundo do mar de mão dada
pescar juntos frutas na madrugada!


João Morgado, in «Para Ti», editorial Kreamus, 2014, p.47


David Teles chamou ainda a atenção para o livro "O Beijo de Humphrey Bogart", de Fernando José Rodrigues, Chiado Editora, 2014. O autor deste romance nasceu em Coimbra, em 1956, e vive em Leiria. Licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra, pós-graduado em Ciências da Educação, é professor do Ensino Secundário, formador, escritor e actor fundador do Crupo Artes Novas.


Mercília Francisco mostra a capa do livro «A Leiria de Miguel Torga»

Seguiu-se, como anunciado, uma evocação de Miguel Torga, que morreu fez no dia 17 deste mês de Janeiro vinte anos. Foi recordada, por isso, a sua estadia em Leiria, tendo Mercília Francisco chamado a atenção para o livro de Carlos Alberto Silva «A Leiria de Miguel Torga – Guia da Cidade», edição da Junta de Freguesia de Leiria, 2010, e produzido pela Textiverso. Neste guia se descrevem alguns dos espaços da cidade referidos pelo escritor na sua obra ou em que este habitualmente fazia a sua vida, chamando especial atenção para a localização do consultório e da habitação, a casa de amigos, a biblioteca, o teatro e o edifício onde esteve preso.
 
Mercília Francisco lendo o conto «Mariana»

Da obra de Miguel Torga «Novos Contos da Montanha», leu Mercília Francisco o conto "Mariana". A propósito deste conto chama-se a atenção para a análise seguinte, encontrada em http://blogdaruanove.blogs.sapo.pt/155288.html


“Em Novos Contos da Montanha (1944), como o nome indicia, Torga retomou uma ligação umbilical à atmosfera e aos contos publicados anteriormente em Montanha (1941), uma colectânea censurada pelo regime. (Surgiria mais tarde em duas edições brasileiras, já sob o título Contos da Montanha, voltando uma nova edição portuguesa, a quarta, a ser publicada apenas nos anos 60.)
 
Rui Pato ouve atentamente a evocação de Miguel Torga

Nesta terceira colectânea de contos essencialmente rurais, o autor apresenta novamente a sua particular visão cosmogónica. Surgem narrativas de um mundo contido na sua realidade regional ou local que, paradoxalmente, é paradigma de realidades universais. O Alma Grande, A Festa, O Senhor, são contos que retratam diferentes dimensões da religião e da religiosidade, cruzando o sagrado e o profano, e consolidam esta particular vertente da escrita torguiana.
Mas, essencialmente, é neste volume que o escritor conclui uma brilhante trilogia sobre a autocracia feminina e o arquétipo da mãe e da mulher. Iniciada com o rito de passagem e a catarse de Madalena (Bichos, 1940), continuada com a vida trágica da mater dolorosa que é Maria Lionça (Montanha, 1941), essa trilogia completa-se aqui com a maternidade sem pecado de Mariana. Mariana é a mulher que não conhece pecado, pois apenas reflecte o apelo e o instinto procriador da natureza.”


Mercília Francisco leu ainda os dois textos seguintes do «Diário III», de Miguel Torga,1945: 


Caldelas, 7 de Agosto – A primeira bomba atómica. Que maravilhoso bicho, o homem! Teimou, teimou, teimou e descobriu a pedra filosofal!

Caldelas, 8 de Agosto – Em Hiroshima, onde a bomba atómica foi lançada, tudo quanto era vida morreu. Por causa do fumo e da poeira que se levantaram, o mundo esteve de respiração suspensa durante vinte e quatro horas, sem saber o que tinha acontecido. Mas hoje de manhã, os jornais, diligentes, já estavam senhores da verdade inteira. Não tinham morrido vinte, trinta ou quarenta mil pessoas, como era de temer. Para matar a ridicularia de quarenta mil pessoas não era necessário tanto sonho. Não, felizmente, não se tratava de um desapontamento. Nem quarenta, nem sessenta, nem setenta mil mortos. Isto só: todos os seres vivos liquidados!

E a humanidade dobrou o jornal aliviada.”


Mariana Neves lendo excertos de "O Corvo"

Mariana Neves deu, mais uma vez, a sua colaboração a “Café com livros”: não só leu algumas partes do extenso poema de Edgar Allan Poe “O Corvo” (The Raven – numa rítmica tradução de Fernando Pessoa), como apresentou o desenho, em forma de corvo, com a palavra do original inglês com que a partir de mais ou menos do meio do poema até ao fim, o poeta termina cada estância: "Nevermore" (“Nunca mais”).


O Corvo "Nevermore" desenhado por Mariana Neves

 O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
 (...)
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
(...)



Mas à assistência desta tertúlia estavam reservados dois agradáveis momentos, bem guardados no segredo dos deuses, combinados apenas com Rosa Neves. Já a colaboração poética tinha acabado e Rui Pato começado a contar as suas andanças com Zeca Afonso, quando, discretamente, entra na sala Francisco Fanhais, para surpresa de todos e do seu amigo Rui Pato, com quem troca efusivo abraço. 

Francisco Fanhais

Visivelmente agradado com a surpresa Rui Pato recomeça a conversa. Daí a pouco entra outro Amigo também, Manuel Freire, o que surpreendeu ainda mais Rui Pato,  que com espanto comentou: “Mas o que é que está a acontecer aqui?!” Mais um grande abraço e dois testemunhos de “peso” da sua  convivência com o Zeca, com o Adriano e com outros cantores desses tempos “de brasa”, de antes de Abril de 74, cuja obra João Carlos Callixto agora deixa registada no livro "Canta, amigo canta"


Manuel Freire e João Carlos Callixto

Rui Pato, recomposto da surpresa, lá continuou a relembrar as histórias desses tempos, agora acompanhado pelos seus dois Amigos.

Manuel Freire teve que sair mais cedo da tertúlia, pois viera a Leiria para ser um dos apresentadores, com Carlos Fernandes, na livraria Arquivo, do livro de cartoons do seu amigo Zé Oliveira «30 anos a dar BRONCAS». Francisco Fanhais ficou até ao fim.





Como Rui Pato trouxera a viola com que costumava acompanhar José Afonso, mas apenas para mostrar tão preciosa peça de museu, acabou por anuir ao pedido da assistência e acompanhar Francisco Fanhais em três canções do reportório do Zeca: “Que amor não me engana” (letra de José Afonso), “Qualquer dia” (letra de Fernando Miguel Bernardes) e “Canção de embalar” (letra de José Afonso). João Carlos Callixto foi "ilustrando" as estórias e as músicas mostrando as capas históricas dos discos de vinil que tinha trazido da sua colecção particular.


Rui Pato acompanha Francisco Fanhais em três canções
 do reportório de José Afonso

Lídia Raquel, Rui Pato, Rosa Neves, João Carlos Callixto, Francisco Fanhais,
 Mercília Francisco e Mariana Neves

E, assim, em beleza e descontraidamente, terminou mais uma tertúlia Café com livros, que agradece a todos o contributo da sua presença e participação activa no diálogo com os nossos convidados, com Francisco Fanhais e Manuel Freire. 
Voltaremos a encontrar-nos a 28 de Março, para estarmos à conversa com o Professor Santana Castilho sobre o seu livro "Crónicas de Dias de Desespero", que retrata, entre outros, os problemas da educação em Portugal. 
 

Até lá não recusem:

Um café quente

  
Um livro fresco

  
Uma ideia nova


Fotos (excepto a indicada), texto e edição de Augusto Mota