29/11/2007

Na génese dos frutos

Na génese dos frutos, algum anjo deixou cair as suas asas,
lavrando o trigo, o orvalho, o silêncio sagrado,
as árvores do mundo.
Nas planícies resplandecentes, vivo até ao seu último degrau.
Na matéria destruída vivo, cresço.
No domínio das trevas, trabalham os deuses,
os altares, os livros por dentro, as muralhas sagradas.
Pouco a pouco, escuto as portas, os ruídos,
os labirintos de febre, o fulgor das brancas alavancas.
Nas ruas, viajo com a bruma, a chama, o alecrim.
Nas vielas antigas, vivo, cresço.
Nas fachadas barrocas, habita o ouro, o esmalte,
o azul, um violino.
Nos montes, há feno, névoa, nascentes eternas,
santuários sumptuosos, flores de rosmaninho.
Na fonte do Ídolo, uma oferenda, uma inscrição,
um culto antigo -
uma deusa de nome Nabia abençoa o lugar
onde o silêncio flui e os lábios se reúnem.
Nos muros da Sé, uma pedra recorda uma inscrição
de uma sacerdotiza da deusa Ísis.
Às portas da cidade, sou ritmo de chuva, alfazema,
luzeiro de estrelas,
eco da cidade indígena, romana, medieval.
Subo pelas lâmpadas, pelas asas, as alamedas,
os jardins, as janelas brancas.
Em sílabas dormentes, lavro todas as sínteses,
entre cinza, broquéis, coroas de ouro.
Berço de mim, corola acesa, meu corpo é litania,
ardor, dourada semente.
Na pedra indissolúvel, habito a pedra, as criptas, a luz.
Na memória errante, paira o meu nome,
cálice, flor, lira ancestral,
colina verde, lua vaporosa, sacrário do tempo.


Maria do Sameiro Barroso, in "Mealibra", nº 21, Centro Cultural do Alto Minho, Outono 2007, pp. 139-140.
Textos Transversais de Augusto Mota.

25/11/2007

1052 .Emily Dickinson ( 1830-1886 )


I never saw a Moor-
I never saw the Sea-
Yet know I how the Heather looks
And wath a Billow be.
I never spoke with Good
Nor visited in Heaven-
Yet certain am I of the spot
As if Cheeks were given-
_____________________
Nunca vi uma Charneca-
Nunca vi o Mar-
Todavia sei que aspecto tem a Urze
E o que uma Onda é sei imaginar
Nunca falei com Deus
Nem visitei no Céu a sua mansão-
Todavia tenho a certeza do lugar
Como se tivesse o Mapa na mão
Emily Dickinson,
in "Antologia de Poesia Anglo-Americana - de Chaucer a Dylon Thomas", ( edição bilingue ), selecção, tradução, prefácio e notas de António Simões, ed. Campo das Letras, 2002, pp.334-335.
Fotografia e Arranjo Gráfico de Augusto Mota.










18/11/2007

fogo de artifício

Hoje há festa. Subo ao céu da noite agarrado à cana de um foguete de luzes e, de repente, sinto-me pairar sobre o arraial, envolto em flores de mil cores. É fogo este artifício que inunda os olhos e queima as mãos. É de artifício este fogo que desabrocha antecipadamente em nova Primavera, enquanto pétalas de luz desfazem por entre os dedos, riscando a noite em todas as direcções.
É efémera esta viagem aos confins do tempo! Mas os olhos querem ir sempre mais além do que as mãos podem tocar. Por isso voamos sobre a noite da festa, entre foguetes e luzes. Por isso imaginamos o adro, lá em baixo, ornado de recordações e sabores. É o passado que vem até nós, agora na forma de arcos ornados de flores recortadas em papel de seda e cheiros típicos dos Invernos gelados, só aquecidos pelas fogueiras de rua e pelo café da púcara, assente à pressa com uma brasa viva bem soprada. Chega-nos ainda o som das bandas de música dos dois coretos, a tocar ao desafio, enquanto pares de ocasião volteiam à vontade na estrada, até que algum automóvel vem interromper a dança. Que depois segue, ainda mais animada.
Tudo vemos aqui de cima. O tempo. O espaço. A memória. A festa de hoje.
O fogo de artifício continua a subir e o céu já está cinzento de tanto fumo. Vou descer agarrado a um dos minúsculos pára-quedas azuis que um foguete de luzes espalhou, agora mesmo, ao redor da noite.
Tudo vimos lá de cima. O tempo. O espaço. A memória. A festa de sempre.

Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Textos Transversais de Augusto Mota.

15/11/2007

manhã, manhã, manhã

onde quer que estejas,
sê quanto és:
na solidão da rua,
na solidão da casa,
teu pensamento mantenhas
numa linha clara;
e lá dentro de ti,
na solidão que és,
acende tua fogueira:
arda tua esperança,
tuas horas lúcidas
aquelas em que foste
coração do mundo
gerando a manhã.
e nasça e irrompa
na fogueira clara,
tua alma, teus dedos
acariciando o fruto,
asa de frescura,
a paz apetecida,
da negada manhã.

sê quanto és
sê intenso e claro;
aperta em teus dedos
o fruto conseguido;
aperta, dá-lhe a forma
do vento que te leva
pelo coração dos outros -
ai asa de ternura,
coração do mundo
sangrando a manhã.
e na noite que te envolve
mantém a alma acesa

fermentando o DIA.



Poema inédito de António Simões
Fotografias de Fernanda Sal Monteiro, em Paris.

13/11/2007

um grão de texto musical

encontrei na minha pauta
um grão de música disforme
vindo de qualquer acorde
soprado na minha flauta
onde dormia obscura fome
num dó num ré num sol afogado
que fazer com aquele grão
na minha pauta encrostado
vibrando na minha mão
por meus lábios encontrado
José Ribeiro Marto ,inédito ,in "a celebração dos dias"
fotografias de Fernanda Sal Monteiro ,em Paris
edição do filme - gabriela r martins.

08/11/2007

a estação fértil

Fértil é a estação do ano onde proliferam as angústias que, como folhas de árvore amarelecidas pelo tempo, descem, suavemente, em nossas mãos outonais. Também elas - as mãos - vão deixando cair no esquecimento as memórias dos dias que ainda não antecipavam nada para além do que, sofridamente, iam desenhando no horizonte áspero e branco do papel. Também elas, silenciosamente, nos arrastavam - e arrastam - até esse horizonte onde a espera é sempre igual ao cansaço das noites passadas entre viagens e vertigens, entre fendas e fugas, sobre precipícios perdidos à beira de caminhos sem pontes visíveis entre as margens do delírio e as da imaginação fértil. Assim ficámos - e ficamos -, permanentemente, à ilharga da madrugada, sem nos atrevermos a escalar outras dificuldades para além das que os olhos pressentiam - e pressentem - e as mãos conseguiam - e conseguem - dominar.
Fértil é a noite onde proliferam as sendas sinuosas dos desencontros que, como rios de fogo, avançam pelas vertentes áridas da angústia a caminho das várzeas verdes da esperança. Mas que esperança podemos esperar depois de todas as colheitas terem desaparecido debaixo da lava incandescente de tanta espera?!
É pelo sossego da noite, antes de as mãos, cansadas, adormecerem encostadas ao brilho sôfrego dos olhos, que empreendemos as grandes viagens por entre os espaços vazios da música e do silêncio. Seguimos a magia das palavras que nos vão acordando os passos incertos e os significados menos esperados, sempre a caminho da memória das cores e das coisas. E dos cheiros que, por vezes, arrastam consigo o saber e o sabor do passado.
Fértil é a viagem por entre os silêncios da música, quando tudo parece ir acabar em breve e sentimos a pressa das mãos por cima das letras que vão escrevendo as palavras que, inesperadamente, vêm ao nosso encontro. Mas nem sempre elas conseguem evocar todas as imagens que vivem agarradas à memória dos aromas vários de uma merenda de trabalhadores por entre paveias de pasto acabado de cortar, ou agarradas à memória do cheiro ácido e quente da terra abençoada pelo bico de uma charrua, enquanto as leivas deslizam pelo aço luzidio da folha, pondo a descoberto os pequenos bolbos da erva-canária, ou trevo-azedo ( Oxalix pes-caprae ), que, à noite, antes da ceia, torrávamos na lareira da infância, junto ao brasido. Por isso desesperamos. Por isso viajamos, entre o ontem e o futuro que as palavras antecipam a cada esquina dos seus e dos nossos próprios sentidos.
Férteis são todos os sentidos do corpo e das palavras .Por isso, só ficamos apaziguados quando as mãos conseguem desenhar, letra a letra, as imagens vivas que arrastam os olhos e a memória pelos íngremes atalhos do corpo, onde já se pressentem as vertigens de uma viagem, sem retorno, ao centro da própria noite.

Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
Fotografias e composições de Augusto Mota sobre poemas de Maria Toscano e Carlos Alberto Silva.

04/11/2007

Sonnet XVIII


Shall I compare thee to a Summer's day?
Thou art more lovely and more temperate.
Rough winds do shake the darling buds of May,
and summer's lease hath all too short date.
Sometime too hot the eye of heaven shines,
and often is his gold complexion dimmed;
and every fair from fair sometimes declines,
by chance or nature's changing course untrimmed.
But thy eternal summer shall not fade,
nor loose possession of that fair thou ow'st,
nor shall Death brag thou wand'rest in his shade,
when in eternal lines to time thou grow'st.
So long as men can breathe or eyes can see,
so long lives this, and this gives live to thee.

William Shakespeare ( 1564-1616 )
Tradução de António Simões
Fotografia de Fernanda Sal

Arranjo gráfico de Augusto Mota.

01/11/2007

divirtam-se ,srs professores...

...se isso vos apraz!

....................pai

quero.me na criança que atravessa
o quarto desenhado a preto e
branco e
onde guardo os abraços firmes
de meu pai

tenho.o na imagem que revejo e
nos barcos que deixam
sós
o cais

são como eu feitos
de gritos
e de silêncios
vagos

revejo.me na criança que brinca
à cabra cega e ao arco e
sinto.a tão próxima de mim
que tenho medo de perdê.la
ao acordar

há um ritmo em cada estação de vida
e a paragem mais próxima
do teu nome

pai

é o verbo a conjugar

___________________________

ainda digo mãe
mas pai já não
quando o digo
é um sussurro
estranho quase mudo
espero um pouco
tenho uma festa no cabelo -
como se da vida inteira
nesse instante tivesse tudo

1ºtexto - gabriela r martins ,inédito ,"canto.chão"
2º texto - josé r marto ,inédito
edição - gabriela r martins.