25/10/2015

Café com livros



ROCK DE INTERVENÇÃO - PORQUÊ?





Na tarde de Sábado, dia 10 de Outubro, teve lugar mais uma tertúlia “Café com livros”, a já tradicional iniciativa do grupo Trêstúlias com(vida). Desta vez a sessão teve lugar no auditório do Museu de Leiria (a inaugurar no próximo dia 15 de Novembro, no edifício do antigo convento de Santo Agostinho).
O convidado foi António Manuel Ribeiro, dos UHF, que falou sobre “Rock de Intervenção – Porquê?”. Fez a sua apresentação Cristina Barbosa:
 
Cristina Barbosa, António Manuel Ribeiro, Rosa Neves e Lídia Raquel

ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO nasceu em Almada no dia 2 de Agosto de 1954. Fez o liceu por lá.  Quando teve de optar por Letras ou Ciências, o jeito para o desenho e as boas notas a matemática  levá-lo-iam,  para a área da arquitectura. Aproveitando a sua vocação artística, constrói a sua primeira guitarra no início da adolescência.
“Resolveu” chumbar no antigo 7.º ano, porque, segundo ele ,“os cristais e as fórmulas químicas obstruíam-lhe o caminho”. Retomou o 6.º ano de letras porque a poesia, a literatura e os originais que ia escrevendo falavam mais alto.
Nos anos fronteiros à revolução de Abril vivia – bem – da pintura. Com a democracia restabelecida e a tropa/guerra definitivamente afastada, entrou na Faculdade de Direito.
No ano lectivo de 1976/77 fartou-se de tanta RGA (Reuniões Gerais de Alunos) atravessou o relvado da cidade universitária e inscreveu-se em Filologia Românica.
Consegue um estágio no jornal «Record» onde permanece até 1980. Durante estes anos conciliou o estágio profissional com a pintura e os concertos que ia dando nos bares da grande Lisboa com a sua banda, mas ainda sem editora. Forçado a abandonar os estudos pelo nascimento do seu primeiro filho passa a trabalhar na Câmara Municipal de Almada, abdicando (temporariamente!) de parte dos planos que tinha traçado.  
 

Os UHF, formados em 1978, partem para a corrida da música pop/rock deste país com os  seus “Cavalos”,  e a corrida não mais parou…
A paixão sempre crescente pela música, fez com que António M. Ribeiro com Carlos Peres, Renato Gomes e Américo Manuel fossem construindo a solidez de uma banda que acabaria por se afirmar com pujança no panorama do rock em Portugal. Absorvidos no esforço diário de serem uma banda e teimarem em cantar e tocar, não se dão conta de que estão a fundar o mais importante movimento de renovação da música portuguesa pós Abril de 74. E nada ficará como dantes, porque se ergueu toda uma indústria, um mercado, e porque o rock vingou e se tornou português.
 
 
O apelo da escrita fê-lo escrever, na adolescência, dois romances que decidiu rasgar por serem, diz: “demasiado premonitórios”.
Mas, ao  longo  dos  anos  manteve  a  escrita  de crónicas para jornais e rádios. Ajudou a fundar duas rádios piratas onde assumiu programas de autor – a rádio é uma paixão - confessa.
Assina mensalmente uma coluna de opinião no semanário digital «Setubalnarede».
É autor de textos, que vão da música ao futebol, dispersos por vários livros. É produtor discográfico dos trabalhos da própria banda e de outras.
Autor da grande maioria das canções, António Manuel Ribeiro é um vocalista icónico e dos mais carismáticos do rock em Portugal. 




Antes de dar a palavra a António Manuel Ribeiro houve, como sempre, um momento de poesia que é  dedicado ao convidado. 
 

Lídia Raquel referiu o gosto que António Manuel Ribeiro tem pela escrita e pela poesia, introduzindo, deste modo, a leitura feita por Mariana Neves do texto de Mia Couto "O menino que escrevia versos", assim como a leitura do poema de Pablo Neruda "A Poesia", feita por Mercília Francisco.


Mariana Neves lendo o excerto do texto de Mia Couto
".../...
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
- São meus versos, sim.   
O pai logo sentenciara: havia de tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava. mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
- O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor.
O doutor supendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está a ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te assaltam essas dores?
- O que melhor sei fazer, excelência.
- E o que é?
- É sonhar." 
 
Mercília Francisco lê o poema de Pablo Neruda "A Poesia"
 A POESIA

Foi nessa idade que a poesia me veio buscar
Não sei de onde veio
Do inverno, de um rio
Não sei como nem quando
Não, não eram vozes
Não eram palavras
Nem silêncio
Mas da rua fui convocado
Dos galhos da noite
Abruptamente entre outros
Entre fogos violentos
Voltando sozinho
Lá estava eu sem rosto
E fui tocado 


Rosa Neves anuncia mais uma intervenção poética de Mercília Francisco

 
 Mercília Francisco e a sua leitura expressiva de "Arte de Pontaria"

ARTE DE PONTARIA

Invadiram os séculos que estão dentro de nós
invadiram a língua o canto o ritmo     
antes fossem exércitos fardados    
antes as botas de um invasor visível        
não estes missionários da nova fé       
com seus mercados sobre os nossos ombros    
e seus discursos de sílabas pontiagudas       
para gente de espinha de curvar.
Quando eles falam o céu fica cinzento      
e há rasto de cinza e desamparo.
Apetece pegar no poema
e disparar.


Manuel Alegre, in «Bairro Ocidental», Edições D. Quixote, 2015

David Teles terminou o momento poético dedicado ao convidado desta tertúlia da melhor maneira, lendo, com a força e emoção que lhe são características, um poema do próprio António Manuel Ribeiro - "Vernáculo para um homem comum":



Estou cansado, pá
Cansado e parado por dentro
Sem vontade de escolher um rumo
Sem vontade de fugir
Sem vontade de ficar
Parei dentro de mim
Olho à volta e desconheço o sítio
As pessoas, a fala, os movimentos
A tristeza perfilada por horários
Este odor niserável que nos envolve
Como se nada acontecesse
E tudo corresse nos eixos.
Estou cansado destes filhos da puta que vejo passar
Idiotas covencidos
Que um dia um voto lançou pela TV
E se acham a desempenhar uma tarefa magnífica.
Com requinte de filhos da puta
Sabem justificar a corrupção
O deserto de ideias
Os projectos avulso para coisa nenhuma
A sua gentil reforma e as regalias
Esses idiotas que se sentam frente-a-frente no ecrã
À hora  do jantar para vomitar
O escabeche de um bolo de palavras sem sentido
Filhos da puta porque se eternizam
Se levam a sério
E nos esmigalham o crânio com as suas banalidades:
O sôtor, vai-me desculpar
O que eu quero é mandá-los cagar
Para um campo de refugiados qualquer
Vê-los de Marlboro entre os dedos a passear o esqueleto 
Entre os esqueletos
Naquela mistura de cheiros e cólicas que sufoca
Apenas e só - sufoca.
 

Estou cansado
Cansado da rotina
Desta mentira que é a vida
Servida respeitosamente
Com ferrete
Obediente
Obediente.

Estou cansado de viver neste mesmo pequeno país que devoram
Escudados pelas desculpas mais miseráveis
Este charco bafiento onde eles pastam
Gordos que engordam
Ricos que amealham sem parar
Idiotas que gritam
Paneleiros que se agitam de dedo no ar
Filhos da puta a dar a dar
Enquanto dá a teta da vaca do Estado
Nada sabem de história
Nada sabem porque nada lêem além
Da primeira página da Bola
O Notícias a correr
E o Expresso, porque sim! 
Nada sabem das ideias do homem
Da democracia
Atenas e Roma
Os Tribunos e as portas abertas
E a ética e o diálogo que inventaram o governo do povo pelo povo
 Apenas guardam o circo  e amansam as feras
Dão de comer à família até à diarreia
Aceitam a absolvição
E lavam as manápulas na água benta da convivência sã
Desde que todos se sustentem na sustentação do sistema
Contratualizem (oh neologismo) o gado miúdo
Enfatizem o discurso da culpa alheia
Pela esquizofrenia politicamente correcta:
Quando gritam, até parece que se levam a sério
Mas ao fundo, na sacristia de São Bento
O guião escrito é seguido pelas sombras vigentes.
 
 

 Estou cansado
Cansado da rotina
Desta mentira que é a vida
Servida respeitosamente
Com ferrete
Obediente
Obediente.

Estou farto de abrir a porta de casa e nada estoirar como na televisão
Não era lá longe, era aqui mesmo
Barricadas, armas, pedradas, convulsão
Nada, não há nada
Os borregos, as ovelhas e os cabrões seguem no carreiro
Como se nada lhes tocasse - e não toca
A não ser quando o cinto aperta
Mas em vez da guerra
Fazem contas para manter a fachada:
Ah carneirada, vossos mandantes conhecem-vos pela coragem e pela devoção na gritaria do futebol a três cores
Pelas vitórias morais de quem voa baixinho
 E assume discursos inflamados sem tutano.


Estou cansado
Cansado da rotina
Desta mentira que é a vida
Servida respeitosamente
Com ferrete
Obediente
Obediente.

Estou cansado, pá
Sem arte, sem génio, cansado:
Aqui presente está a ementa e o somatório erróneo do desempenho de uma nação
Um abismo prometido
Camuflado por discursos panfletários:
Morte aos velhos!
Morte aos fracos!
Morte a quem exija decência na causa pública!
Morte a quem lhes chama filhos da puta!
- E essa mãe já morreu de sífilis à porta de um hospital.
Mataram os sonhos
Prenderam o luxo das ideias livres
Empanturraram a juventude de teclados para a felicidade
E as famílias de consumo & consumo
Até ao prometido AVC
Que resolve todas as prestações:
Quem casa com um banco vive divinamente feliz
E tem assistência no divórcio a uma taxa moderada pela putibor.
Estou cansado, pá
Da surdez e da surdina  
Desta alegria por porra nenhuma
Medida pelo sorriso de vitória do idiota do lado
Quando te entala na fila e passa à frente
É a glória única de muita gente
Uma vida inteira...


Eleitos, cuidem da oratória... 

    

Seguiu-se a intervenção do próprio António Manuel Ribeiro, que falou não só das suas múltiplas experiências de vida, mas também da sua posição como poeta atento aos problemas sociais da comunidade e como vocalista dos UHF. Para agrado da assistência acabou cantando algumas canções de sua autoria, tendo sido bastante aplaudido.





E assim terminou mais um "Café com livros", não sem que antes as Trêstúlias quisessem, em jeito de amizade e agradecimento, perpetuar, numa foto descontraída com o convidado, uma tarde rica de vivências poéticas.


Lídia Raquel, António Manuel Ribeiro, Rosa Neves e Cristina Barbosa

Oportunamente  será anunciado o convidado da próxima tertúlia, assim como o local onde a mesma terá lugar. 
Até lá não recusem

um café quente
um livro fresco
uma ideia nova



Fotos (excepto as identificadas), texto e edição de augusto mota
 

22/10/2015

Texto transversal








 

Rosário breve



VOU ALI VER SE VEJO






Extinto o Estio em os pretéritos fumos sem fogo dos pretéritos acabados, acontecem fora de grande pasmo as tropelias do outonecer invernoso. São manhãs já grisalhas à nascença, tardes bafientas como quermesses de sacristia, noites engelhadas como peles outrora seminais. É natural. Faz parte. A Grande Roda é isto e isto mesmo.
A chatice está no aluir dos casarões devolutos. São berbicachos administrativos de alto-lá-com-o-charuto. Solidões geriátricas, óbitos, heranças, sobrinhos remotos, primalhada íncola que se está nas tintas – um ror e um horror de bens ao luar que a indiferença atira ao regaço dos municípios como quem dá uma esmola maligna. Depois, o mal acontece e pouco remédio tem.
Foi o caso da casa da Rua do Pocinho, ali à Ribeira de Santarém. Pelo anoitecer de sábado passado, 17 do corrente, as velhas paredes deram de si sem dó. Houve que demolir o resto, claro. O problema era a estrada atulhada de tantas misérias aluídas. Já só muito tarde (domingo cedo, isto é) a circulação derredor foi restabelecida. Entre Almeirim e Santarém, só pela ponte Salgueiro Maia. Como há bem mais de um ano que a EN114 continua amordaçada pela incúria dos desmandados mandantes, os devotos de Santa Margarida encostam-se ao que podem, coitados, enquanto as fantasiosas e utópicas obras de estabilização das barreiras não põem os catrapilos a fumegar. Ninguém se aleijou, é o que vale. Desta vez.
Mais cómica é a situação do passeio desnivelado em Pernes. Mas atenção: cómica, enquanto alguém não esgalhar por ali um perónio ou der um daqueles bate-cus que seccionam a medula-espinhal. Parece que algum engenheiro tipo domingo-de-Agosto por ali projectou uma língua pedonal que saliva de lado como os bêbados felizes. A confusão mete ingredientes de construção de espaço comercial no centro da Vila, amailos limites do edifício, amailo o desgracioso adernar do passadiço pró-peão. Agora que chove dos cântaros de Deus, que Ele a dá, se a coisa descamba para o escorrega-tem-te-não-caias, o mais certo é à maltosa de Pernes acontecer o mesmo que ao casario velho da santarena Rua do Pocinho. Enfim: cornos ao lume e fé nas castanhas, que o tempo é destas & daqueles.
Nos entrementes, os concelhos de Abrantes e Mação deram também para o charco pluviométrico. Sobrevindo umas bátegas boas na passada segunda-feira, 19, ele foi todo um estendal de estradas, caves e garagens afogadas como gatinhos em saco de serapilheira. Comércios e bens particulares rangeram e doeram. Gente houve sitiada nos próprios veículos, como em Alferrarede e no Cabrito, valendo-lhe a pertinácia sempre generosa do bombeiral. É natural. Faz parte. A Grande Soda é isto e isto mesmo. Não há aqui política – é tão-só o Criador a brincar às destruiçõezinhas para entreter a modorra da eternidade.
E agora que a crónica já caiu, já escorregou e já choveu, nota final para uma pena minha: a de não ter estado nem dia 16 nem dia 17 na Azambuja. Havia lá teatro de revista com participação do antigo herói romântico da minha Irmã – o senhor António Calvário. Antigo, quando muito moço, Rei da Rádio, Ídolo TV (sem favor e, sobretudo, sem comparação com as celebridades de cocó dos nossos dias), é homem que ainda por aí canta e por aí faz pela vida ainda. “Mais Riso É o que É Preciso” se chamava a tal revista.
Quanto a mais siso, vou ali ver se chove.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 22 de Outubro 2015



  


Fotos e edição de augusto mota 

Interior de uma antiga oficina de automóveis no centro de Leiria, Novembro de 2007. Hoje, limpo o entulho, permanecem de pé as paredes da fachada, mas o interior continua vazio de tudo. Há projectos arquitectónicos permanentemente adiados...