28/02/2006

um outro conceito de Carnaval ...

... para fugir ao mar de gente.
Veneza.
Se é certo que Veneza fica verdadeiramente impossível nos dias de Carnaval, porque as zonas mais turísticas, como a Ponte de Rialto e a Praça de San Marcos, são inundadas por um mar de gente, dificultando a circulação e levando a polícia municipal a interditar o trânsito pedonal nos dois sentidos, é sempre possível fugir ao bulício e à confusão, procurando os bairros da "Sereníssima" menos movimentados, como o Dorsoduro, Cannaregio ou Santa Croce. Ou então, visitar as outras ilhas, nomeadamente, Burano, famosa pelas suas rendas e simpáticas casas coloniais, Murano, célebre pela sua tradição vidreira, o Lido, para um passeio à beira mar, e, a San Giorgio Maggiore, com os seus jardins e um campanile de onde se disfruta uma das melhores vistas panorâmicas sobre a cidade.
Mas, fundamentalmente, o Carnaval de Veneza permite a todos a possibilidade de, pelo menos por uns dias, se realizarem, de um modo livre e criativo.
Uma sofisticada máscara é dispendiosa e representa um investimento que não está ao alcance da maioria dos foliões, mas existe sempre a possibilidade do aluguer de um fato completo, da compra de uma máscara para o rosto ou de um chapéu original. Por toda a cidade, multiplicam-se lojas e artesãos de máscaras para todas as bolsas, das mais simples, fabricadas em "cartapesta" - mistura de gesso e pasta de papel -, às mais trabalhadas e sofisticadas, banhadas a metal e decoradas com prata e ouro.
A cidade de Veneza, nesta época, é, sobretudo, uma mescla de luxo e popular, ou um conceito europeu de festejar o Carnaval.
Assim já sabe.
Em 2007, porque o Carnaval de 2006 está no fim, se preferir os banhos de multidão, o calor e o samba, atravesse o Atlântico e viaje ( se puder! ) até ao Brasil.
Se preferir um modo mais sereno de se divertir, vá até Veneza ( também se puder !).
ou então ...
sonhe,
porque sonhar ainda não paga imposto ( até ver! ).
Texto de Alexandre Coutinho
( adaptado por Gabriela Rocha Martins )

Zig - Zag Zag - Zig

saiu este mês de Fevereiro,
um novo livro de poemas de Maria Azenha
sobre ilustrações de Ellys.
Edição Setecaminhos.

De Camões a Pessoa. A viagem iniciática.

Ilha dos Amores ( Camões, Canto IX )
Leves como deusas
Acenderam os céus
- núpcias divinas -
Discretas Rosas
Que de Sírius caíram
Agora Vénus brilha.
Ao centro,
A Secreta Ilha.
Possessio Maris ( Fernando Pessoa )
Como cantar a Nau?
Como dizer mar
Coração
Estrela da manhã
Ou Nave Luz?
Como incendiar a neve,
O Mundo,
No centro da
Cruz?
Maria Azenha, in "De Camões a Pessoa. A viagem iniciática.".
( enviado por Amélia Pais - www.barcosflores.blogspot.com )

27/02/2006

o poeta combatente


"Horrible journée! J'ai assisté, distant de quelque cent mètres, à l'exécution de B. Je n'avait qu'à presser sur la gachette du fusil-mitrailleur et il pouvait être sauvé! Nous étions sur les hauteurs dominant Céreste, des armes à faire craquer les buissons et aux moins égaux en nombre aux SS. Eux ignorant que nous étions lá. Aux yeux qui imploraient partout autour de moi le signal d'ouvrir le feu, j'ai répondu non de la tête... Le soleil de juin glissait un froid polaire dans mes os. Il est tombé comme s'il ne distinguait pas ses bourreaux et si léger, il m'a semblé, que le moindre souffle de vent eût dû le soulever de terre. Je n'ai pas donné le signal parce que ce village devait être épargné à tout prix. Qu'est-ce qu'un village? Un village pareil à un autre? Peut-être l'a-t-il su, lui, à cet ultime instant?"

René Char.

"Que dia horrível! Assisti, à distância de cem metros, à execução de B. Bastava ter apertado o gatilho da metralhadora e ele poderia ser salvo! Estávamos nas colinas de Céreste, com armas que faziam estalar os arbustros e pelo menos em número igual ao dos Nazis. Eles ignoravam que nós lá estávamos. Aos olhos que, à minha volta, imploravam o sinal de abrir fogo, respondi que não com a cabeça... O sol de Junho impregnava os meus ossos de um frio polar. Caiu como se não visse os seus carrascos e tão leve, pareceu-me, que o menor sopro de vento o levantaria da terra. Não dei o sinal porque a aldeia deveria ser poupada a todo o custo. O que é uma aldeia? Uma aldeia parecida com tantas outras. Será que ele soube-o, no último instante?"
Homenagem prestada, a folhas 157 de "Les Feuilles d' Hypnos", de René Char, ao companheiro e combatente da Resistência Francesa, Émile Cavagni, assassinado, em Maio de 1944, em Forcalgnier, pelos Nazis.
-Fotografia de Jean Baptiste Barnaud.

Pyrénés

( "Chante" de René Char )

Montagne des grands abusés,

au sommet de vos tours fiévreuses

faiblit la dernière clarté.

Rien que le vide et l'avalanche,

La détresse et le regret!

Tous ces troubadours mal-aimés

ont vu blanchir dans un été

les doux royaume pessimiste.

Ah! la neige est inéxorable

Qui aime qu'on souffre à ses pieds,

qui veut que l'on meure glacé

quand on a vécu dans les sables.

René Char, in "Commune Présence".

25/02/2006

Mundo Perfeito. "Imaginação".
( Autoria Desconhecida )

Poesia Matemática

A imaginação dos portugueses não pára de surpreender-me... Será já o efeito do "Plano Tecnológico"?
Quem 60 ao teu lado e 70 por ti,
vai certamente rezar 1/3
para arranjar 1/2 de te levar para 1/4
e ter a coragem de te dizer:
20 comer.
Enviado por Glória Maria Marreiros.
Legenda Íntima 82. Augusto Mota.

Rosas trazidas do Hades

O amor é feito de lacunas incessantes que ferem, embebedam,
quando a aurora desperta,
no ardor delicado de uma frágil Primavera.
Nos cadinhos da luz, na turbulência das fontes,
o seu ardor precipita-se.
Outrora, a aurora movia os seus carros, conduzidos
por Hélio.
Sobre marcas doridas, soavam acordes.
Na luz das primeiras lágrimas, só a lírica se compadecia
do ser.
Nas terras verdes da Frígia, Orfeu cantava,
pois nunca dizem adeus os seres que se amam,
se as chamas clamam, mais rubras, nos celeiros ardentes.
Mas as barcas de Caronte velavam,
e a morte, com a sua foice, insinuava requebros,
tormentos.
O mundo era então uma ferida aberta, uma ferida
sangrante, e Orfeu cantava, nos mosaicos
que representavam centauros, velhos Silenos,
folhas de acanto.
O mundo era então um livro órfico, onde as Dríades,
irmãs de Eurídice, choravam o abraço perdido,
o ardor encontrado,
enquanto Orfeu tangia, na lírica doce, o canto,
a morada imortal,
sobre as rosas trazidas do Hades.
Maria do Sameiro Barroso, pré-publicação in "Meandros Translúcidos".

24/02/2006

Legenda Íntima 78. Augusto Mota.

noite operática

De noite se constroem cidades. De noite se voa sobre as cidades que vivemos e imaginamos, enquanto os olhos correm sobre uma paisagem de milhares de pontos luminosos a debruar os caminhos das trevas. Tantas luzes vistas do cimo do monte, a brilhar lá em baixo e ao longe, transformam a noite numa imensa basílica onde os peregrinos somos nós que pagamos a promessa de viajar eternamente entre as mãos e a madrugada. As orações são os novos sentidos do corpo e o oficiante é o desejo que, humilde, celebra o renovar de todas as caminhadas.
Atravessamos o território da noite enquanto milhares de velas cintilam no vasto recinto ou se espalham, atentas, pela escadaria sagrada. São figurantes que aguardam, extáticos, que alguém escreva o libreto de uma monumental ópera cujos ensaios vão decorrendo ao longo dos ofícios nocturnos. Antecipamos, só para nós, a chegada da carruagem divina, puxada por oito corcéis brancos, com estrelas azuis a decorar os finos arreios de ouro e prata. Vindo de longe, do meio das nuvens e da lua cheia, um carro alegórico atravessa a colunata e estaca mesmo em frente da multidão ansiosa. Um coro entoa salmos que elogiam os anjos e os tronos de onde eles zelam pela sombra de nossos passos. Abrem-se as portas da carruagem e a rainha da noite, de largas vestes azuis e brancas, desce suavemente, por entre harpas e trombetas, amparando uma luz no seu regaço e erguendo um sol na mão direita. Caminha, agora, sobre um tapete de incenso e de ervas aromáticas, até se diluir por entre as luminárias que redobram os seus lampejos para, de súbito, tudo se apagar da memória, tudo ficar uma noite escura vista do cimo do monte, com luzes reais a brilhar lá em baixo e ao longe.
Descemos da noite e do monte pelas estradas íngremes da emoção, a caminho da nascente de um rio claro que atravessa as mãos e desagua na infância do olhar, todos os dias ao pôr-do-sol.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

23/02/2006

Floração dos Ramos de Amendoeira ( Prunus dulcis ).
Fotografia de Augusto Mota.

o ciclo das sementeiras

Junto do fogo moldámos as mãos ao sabor dos frutos que rescendiam à luz trémula das labaredas. Ateámos ainda mais o fogo e logo todo o pomar vibrou com o crepitar da lenha de pinho, que lançou mil chispas em todas as direcções, como se fosse artifício de festa. Era, antes, a natureza a festejar o seu ciclo das sementeiras de Inverno. E, também, da floração dos ramos das amendoeiras ( Prunus dulcis ). Em flor parece estar já tudo o que a fogueira incendeia e se reflecte nos olhos avermelhados pelo calor das brasas. E, nos gestos que cortam o silêncio, adivinhamos o abrir rosado das flores da magnólia ( Magnolia soulangeana ) que, como dedos sequiosos, afagam o orvalho que a noite vai fazendo cair em nossas mãos.
A frescura da noite avança sobre as horas que temos de cumprir. A fogueira vai-se extinguindo e as brasas mortiças já não conseguem enxugar as mãos e o orvalho.
Os botões da magnólia vão continuar a abrir durante toda a noite e, amanhã, os dedos percorrerão, pétala a pétala, todas as flores em busca do fogo e dos frutos que moldaram as nossas mãos. E quando, na árvore nua de folhas, estiverem abertas todas as flores, será como que a natureza a festejar o seu artifício e a inaugurar o ciclo das sementeiras da Primavera.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Legendas Íntimas 80. Augusto Mota.

22/02/2006

2. Meu Corpo É Agora Um Barco

Sento-me no banco
Do pequeno largo -
O vento arredonda
Os meus sobressaltos e perde-os no ar.
O dia arde ainda na copa das árvores,
Nas asas dos pássaros,
Nos olhos dos velhos
Perdidos no tempo -
Meu corpo é um barco
Ancorado na luz.
3. Voa Meu Corpo
Voa, meu corpo,
Na crista do vento,
No bafo do suão
Que arde violento
E varre as planuras
Como um lobo de lume -
Voa, meu corpo,
Ancorado na luz.
4. Falávamos do Tempo
Falávamos do tempo -
Tocaste-me ao de leve os cabelos
E foste abrindo clareiras para o vento passar;
Perto, uma mulher cantava em surdina,
Num quintal, encostada a um muro de pedras soltas -
O sol do Alentejo cegava-nos as palavras:
O que íamos dizendo sobre o tempo
Escorria-nos agora dos nossos olhos
Ancorados na luz.
António Simões, inéditos,
Évora, 9 de Julho de 1999.
Fotopoema 48. Augusto Mota

21/02/2006

Cold Cold Heart

I've tried so hard my dear to show
that you're my every dream
yet you're afraid each things I do
is just some evil scheme

A memory from your lonesome past
keeps us so far apart
why can't I free your doubtful mind
and melt your cold cold heart

Another love before my time
made your heart sad an' blue
and so my heart is paying now
for things I didn't do

In anger unkind words are said
that make the teardrops start
why can't I free your doubtful mind
and melt your cold cold heart

There was a time when I believed
that you belonged to me
but now I know your heart is shackled
to a memory

The more I learn to care for you
the more we drift apart
why can't I free your doubtful mind
and melt your cold cold heart

Cantado por Norah Jones
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xeque-mate

( ... )
ouço há alguns anos o mesmo ruído que devagar
muito devagar
persiste e dói
.uma cidade ruas desertas esquálidas soerguidas pelo esforço das ervas
.o Castelo restos intactos de muralhas que hoje só têm serventia turística
.escadas que não conduzem a nenhures
.a torre da Sé cujo relógio recorda
no toque
a relatividade da vida
.a morte é como Pompeia
um vasto sepulcro
onde se enterram todos os nossos sonhos
.sob a capa da vulgaridde há sonhos e dor que os comuns não admitem aos sonhadores
.o JJ e o P cada um a seu modo pertenciam a esta categoria
.daí a brevidade das suas vidas
porque a ilusão do acreditar manteve-os e estimulou-os
na essência de um projecto que ambos buscaram
em excelência
- ser em humanismo
empenhados
.com desprendimento
humorados
.com alegria
amados -
no espaço de seis meses
no xadrez da vida
jogaram o último lance
xeque-mate
...
in memoriam
"só se vê bem com o coração"
"as coisas importantes são invisíveis para os olhos"
...
hoje só
tento resistir ao inevitável
e
cogito
sobre a importância do invisível
.P
em ritmo lento
.JJ
mais acelerado
na força
na fragilidade
na verdade
nas memórias
no querer ir mais além ...
... personificamos a tríade ...
gabriela rocha martins, hoje, 21 de Fevereiro de 2006.
Nardos

Para Ti

Sonho. Não.
Velo? Venho do sonho...
Sinto a carícia leve, irreal, espraiada.
Dourada também.
Como as dunas do deserto afloradas pelo sol que desperta, glorioso.
Vem, inebrante de aroma de flores brancas.
Gardénias da minha juventude, nardos do meu casamento.
Perfumes estremecidos pela sensualidade das noites quentes do verão.
Agora é já azul, fresca.
Onda do mar sereno brincando na areia que desperta do luar do planilúnio.
Fecho os olhos com forte meiguice.
Não quero que a carícia se dilua.
Agarro-me a ela.
Pelas minhas mãos escoa-se apenas a areia.
Do deserto.
Da beira-mar.
A carícia habita a minha memória.
Para sempre viva.
Fernanda Sal Monteiro, hoje, 21 de Fevereiro de 2006.

20/02/2006

Mais Ou Menos

A gente pode morar numa casa mais ou menos,
numa rua mais ou menos,
numa cidade mais ou menos,
e até ter um governo mais ou menos.
A gente pode dormir numa cama mais ou menos,
comer comida mais ou menos,
ter um carro mais ou menos,
e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.
A gente pode olhar à volta e sentir que tudo está mais ou menos.
Tudo bem.
O que a gente não pode mesmo, nunca, jamais:
é amar mais ou menos,
é sonhar mais ou menos,
é ser amigo mais ou menos,
é namorar mais ou menos,
é ter fé mais ou menos,
é acreditar mais ou menos.
Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais menos do que mais.
Enviado por Glória Maria Marreiros.
( Adaptado de um poema de autor desconhecido )
20 de Fevereiro. mais uma leitura encantada. hoje, "O poço dos desencantos", de Glória Maria Marreiros, com chancela da Campo de Letras.
a constante procura dos Outros ...
... para muitos escritores, a utilização da palavra destina-se a mascarar as suas emoções mais vivas. é a celebração do signo, quando a vida se salda numa desconcertante angústia. há quem escreva diários e memórias. Glória Maria Marreiros, porém, faz-nos acreditar que o acto de escrever está impregnado de uma necessidade de resistência tão forte, que a própria inteligibilidade se transforma em dor, em tristeza, em tormento.
por isso, "pensou este romance num momento muito difícil da sua vida que se tornou mais fácil de ultrapassar no convívio com as suas personagens. São figuras de ficção a cujos segredos ficou ligada e que decidiu desvendar. Assim nasceu este livro."
Glória M. Marreiros não ( será que não? ) se assume como romancista, e, muito menos, como uma espécie de Orfeu predicador. claro que a morte resolve muitas coisas. no caso de Carlos, um dos personagens do romance, a absurda democracia do nada, do vazio...
mas, Glória M. Marreiros, como a grande maioria dos escritores, não resolve a grande necessidade da sua vida: a necessidade de ter amigos. muitos amigos. a urgência de ser amada, muito amada. toda amada, diria mesmo ... projecção em Maria Helena, novo personagem do romance.
a sordidez da vida, o decorrente cortejo de desencantos e a projecção inconsciente do Eu, decorrem ao longo das páginas do livro, onde a visão do País, deste Portugal provinciano, possui uma densa carga informativa, na qual, porém, a emoção sobrepõe os sobressaltos de eventuais coeficientes políticos. escritora do social, o processo afectivo da sua narrativa vive, no entanto, de acontecimentos gerais, exprimindo muito mais movimentos de coração do que acções de ordem, ilusoriamente, revolucionária.
a "anima" do romance, em meu entender, consiste em relatar um momento de sombras, uma relação suspensa, um noivado impossível com uma certa forma de existência, e, sobretudo, um honesto sentido de culpabilidade.
a vida é precária, tão precária quanto as cosmovisões literárias.
e isto porquê?
porque também a Glória sabe que os escritores não fazem revoluções.
mas ela, como os demais, não repousa ao sétimo dia, apesar de lhes pertencer o reino dos céus - como afirmam certos críticos, portadores de vozes e ideias de outros.
Gabriela Rocha Martins, ao sétimo dia ...
Legenda Íntima 76. Augusto Mota.

19/02/2006

Meandros Translúcidos

As rosas são um tinteiro fresco sobre os muros da noite,
atravessam o sono e os incêndios
abrem-se pelas esferas complexas, onde os peixes
silenciosos vagueiam, abrindo a luz do meu nome.
Na terra húmida, há sombras assimétricas.
Nelas, revejo os celeiros, as colheitas, as torrentes,
onde o azul se abandona.
Há um clamor nupcial, uma turbulência adormecida,
entre plátanos dourados;
um odor de jasmim moldando a areia misteriosa:
um perfil de veludo, lavrando o ardor, a inquietude,
um octeto de cordas ( uma peça de Brahms )
acompanhando o meu sonho de corais nocturnos.
A respiração vive então o seu próprio silêncio inquietante,
os seus meandros translúcidos,
nas arestas pulsáteis que irradiam as artérias vivas,
enquanto um sopro de luz inunda os dedos antigos
de vertebrados fósseis.
O silêncio, esse, renova-se, esquecido, na vertigem branca
dos turbilhões do sono.
As árvores expandem-se,voltam a ser verdes,
entre um violoncelo, um perfume lembrando orquídeas,
as vagas negras do mar, o leito silencioso dos peixes:
a espuma celebra essências,
láudano e nenúfares, sombra e cicatrizes,
e a água flutua, na rosa dos nomes,
transformando a líquida fusão que me invade,
quando digo as turquesas, o mar de espelhos límpidos,
na noite silenciosa,
onde sou o silêncio de todas as coisas.
Maria do Sameiro Barroso, in "Meandros Translúcidos".

Meandros Translúcidos / Maria do Sameiro Barroso



Maria do Sameiro Barroso é licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade Clássica de Lisboa. Exerce a actividade profissional como médica, especialista em Medicina Familiar.

Em 1987 iniciou a sua actividade literária, tendo publicado livros de poesia e colaborado em antologias e revistas literárias. A partir de 2001, a sua actividade estendeu-se à tradução e ensaio, tendo publicado em revisatas literárias e académicas.

Em 2002 iniciou a sua actividade como investigadora, na área da História da Medicina, tendo apresentado e publicado trabalhos, nesta área.

in Antologia "Silves Capital da Palavra Ardente", II Bienal de Poesia de Silves, Abril 2005.

Para Maria do Sameiro Barroso

Este poema para ti é decerto uma surpresa ou talvez a melodia
que vem de tão longe e de tão perto
porque vem de ti do delicado tumulto das tuas vibrações
que são como espirais instantâneas que parecem ir dispersar-se
mas mantêm a delidadeza límpida das suas linhas.
Elas são a relação que se inebria na vertigem dos limites
e te oferecem o mundo como o campo da tua identidade aberta.
Tu és um corpo de meandros em que um sangue solar flui
e como danças dentro de ti as tuas linhas são evidências
imprevisíveis e nunca te deixas fechar mais do que um segundo
porque logo te abres como um leque de cores vibrantes que reúne
e dispersa porque é a relação do universo com a harmonia dinâmica
da variedade elementar que é a matéria da unidade universal.
Se tu te transcendes em cada movimento
é porque tu ascendes constantemente como se a tua coluna fosse
o vento vertical como um enxame de pássaros vertiginosos.
Se tu és quem és é porque a luz no teu corpo voa e vibra
e o teu olhar respira a transparência de um jardim
e a tua boca pronuncia as palavras que são chamas de vento
e são chamas do mar
mas também têm o peso das pedras intactas.
António Ramos Rosa. inédito.*
_______________________________________
*António Ramos Rosa e sua mulher, Agripina, estarão, no próximo dia 4 de Março de 2006, no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, numa tarde em que se falará de tudo, mas, sobretudo, ... de quê? ... ( Poesia ... Música ... Medicina ) ...
"Meandros Translúcidos", o novo livro de Maria do Sameiro Barroso, com chancela da Labirinto.

17/02/2006

Os Cartoons ...



porque não sou, nem nunca fui, favorável a qualquer tipo de censura;
porque reagi, como pude, quando da indexação vergonhosa
de Sousa Lara ao
"Evangelho"
de José Saramago,
apesar de não ser sua leitora;
permito-me
esta reflexão estritamente pessoal,
destes e de quaisquer Cartoons.
- gabriela rocha martins

Reflectindo de Forma Islâmica sobre os Cartoons Ofensivos

Por M. Yiossuf Adamgy
( Director da Revista Islâmica Portuguesa Al Furqán )
"Enquanto que, uma vez mais, os Muçulmanos auto-permitem-se cair na ratoeira reaccionária que lhes foi montada, confirmando, assim, a tese dos cartoons ofensivos, ao reagirem furiosa e violentamente, consideremos preferível reflectir sobre a súplica do Profeta ( s.a.w. ), proferida nos primórdios do Islão, em Taif. Esta é a súplica ( duá ) proferida com as sandálias cobertas de sangue, feridas espalhadas pelo corpo e terrivelmente insultado, caluniado e ridicularizado pelos habitantes de Taif. O mais importante a reter, é que isto teve lugar após um longo boicote de três anos sofridos às mãos dos Coraichitas, em consequência do qual os Muçulmanos viram-se obrigados a comer erva e a viver em árvores.
A Oração de Taif:
Ó Allah! A Ti me queixo da minha fraqueza,
Da minha falta de recursos e da humilhação a que fui sujeito.
Ó Todo-Misericordioso para com aqueles que são misericordiosos:
Ó Senhor dos fracos e meu Senhor também.
A quem me confiaste Tu?
A uma pessoa distante, que me recebeu com hostilidade?
Ou a um inimigo, a quem concedeste poderes sobre aquilo que é a minha missão?
Nada me preocupa, desde que não estejas zangado comigo.
A Tua protecção é o que eu tenho de mais precioso.
É sob a luz do Teu Rosto que procuro refúgio,
Esse Rosto que faz com que toda a escuridão se dissipe
E regula todo e qualquer assunto deste e do Outro Mundo.
Receio ter-Te desagradado e que a Tua fúria recaia sobre mim.
É meu desejo agradar-Te e satisfazer-Te.
Não existe outro poder para além do Teu,
E ninguém é tão poderoso como Tu.
A quem foi que o Profeta ( s.a.w.) disse o seguinte: "O Islão nada mais significa, a não ser possuidor de um bom carácter?"
Estamos a readoptar as normas tribais pré-Islâmicas, as quais defendiam a vingança e a retaliação, quando devíamos encarar o sucedido como uma oportunidade para alterarmos a nossa maneira de sentir e de agir, seguindo o exemplo do nosso bem amado Profeta que se manteve calmo e compassivo face ao ódio e à inimizade de que era alvo.
Dado o momento que vivemos, recomendo que façamos circular a "Oração de Taif", a qual servirá como antídoto de toda a loucura e veneno no turbilhão emocional a que assistimos. E manifestemos sim, forte e firmemente, o nosso protesto. Mas dentro da lei.
Que Allah nos oriente para aquilo que é justo e nos conceda a sorte imensa de olharmos os nossos inimigos como se de amigos chegados se tratassem ( ver Alcorão, 41:34-36 ), e aos quais temos o dever de transmitir o amor e a mensagem de Allah e do Seu Profeta ( s.a.w.). Amén."
Legenda Íntima 96. Augusto Mota

Dia 8, 22h34

( texto anexado ao caderno do algoz )
Sinto no coração o momento. Vejo todas as coisas e é como se não as reconhecesse. Tudo está vendado sem venda. As formas são um centésimo fugaz e depois o esquecimento. Hoje sei a verdade. Já não me canso. Através dela ouço e cheiro. Mas o que vejo arquitectado está para além de tudo. Então esqueço-me dos nomes. E dos lugares a que as coisas pertencem. Sei que o mundo é longe e tem um céu por cima. Talvés esta cegueira se deva à clara e espontânea lucidez de quem enfrenta Deus e para ele avança. Tal qual como no cimo de um verso mudo há um grito dentro que deflagra uma coisa incompreensível. Mas eu não grito por pudor. Além disso para quê gritar? De que me servem os gritos? Assim continuo. É importante continuar.
Eu amei.
O meu corpo empertiga-se no esforço de absorver o redor. A crença é agora a minha fé, a minha força, apesar das rezas. Pois sempre rezei. Fui ensinado a rezar, a acreditar, e rezei, e acreditei porque era pequeno. Quando se é pequeno acredita-se e reza-se aquilo que nos ensinam. Mas logo depois cresce-se e nunca mais se acredita nem reza. Nem nunca mais se é pequeno.
O fim do corredor. A porta está fechada. A maçaneta atenta à mão como o coração a uma resposta. Sente-se o fulgor. Sente-se o frémito. Um dos guardas avança. Ouve-se um estalo. Fecho os olhos. Uma voz vergasta o espaço sentenciando: condenado à morte. A voz percorre a distância aceite por Deus. A porta fecha-se. O burburinho desvanece. Abro os olhos.
Respiro.
Sandro William Junqueira, inédito, 2005.
Drosera Aliciae.
Fotografia de Augusto Mota

A cabeça incendiada pelo sonho*

Nunca são despovoadas as noites dos poetas.
No seu canto, há sempre pássaros prometidos,
debicando a doçura,
enquanto as pálpebras descem, os barcos do cansaço;
Sigo as falenas da noite e os astros dobram-se,
na loucura nostálgica de engendrar vísceras, círculos,
versos, escutando a pele, a maresia,
os gérmenes da penumbra.
Nas palavras do encanto, anoitecem as sombras
e é tempo de soltar as manchas violentas,
desenhadas a sépia, que dedilham a cor amarela,
trazem cheiros fortes, assinam violetas,
acendendo as dunas,
no esplendor de agarrar as cordas, os nós, os lastros
e iluminar os pássaros, as lâmpadas, a matéria.
Há pouco, a cabeça incendiada pelo sonho tecia
as dádivas, o ardor, as teias límpidas,
as cerejas clamavam, na sua língua saborosa,
os cedros gotejavam,
e as nuvens cartografadas respiravam o estrépito,
a luz, entre atmosferas túmidas, claras espirais
que teciam texturas leves, em novos lemes,
semeados
entre astrolábios de cinza.
Maria do Sameiro Barroso, in "Meandros Translúcidos".
__________________________________
*Pré-Publicação.

zig - zag zag - zig

Tarde Poética no Museu Nacional de Arqueologia
em Lisboa ...
... Maria do Sameiro Barroso apresenta, no próximo dia 4 de Março, um novo livro de poesia
- Meandros Poéticos -
____________________________________________
Comparece. A Poesia agradece.

16/02/2006


Martírios da Inquisição no pontificado de Urbano VIII,
Papa que presidia o Vaticano no tempo de Galileu Galilei
( 29-9-1623/29-7-1644 )

Poema para Galileu

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
( Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios. )
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Plazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo de praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente,
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observaão dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso, estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo
caindo
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.
António Gedeão, in Obra Poética, 2001.

Galileu Galilei,


matemático, astrónomo e físico italiano, nasceu em Pisa, no dia 15 de Fevereiro de 1564, no mesmo ano do falecimento de Michelangelo e do nascimento de William Shakespeare...

... Em 1632, Galileu publica os "Diálogos sobre os dois maiores sistemas do mundo -Ptolomeu e Copérnico". A obra reproduz uma conversa entre três personagens - Salviati que defende as teses de Copérnico; Sagredo, um observador neutro, e, Simplicius, defensor de Arsitóteles, Ptolomeu e dos dogmas da Igreja Católica. Salvieti é sempre brilhante. Sagredo, cedo, abandona a imparcialidade e passa a apoiá-lo com entusiasmo, e Simplicius é pouco mais que um idiota, ridicularizado do princípio ao fim.

Os Diálogos, porém, acabam proibidos, e Galileu interrogado por várias vezes. Mesmo ameaçado com a tortura, nunca confessa que acredita na teoria copernicana. Vem, no entanto, a ser obrigado a negá-la publicamente, e, posteriormente, sujeito a prisão domiciliária. Falece a 8 de Janeiro de 1642.

"Conversas Vadias" - Agostinho da Silva.


Celebrou-se no dia 13 de Fevereiro ...
... o primeiro centenário do nascimento do filósofo e pedagogo português, Agostinho da Silva, nascido em 1906 e falecido em 1996.
"Vivemos numa guerra constante de competição e aos alunos ensinam coisas desnecessárias. O futuro é promissor na justa medida em que as máquinas vão substituir o trabalho manual, havendo assim tempo para o ócio e o lazer. Toda a gente nasce poeta e uma das formas de criação e poesia é a vadiagem. Temos assim uma cultura de criação de arte, poetas à solta no seu lazer. Mas é preciso saber ser vadio. Arte, Criação, porque o homem não nasceu para trabalhar, mas para criar. É o tal poeta à solta. Temos que enfrentar esta guerra com a política dos três SSS. A saber: Sustento, Saber e Saúde".
Para Agostinho da Silva, porém, ficou uma questão no ar - o que é Cultura Geral?
Uma vez que o Ministro da Educação ( à época ) colocou uma prova de cultura geral para admissão à Universidade, o filósofo ficou muito espantado porque ninguém lhe conseguiu explicar o que era isso de cultura geral...
...e que se saiba, nem esse nem os Ministros que vieram depois lhe responderam a essa importante questão...
RTP-Memórias. Entrevista dada a Maria Elisa, em 1990 e repetida na noite de 18 de Dezembro de 2004.
Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus.
Agostinho da Silva - Poema.

08/02/2006

Legenda Íntima 93. Augusto Mota.

Ancorados na Luz

1. A Rarefação do Corpo
O corpo, claro, o corpo;
Este meu corpo é que me revela aos outros.
É ele, não há dúvida; toco-lhe apenas
Para comprovar a sua materialidade.
Pesa uns quilos ainda, ocupa o seu espaço
Na casa e no mundo.
Tropeçam nele, reparam nele;
Às vezes, há até quem lhe faça uma carícia,
E ele arrulha de felicidade.
A alma, claro, a alma;
Esta minha alma escondida dos outros,
Sinto-a vibrátil sob cada poro da pele;
Vasta como o universo,
Cheia de recantos sombrios,
Vales iluminados,
Carregada de memórias,
Cheiros, sabores e saberes,
Onde ecoa ainda
O grito que eu dei relutante ao nascer,
E o espanto e o encanto de estar vivo
Que me assoma amiúde aos olhos.
A alma e o corpo, isso, os dois:
Um dentro do outro,
Os dois que são um só,
O corpo que apodrece feliz
Dentro da alma,
Diluindo-se nela pouco a pouco.
A alma, isso, a alma outra vez,
Triunfante, definitiva,
Com todas as memórias do que foi,
Com a história do crescer do corpo,
Do amanhecer do amor,
Da emoção, do orgulho de envelhecer
Em sabedoria e ternura,
Para que um dia, ah, um dia,
Possa viver, para sempre, rarefeita, irmã do ar,
Ancorada na luz.
António Simões, inédito,
Évora, 9 de Julho de 1999.

06/02/2006

Fotopoema 46. Augusto Mota.

Quando é que o vento te levanta no ar?

O teu problema é ainda o peso -
Tolhe-te os passos, os voos;
Os braços de chumbo tombam
Para o chão; o penedo da voz,
Sempre que falas,
É duro como o granito -
tudo isso pesa, pesa demais,
Para ascenderes ao alto,
Lá onde as fibras subtis do vento
Tecem os tules, as ténues neblinas
Com que se enredoma a manhã.
Há ainda essas tuas pernas de basalto,
Esse teu coração pesado de tanta dor,
Os olhos onde as lágrimas
São de lava incandescente
Que te irrompe das entranhas -
Não sabes como irás sobreviver,
Mas talvez ajude saber
Que aquela que te deixou para sempre,
Aquela cujas cinzas
Espalhaste para dentro da terra,
Está à tua espera numa curva do tempo,
Numa curva do sonho,
Para te levar consigo
Para o prometido regaço dos deuses.
Vá, senta-te à porta da tarde,
E deixa que o rumor das vozes crepusculares
Dos que regressam a casa famintos de ternura,
E os ruídos da terra,
E de todos os seres que se preparam
Para mergulhar na noite,
Te envolvam corpo e alma -
E aligeirando-te essa dor infinita,
Encontres no perfume
Das rosas que perto te inebriam,
O impulso decisivo para que ascendas no ar
E regresses ao amado coração de tua filha.
António Simões, inédito, 2002.
Sem Título.

Paisagens Coaguladas

"-Nasciam folhas de ouro se alguém,

sorrindo, respirasse."

-Herberto Helder.

Respirava a inocência, a mecânica celeste, uma camélia

entre as mãos.
Loucos eram os animais esvaziando o crepúsculo.
Fluíam escarpados cinzéis,
os violoncelos nocturnos inundando a cabeça
e a lua excêntrica crescia, sobre os nós desfeitos.
Todo o silêncio irradiava paisagens coaguladas,
geografias de luz cruzando a permanente vertigem.
Na beleza abrupta, eu era única e autêntica, como um fruto,
e descia pelo sangue tumultuado que circulava pelo éter,
na luz das figuras enraivecidas.
Na flor desordenada, nada como esquecer-me,
nos fluidos arquipélagos,
e precipitar-me na natureza, nos seus ramos vivos
que queimam e jorram o mel, por cima do coração.
Eu era enfática, como uma paisagem.
E os lírios tocavam-me, com a sua beleza lívida, elevada
entre os frutos e os malmequeres,
e tinham voz, os lírios e um corpo acelerando,
ao ritmo das musas que se contraem, na sua letargia
de ouro, e olhos que sorriem, como lacunas verdes.
A voz de Deus descia das suas abóbodas densas,
lavrando os seus pelimpsestos luminosos de luz e indiferença.
Nas oscilações do corpo, a aurora manobrava o acaso.
Nas ressonâncias íntimas, o ouro soerguia-se
e o incenso queimava, no seu hálito branco.
Metida dentro do seu corpo, dizia para mim:
-Nada me confunde. Sou uma estrela petrificada.
E num arrebatado terror respirava.
O tempo ardia, urdindo, nas suas membranas de sangue
e absinto, uma haste desnuda, uma semente isolada,
uma corola lentíssima,
flor desordenada, pelo luar selvagem.

Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".
Fotopoema 45. Augusto Mota.

05/02/2006

Testamento

À prostituta mais nova
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
em cristal, límpido e puro...
E aquela virgem esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo,
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes,
que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança
desesperada mas firme,
deixo-os a ti, meu Amor...
Para que, na paz da hora,
em que minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,
vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua.


"Testamento", versos de Alda Lara
cantados por Teresa Tarouca.
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Alda Lara ( Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque ) nasceu em Benguela, Angola, a 9 de Junho de 1930 e faleceu em Cambambe, a 30 de Janeiro de 1962. Veio, porém, muito nova para Lisboa onde fez o 7º ano do liceu. Seguidamente, frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, tendo-se licenciado nesta última. Foi casada com o escritor Orlando Albuquerque que se propôs editar-lhe, postumamente, todos os poemas num volume e os contos num caderno.

Da sua obra poética destacam-se "Poemas", 1966, "Poesia", 1979, e, "Poemas", 1984.

Após a sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira, actual Lubango, instituiu o Prémio Alda Lara para Poesia.

Presença Africana

E apesar de tudo,

ainda sou a mesma!

Livre e esguia,

filha eterna de quanta rebeldia

me sagrou.

Mãe-África!

Mãe forte da floresta e do deserto,

ainda sou,

a irmã-mulher

de tudo o que em ti vibra

puro e incerto!...

- A dos coqueiros,

de cabeleiras verdes

e corpos arrojados

sobre o azul...

A do desdém

nascendo dos abraços

das palmeiras...

A do sol bom,

mordendo

o chão das Ingombotas...

A das acácias rubras,

salpicando de sangue as avenidas,

longas e floridas...

Sim!, ainda sou a mesma.

- A do amor transbordando

pelos carregadores do cais

suados e confusos,

pelos bairros imundos e dormentes

( Rua 11... Rua 11... )

pelos negros meninos

de barriga inchada

e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,

de tronco nu e musculoso,

a raça escreve a prumo,

a força destes dias...

E eu revendo ainda

e sempre, nela,

aquela

longa história inconsequente...

Terra!

Minha, eternamente...

Terra das acácias,

dos dongos,

dos cólios baloiçando,

mansamente... mansamente!...

Terra!

Ainda sou a mesma!

Ainda sou

a que num canto novo,

pura e livre,

me levanto,

ao aceno do teu Povo!...

Alda Lara, in "Poemas" ( "Sanzal Angola" de Carlos Pereira Gomes ).

03/02/2006

Mozart In Egypt 2

From an idea by Hughes de Courson and Ahmed al Maghraby
from Cosi fan tutte (Mozart/TRAD. Arr. H de Courson ).

02/02/2006

Mozart in Egypt

"The first "Mozart in Egypt" was a risk, even a dare: no-one had any idea what would come of it. The sucess of that disc was a surprise and a revelation: that first Mozart journey on a magic carpet flying between East and West brought out new images and sensations. But the concerts that followed showed that is possible to go much futher in the interchange between these two types of music, however different they might be. We were hungry for more. So that's why this time Mozart's scores have been more daringly "orientalised", and the musicians of the two "camps" have, so to speak, more often dressed in each other's clothes. We are all impetient to get back on stage."
- Hughes de Courson.


Mozart in Egypt 2
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Legenda Íntima 98. Augusto Mota.
Legenda Íntima 28. Augusto Mota.

na periferia do esquecimento

Quantas palavras se escondem por detrás de um gesto? E que olhares se escondem por detrás de uma palavra que navega na periferia do esquecimento? Será necessário, por certo, inventar uma nova semântica que ritualize o esforço dos gestos e dê ao corpo uma dimensão tão sublime como se alguém o estivesse a esculpir no mármore mais precioso, fazendo de seus veios as veias onde pulsam os mistérios da vida.
Algumas palavras também esculpem, em sua secreta significação, o corpo frágil da memória para, depois, se arrastarem pelos veios frios da pedra num delírio febril que vai deixando os sentidos ora ausentes, ora exangues.
O escultor, então, confunde-se com a sua própria obra esculpida e cada silêncio é a força decidida e precisa do cinzel a desbastar a matéria e a vida.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
Orquídea. Fotografia de Augusto Mota.

Ainda me lembro ...

Ainda me lembro como se lá estivera
Era de Fevereiro, o dia primeiro.
A aragem corria. Era noite e dia parecia
e o sol sorria à lua que beijá-la queria.
Ao primeiro vagido a parteira exclama. É Menina!
É Menina!
O pai timidamente assoma à porta. Hesita...
A mãe exausta, sorria aliviada. É menina.
E bonita, acrescenta a parteira. !-Que nome lhe dar?
Por mim - diz o pai - seria Gabriela, como sua mãe.
Passa o tempo. A Menina medrava, a Menina corria,
a Menina estudava, estudava e sabia.
Gabriela amava, amava e escrevia. Escrevia prosa, escrevia poesia.
Um dia...
Eu, que vira nascer a menina como se lá estivera,
reparei que - sem trono - se tornara Princesa
e dentro de si era sempre Primavera.
Glória Maria Marreiros, inédito.

01/02/2006

Poema de António Simões.
Fotografia de Nuno Verdasca.
Estudo e composição de Augusto Mota.

as cores do arco-íris

à Queen Glory
( Glória Maria Marreiros ),
à Fernanda Sal Monteiro,
ao Augusto Mota,
ao António Simões,
ao Nuno Verdasca
aos Amigos ...
ao som dos "Omen Sore" dos "Era", reencontro, ao virar a esquina, Jorge Listopad, Vergílio Ferreira e Inês Pedrosa, e, peço-lhes emprestadas as palavras ...
baixo o volume.
as ideias e os sons atropelam-se.
imagino-os brincando uns com os outros e escrevo em jeito de iniciação que o dia nasceu toldado de cinzento, como os políticos. não há uma aragem no ar frio. qualquer coisa se anuncia e as árvores do quintal sabem-no. quietas. perfiladas, aguardam. eu mesma me imobilizo, como elas, em espectativa. há um escuro que vem do lado do mar. é urgente mudar a cor do arco-íris sob pena de confundirmos o passo e o compasso. a realidade e a utopia. arrefece.
elevo o som.
paro e escuto.
será que ainda me apetece resistir?
as árvores respondem-me em silêncio ...
a música retoma, de novo, o lugar da palavra.
as ideias atropelam-se.
redimo a nobre arte. e volto a perguntar o que
dizer dum escritor, dum pensador, duma mulher ou de um homem que odeiam ser apenas mais um entre os demais? eventualmente, serão grandes depois de mortos(as), se seguidos(as) de canonização, em caso de manifesta esquizofrenia. mesmo assim, é necessário que deixem obra. deixá-la, porém, é obra! ... é por isso que pessoas como Natália Correia, Fernando Assis Pacheco e/ou José Carlos Ary dos Santos não poderiam ser em vida o que foram depois de mortos.
"glória para um lado, boémia, idealismos e decilitros para outro. de preferência, com a morte a separá-los."
meu pobre e provinciano país que só se reclina ao medíocre e ao pedante.
que bom não ter nada.
absolutamente nada.
vertirmo-nos de música e calçarmo-nos de ideias.
face à realidade, volto a questionar-me porque há-de ser sempre assim. acaso não há vislumbre de mudança?
claro que há. por isso teimo. teimamos. nós, os resistentes.
nesta aleivosia que repetem conduzir-nos a nenhures, há uma inquietação e um profundo mal estar que nos embala ao ritmo lento da terra.
elevo o som da música.
retiro os auscultadores.
o silêncio, neste momento, não faz sentido.
oiço "Divano" e
deixo-me envolver nos sons, banhada numa alegria íntima, sem reconhecer a razão de estar alegre.
será a atracção pelo abismo, a certeza absoluta de não domínio, o que ora me inquieta, ora me fascina?
antes de sair do "windows" e encerrar o computador, reencontro, também, Honegger que, em surdina, me afirma - "se é bem verdade que tudo pode abandonar-nos e desaparecer, porque há um princípio e um fim, não é menos verdade que a nobre arte de bem governar, apesar de todas as vicissitudes e incoerências, permanecerá para além da mísera ficção de cada um de nós". torna-se cada vez mais escuro o cinzento deste lado do mar.
urge alterar as cores ao arco-íris
(pré)anuncia-se,
e, as árvores do quintal sabem-no.
gabriela rocha martins, inédito.

Legenda Íntima 100. Augusto Mota.

a oficina do tempo

A escultura nasce da modelação das formas que mãos ávidas procuram moldar ao jeito do tempo, contra os limites estreitos do espaço.
Por isso deliciámos as mãos no barro fértil que fez surgir, na oficina do tempo, as formas ansiosas de um novo espaço.
Por isso deliciámos as formas férteis, surgidas na oficina do tempo, com as mãos ansiosas de um novo espaço.
Por isso deliciámos o espaço fértil, surgido na oficina do tempo, com as formas ansiosas de novas mãos.
Por isso as mãos férteis surgiram na oficina do tempo, deliciando o barro ansioso de novas formas em novo espaço.
A memória, como a escultura, nasce da modelação ávida do tempo, ao jeito dos limites estreitos do espaço.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.