26/03/2015

Rosário breve



MORREU HELDER, VIVA HERBERTO

                                    (1930-2015)





1
Nas fêmeas envelhecidas revejo a minha extinta Mãe.
Como Francisco de Assis, amantes todas de animais – do animal da Morte sobretudo.

2
Consta que o mais veloz ser do mundo é o falcão-peregrino. Em voo-picado, já 400 km/h lhe cronometraram. Pobre equívoco de ornitólogos e velocistas: nem maior velocidade nem mais brusco voo há que o da humana vida.

3
Leitor, és ledor: vedor de águas subterrâneas. Ou de freáticos sentidos ocultos. De bífido ramúsculo de oliveira nas mãos, busca o aquático veio da tua vida. Não está nos livros. Ou estará?

4
Em menino, breve rapaz.
Homem feito, grave rapace.

5
1930-2015: duas datas podem sumir, podem consumar, podem consumir – mas resumir, não podem.

6
Morre o homem, a Poesia dele fica: retumbante vitória fora de casa. Isto é e seja: fora do corpo. Finalmente. Final mente.

7
Não mais passos em volta. Não mais a cabeça entre as mãos. Nem depois da morte, como lho relembrou Ruy Belo. O futuro ganhou o direito a ser todo antes.

8
Bares anoitecidos como cerveja preta, marinheiros em terra esclarecendo a cálices de genebra a manhã enregelante. Placentas sem uso e preservativos por usar atirados ao lixo do amor-de-aluguer. O peixe vermelho-amarelo-preto. Nenhum Pã e nenhuma flauta. Camões a morrer de fome, Pessoa de sede, Herberto por estar na hora. Toda a gente com o seu empregozinho a ir-vir-ar-e-tornar de uma Cacilhas sem Ameríndias à gávea. Mas a Poesia na mesma. Mas a inelutabilidade dela.

9
Morreu o corpo-Helder: cinza reiterada. Persi’xiste o escriba-Herberto: glorioso maluco, sigilosa máquina voadora (falcão-peregrino, mãe de si mesmo). Não concedia entrevistas. Vistas, sim: todas. Interiores todas.

10
Todos seremos, um dia, uma sombra numa frase de alguém a nosso respeito. Ele, HH, não. Ele, uma luz sim. Vêde vós essas assisfranciscanas senhoras tão envelhecidamente amáveis para com os animais. Cabeça entre mães.
E Herberto em volta.
Ouvi-lhe os passos. 


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 26 de Março de 2015

Ilustração de Augusto Mota, 1960, repescada da primeira sobrecapa para livros da ( de boa memória! ) Livraria Martins, Leiria.


editado por augusto mota


24/03/2015

In memoriam


OS PASSOS EM VOLTA DA MEMÓRIA DE HERBERTO HELDER





     Um poeta está sentado na Holanda. Pensa na tradição. Diz para si: eu sou alimentado pelos séculos, vivo afogado na história de outros homens. Contudo, a sua alma é atravessada por um sopro de qualidade original. Tem a alma perdida - é um inocente que maneja o fogo infernal. Abre-se no fundo da sua meditação holandesa um grande lago. A solidão - e em volta passeiam vacas. A Holanda agora é isto: vacas, e  ao centro - o inferno, a revolucionária inocência de um poeta sentado.
     - Por quem me tomam? - pode ele perguntar. - O que eu quero é o amor.
    E sempre assim: cidades inexplicáveis no meio da terra, ou prados imensos onde se tem medo. Prados para vacas, não para um poeta di-la-ce-ra-do por uma tormentosa inocência.

Herberto Helder, in «OS PASSOS EM VOLTA», início do conto "Holanda", p. 17, Portugália Editora, Lisboa, 1963.



editado por augusto mota


20/03/2015

Texto transversal








12/03/2015

Rosário breve



PORTUGAL  ÜBER  ALLES






O (grande) actor Jeremy Irons afirmou recentemente numa entrevista que, após ter promovido e perdido duas guerras mundiais no século XX, a Alemanha voltou à carga – mas desta vez para vencer. É uma guerra sem trincheiras, sem tanques, sem aviões e sem capacetes à vista.
Mas é uma guerra – a económico-financeira. Pode não ter sido por estas palavras, mas foi neste sentido. Infelizmente, só posso concordar com ele.
É por isso que o que se passa com a Grécia me faz bem. Duvido que tudo aquilo dê grande coisa. Mas se der alguma, nem que seja pequena, já não é nada mau. A autoridade do Estado e o poder dos cidadãos raras vezes são coincidentes. Aquela sobrepuja este quase sempre. Até que. O caso helénico pode ajudar os espoliados (os da Europa pelo menos) a bater o pé, e com estrondo, no chão continental.
Circunstâncias minhas têm-me levado a ser mais sensível (e mais vulnerável) às misérias que por aí grassam. Quando digo “por aí”, digo Portugal. É o sítio que me importa. Para mim, e por assim dizer, Portugal über alles.
Hordas de desvalidos inçam as artérias. A maioria é de pedintes que não pedem, mas um gajo topa logo que ali anda e vai a desesperança irremediável. Já não se trata da cómoda, livresca e afrancesada “angústia existencial” das filosofias de badana. Não. É angústia a sério. É estreiteza de tudo: de garganta, de bolso, de futuro. (E angústia e estreiteza são de íntima conexão etimológica – não há coincidências nestas coisas).
Pois é, tenho andado mais permeável à arrepiada e arrepiante dramaturgia social. Talvez por uma questão de espelho. Há dias poucos, sentei-me num muro que beira uma encruzilhada urbana. Ena, tantos eus! Houve aqui alguém que se enganou. E que foi enganado. As duas coisas complementam-se. E no fim ganham os Alemães, como na bola.
Deveríamos, acho eu, ver-nos gregos. Primeiro, correr com esta seita seguidista, acéfala e invertebrada que não conhece nem reconhece pessoas, só números. (Curioso: no preciso momento em que escrevo, o ministro da Saúde, debita minudências vãs numa comissão parlamentar da especialidade. Mas há tempos, ali para o Baixo Vouga, uma velhota de 92 anos esteve três dias esticada numa maca, consciente sempre, à espera de uma urgência utópica.)
A nossa bancarrota começa por ser moral. Depois, é de batatas em casa. O trabalho é encarado pelos empregadores como um luxo odioso. Se não o trabalho, então o salário. Olhai o ataque que por aí vai à contratação colectiva. A banca é o que todos sabemos: um antro infecto de ladrões, pandora de ali-babás. E as ruas enegrecem como se fechadas ao céu.
A vida anda a doer-nos de mais. A mim, anda. Coisas minhas, é certo, algumas das quais, todavia, se irmanam às dos meus compatriotas. Dos meus compatriotas, chamemos-lhes assim, portugregos.
Que uma vez mais e ainda, no fim, percam os Alemães. E que aquela parte do Vouga só seja baixa de nome.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 12 de Março de 2015


Ilustração: Carlos Loures / Arte Postal, guache sobre postal dos CTT, enviado de Tomar, Dezembro de 1962


editado por  augusto mota

09/03/2015

Texto transversal








06/03/2015

Texto transversal