23/09/2013

Outono

 
 
 
 
 
 
 
 
Palavras  de   António Simões
Fotografia de Augusto Mota



16/09/2013

 
 
 
 
OS  RATOS  E  A  FÁBULA
 
 
 
 
 
Para a FERNANDA BOTELHO


Numa cela há quatro cantos
cada canto tem seu rato...
- Quantos bichos há na cela?
- Quem diz o número exacto?
 
Não, meninos, não são quatro...
Vocês erraram as contas:
E então os bichos de conta?
E as pulgas que têm os ratos?
E o bicho que eu sou, não conta?
Valerei menos que os ratos?
 
Mas eu também me enganei
que a cela tem cinco cantos...
- Os quatro cantos da cela
e mais o canto que eu canto.
 
Temos todos que ir à escola
reaprender a contar...
Mas já que as contas errámos
não erremos no cantar:
 
- Vá! Cantem todos comigo!
Numa cela há quatro cantos
uma porta e um postigo
que faz a vez de janela...
Atás do postigo um olho
cuja perfídia nos gela:
 
Está sempre, sempre a espreitar...
 
A cela tem quatro cantos.
A cela não tem janelas.
Lá dentro, ao nível dos ratos
há homens sonhando estrelas.
 
 
Mário Gonçalves, in «POEMAS COM PESSOAS DENTRO», edição do autor, Lisboa, 1969, pp. 26 e 27
 
Foto de Ana Ramon



CELA DISCIPLINAR


A aranha deixou a teia em meio e
                                  foi-se embora:
- O lugar era demasiado desconfortável...



Mário Gonçalves, in «POEMAS COM PESSOAS DENTRO», edição do autor, Lisboa, 1969, p.29
 

 


POEMA DA FUNCIONÁRIA ZELOSA


Você é um fenómeno Maria
da Anunciação! Passou o dia inteiro
curvada, procurando no ficheiro
algo que ao cabo nem você sabia
o que era... - Porque o fez? - Não por dinheiro
(ganha tão pouco)... Então porque seria?
Por devoção? Por hábito? Ai Maria
da Anunciação... Mais dia, menos dia
cabe-lhe a vida inteira num ficheiro.



Mário Gonçalves, in «POEMAS COM PESSOAS DENTRO», edição do autor, Lisboa, 1969, p. 14 
 



TIVE CARTA, HOJE

a inspiração
escreveu-me finalmente
(já estava em cuidados)
a dizer
que chegaria às sete;

vou à estação
esperá-la à camionete -
mas como eu
sou simultaneamente
camionete, estação, inspiração
como sou da viagem
o princípio
e o fim
fico cá dentro
à espera de mim



António Simões, 1981

 
 
SIRVO  JÁ?
                                                                              
 
 
 
(de como um h, mesmo mudo,
                                                                                                pode dizer tudo)
 
Hora, hora!
D. Aurora!
 
"Ora, ora!"?
 
Hora com h,
Hora de tomar chá.
 
Ah!
 
 
 
António Simões, 1981
 
Desenho de António Caseiro, 1999



12/09/2013

Rosário Breve




UTOPIA LAMENTOSA
  

 


A minha utopia é a de um País cujos bombeiros só fossem precisos para tirar da árvore o gato que a ela subiu para desespero da viúva que tanto o mima.
Agosto ardeu já de ponta a ponta. Queimou combatentes que precisavam só de ter juízo, de ficar em casa com a família, de deixar arder os outros e o que é dos outros. Morreram uns tantos? Não faz, parece, mal: vamos continuar a ter futebol distrital.
A minha isotopia é a de um Portugal que quisesse chamar-se Mar-Pinhal. Uma longa horta de litorais 860 quilómetros. Um que plantasse sardinhas e pescasse tomate. Um que não permitisse à hidra do capitalismo a transformação de searas em campos de golfe. Um que, em vez de amestrar, educasse quem nasce. E que cuidasse de quem, por culpa inocente dos muitos anos, des-nasce sem amparo nem remédio.
Agosto é o nosso carnaval em chamas. Até aqui, era só um mês parolo, uma jornada bailada em calão, uma temporada pimba, papalva, quase inocente. Já não é só isso. Agora é também uma época mortífera. Parece uma telenovela fatal, a que acresce a “fatalidade” intolerável do calendário.
A minha utopia portuguesa é a de erradicar de uma vez para sempre o mês de Agosto. Baniríamos para sempre a crise, passando directamente de Julho a Setembro. Pensando em profundidade, aliás, nem de Julho precisaríamos. Ficávamos só com Junho, cujo Inventário foi escrito por Teixeira Gomes, elegante e nosso esquecido Presidente da República. Maio? Longe com ele: nasci num. Abril? Memória nenhuma e respeito nenhum, meu capitão Salgueiro Maia. Março? Nem com bagaço. Fevereiro? Adeus, atoleiro. Janeiro? Acabado, como o professor que antologiava as lendas da Primária no tempo em que se lia nas escolas. E nenhum Natal e nenhum Novembro por causa de tão infiel e tão defunto e nenhum Outubro.
A minha utopia é a dos oito bombeiros, entre rapazes, homens e raparigas, voltarem para casa a tempo de um País que nem de meses precisasse para estar a tempo de si mesmo.
No entretanto, também a democracia para que fui educado arde. Chega a ser desopilante, a anti-PIDE do tudo-à-mostra: a carcaça da corrupção, o Cavaco nas Selvagens a fazer de Vasco da Gama, os fatos Armani-Sócrates dos comentadores tipo Judite/Seara, a exuberante inteligência do CR7 pelo menos naquilo da Irina. Mas os bombeiros, os bombeiros…
Prefiro o gato da viúva, gozão, em cima do choupo. Sei do que falo: sou marido de bombeira, pelo que tive um mau mês. Muito mau. Mas para o ano há mais, bem no sei.


Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 12 de Setembro de 2013.

Foto: Augusto Mota

05/09/2013

Rosário Breve



OS TRAPOS





Envelhecemos, deveras e de vez, quando deixamos de praticar a eternidade. (A de cada dia, digo, que a não a outra, a de mentira das seitas autistas-evangélicas, essas matilhas engravatadas que andam de Deus na boca como cães que não desmordem o osso.)
A eternidade é aquilo que as crianças são de cor – e às cores. Certa idade madura existe que, não desprovida de lucidez, logra até assomos de felicidade, consistindo esta num ardil simples. É o ardil do alzheimer voluntário: esquecer a morte, deixando-a dissipar-se como pretérito hélio de balão passado, inútil (e nociva até) para o dia-a-dia.
Mas os velhos existem – e nem todos o são pela idade. Todos os dias os vejo por esta galeria que erigi em observatório mundial. Andam devagar, rasteirados pela exasperante areia que (n)os não deixa fugir, essa areia de quando, nos sonhos, o pânico nos congela o sangue. Parecem-me pombas golpeadas pelo falcão da irreversibilidade. São de uma castidade involuntária. O mais alto acontecimento deles é respirar ainda, ao alto de uma digestão de lâminas dispépticas. Casas que ameaçam derrocada, não têm a quem abrir a janela do que viveram. Têm pena, e raiva até, de que deles saibamos tão-só a história de irem morrer como se para nada mais houvessem nascido e sido. Semelham, um a um, lojas de centro comercial que, uma a uma, se liquidam as existências antes de, de vez e deveras, fecharem a porta e dar a chave ao gato.
Volvem-se aquíferos tártaros pelos mesmos poros por onde outrora jorraram salubridades chamadas filhos. Hibernam em pleno Verão, imunes à estupidez malévola dos netos, que entretanto ascenderam ao púlpito das freguesias, dos municípios, das secretarias de Estado e dos sobreiros trocados por submarinos em vez de, ao menos, helicópteros para o bombeiral.
Os velhos são a ominosa e luminosa evidência, por obscuro contraste, de que tudo arde. Não só, como hoje, à inclemência de Setembro, a tarde – mas a própria vida, a vida mesmo. Alienados, por deles e para eles, feliz nesciência, das tropelias malsãs do quotidiano, vegetam iodadamente numa espécie de algodão já surdo às premências mais básicas: comer um morango entre risadas de champanhe, soletrar sílaba a sílaba a carnação suculenta & suco & lenta de um ser que se nos dispa, reler Cesário Verde sem segundo resgate da Troika – e não necessitar ainda da perícia benevolente do doutor Vítor Martins do Hospital de Santarém, que, por assim dizer, miniaturiza no coração a vontade pacemaker de viver, nem que seja só mais um bocadito.
(Explicação, em prol e/ou prece da cumplicidade do meu leitor: dá-me sempre para isto, cada vez que Setembro volta a fingir que é o mesmo Setembro de antigamente. “Para isto”: isto é: para, verso/velho/a/velho/verso, reiterar a necessidade outonal do húmus, que é a latência polar do Inverno, que sagra à Vivaldi e à Stravinsky a Primavera que tudo, como tudo e como vereis, Verão será.)
Foi que, como esta manhã, mal ainda se anilando a alva no alvor entrecortado do morse dos estores e raspando-me eu a barba, o pequeno milagre da repetição quis ser mais novo do que trapo: ao espelho, a barba era minha que se ia, mas vinha dos olhos o olhar que foi, e há-de ser, o do meu Pai, esse trapo.



Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 5 de Setembro de 2013.

Foto: Augusto Mota