27/10/2016

Crónica


VIVENDA  LOPES





(A história que vai ler é baseada em factos reais. Aconteceu. Mudei o apelido do senhor, apenas. E então era uma vez:)

Era uma vez um homem ainda novo que casou cedo com uma mulher pobre. Ela também era nova. E ele também era pobre. Vamos ver todos o que lhes aconteceu.
Casaram-se – e a vida não andava. Tinham pouco dinheiro. O futuro parecia-lhes, aos dois, muito mais perigoso do que o passado. Não passavam fome, mas necessidades – ai isso sim, passavam.
Vai daí, ele lembrou-se de emigrar para a América.
Foi ter com a mulher e teve a conversa do costume:
– Olha, eu vou ali e já venho.
E ela respondeu-lhe assim:
– Ou então vou eu lá ter.
E assim foi. E assim tudo foi. Ele embarcou, desembarcou e arranjou trabalho. Passados uns cinco anos, o homem voltou ao país natal, que é o nosso Portugal, e disse assim à mulher:
– Olha, eu vou ter de me casar na América com uma velha. Mas tu ouve isto com atenção.
E então ele explicou à mulher. Explicou-lhe muito bem explicadinho. E ela ouviu. E ela escutou. E ela concordou. Ele ia casar-se com uma velha tão rica, que o ouro, ao pé da velha, perdia valor. E ela aceitou. E ela concordou. Que sim senhor.
Divorciaram-se em Portugal. Ele levou a documentação para a América. Quando chegou à América, a velha estava à espera dele. Ele mostrou-lhe os papéis. A velha ficou contente. Passados uns tempos, casaram-se. E foram felizes enquanto esta história não acaba.
O homem português e a velha americana casaram-se perante a Lei e perante a Igreja. Ele deixou de ser criado dela. Ela continuou a ser patroa dele. Veio um dia em que ela se queixou da criada de quarto. Então, ele disse-lhe assim:
– Tenho uma prima em Portugal que é muito séria e que dava uma criada porreira.
E assim foi. Ele mandou vir a ex-mulher de Portugal. Explicou-lhe tudo muito bem explicadinho. Ela disse que sim. Ele mandou-lhe dólares para o bilhete. Ela entrou no avião, saiu do avião e tornou-se criada.
Vinte e dois anos passaram até que a velha morresse. Os dois portugueses esperaram a fio os vinte e dois anos. Quando a velha americana morreu, o viúvo continuava português como um alho. Casou-se com a ex-mulher logo a seguir.
Voltaram os dois, patrão e criada, para Portugal. À beira da estrada, entre Aljezur e Santa Comba Dão, bem acima de Tavira e muito antes de Ribeira de Pena, a vivenda do casal impressiona. Tem tijolo, tem tinta, tem telhado, tem casota de cão e tem cão. E no relvado, cortado a tesoura de letras de sebe, pode ler-se:
– Vivenda Lopes.
Graças a Deus.

 



Crónica de Daniel Abrunheiro, in quinzenário «Trevim», 27 de Outubro de 2016

Fotos obtidas na net
Edição de Augusto Mota


24/10/2016

Texto transversal








17/10/2016

Café com livros





No dia 8 do corrente mês de Outubro teve lugar no Museu Moinho do Papel, em Leiria, mais uma  tertúlia "Café com livros", a já tradicional inciativa das Trêstúlias, desta vez com o convidado Pedro Pedro que nos veio falar dos seus textos e fotografias.
 
 
As Trêstúlias: Cristina Barbosa, Rosa Neves e Lídia Raquel  

Pedro Preto

Cristina Barbosa fez a apresentação do convidado:

Pedro Preto nasceu em Lisboa, em 1971. É licenciado em Biologia. Começou a dedicar-se à fotografia em 2007, como autodidacta.
Em 2009, foi premiado no Concurso Nacional de Fotografia do Montepio Geral. Desde então, publicou:
- «Lisboa - Capital do Insólito», uma edição foto-literária bilingue de "Calçada das Letras", 2010, com apresentação formal no grande auditório da sede do Montepio Geral, Rua do Ouro, Lisboa.
- «O Mundo é um Berlinde com Piada - Contos Reais», editora "Fonte da Palavra", 2011.
- «Lisboa - Capital do Insólito», 2ª edição revista, 2013, com apresentação formal na Feira do Livro de Lisboa.
- «Lisboa - Capital da Ilusão», edição de autor, bilingue, 2015, com apresentação em Lisboa, no espaço “Atmosfera M”.
Dedica-se igualmente à escrita de microficção (publicações no “Diário de Leiria”) e à Criação Artística Conceptual (participação em exposições colectivas).
No âmbito de «Lisboa - Capital do Insólito» foram efectuadas reportagens na revista «Time Out», Lisboa, e uma reportagem televisiva na RTP.


   



Pedro Preto falou demoradamente do seu modo muito particular de ver Lisboa, não só como Capital do Insólito, mas também como Capital da Ilusão. Uma visão que exige um olhar perspicaz e atento aos pormenores que escapam ao passante numa cidade cada vez mais apressada. Visão que, muitas vezes, depende do acaso - ou da sorte do fotógrafo - e do momento exacto em que se dispara a máquina. Foram projectadas várias fotografias de ambos os livros, tendo começado pela intitulada  "Alfacinhas de gema", que obteve o 3º prémio no Concurso Nacional de Fotografia do Montepio Geral, 2009, a qual foi demoradamente comentada - com observações pertinentes - pelos participantes nesta tertúlia.


Uma imagem, ou texto icónico, é por natureza polissémica, isto é, pode ter, mais do que um texto de palavras, várias interpretações, vários significados. Cada observador/leitor reagirá não só de acordo com a sua formação e informação, mas também de acordo com as suas vivências. Nesta foto a altura e verticalidade da porta, se por um lado parece "esmagar" as duas mulheres sentadas naquele degrau, também alto, por outro lado a sua verticalidade acentua o juízo moral da frase que mão anónima colocou naquele fundo azul: "As pessoas somos nós". E tal juízo pode ser extensivo tanto a quem se senta naquele degrau, como a todos os habitantes daquele bairro lisboeta.




"A fé move montanhas" é o título da foto abaixo. "Poderá a fé profunda deslocar um cruzeiro público, de tamanho apreciável, para a porta de nossa casa, fazendo com que um dos braços de Cristo adentre pela varanda? Independentemente da complexidade da resposta, tal dádiva justifica por inteiro a colocação de uma vela sobre o braço do salvador." (Comentário do autor, in «Lisboa - Capital do Insólito», p. 227).
  

Ao comentar a foto seguinte, Pedro Preto, a p. 47 de «Lisboa - Capital da Ilusão» ajuda-nos a decifrar o mistério: "Ainda que inadvertidamente, um par de boxers posiciona-se de forma perfeita garantindo um cesto de recurso para a tabela desenhada."



A sequência das várias fototografias projectadas foi interrompida para Pedro Preto poder descansar e ouvir Cristina Barbosa ler um longo excerto do seu livro de contos/histórias reais «O Mundo é um Berlinde com Piada»
 

Como é tradição em "Café com livros"  há sempre momentos de leitura de poemas que, de algum modo, se adequem à tematica da sessão, ou à personalidade do convidado. Assim, Cristina Barbosa leu o poema de Ary dos Santos "Um Homem na Cidade":

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua 
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota 
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
olho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguem
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!



Rosa Neves, para terminar esta tertúlia dedicada ao insólito e à ilusão nas fotos e palavras de Pedro Preto, leu "Lisbon revisited (1923)" de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos:

NÃO: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância - 
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!



*

Estas tertúlias são sempre um espaço de encontro de amigos e conhecidos e desconhecidos que ficam amigos. E quando, no fim, há um café quente e bolachinhas vegan, ou de chocolate e coco, como neste dia, melhor ainda, para animar as conversas e as fotografias que registam, para memória futura, os momentos agradáveis que ali se viveram! Por isso vamos deixar as fotos falar por si...












Voltamos a encontrar-nos no dia 26 de Novembro, em local a designar, e, até lá, não recusem
    
                       Um café quente
                            Um livro fresco
                                            Uma ideia nova


Fotos de Joaquim Cordeiro Pereira e Nuno Verdasca
Edição de augusto mota


05/10/2016

Texto transversal