30/06/2013

Legendas íntimas



Legendas íntimas



O Homem

  A Nelson Mandela
 



Os mitos são nada e são tudo,                  
explicou Pessoa, enquanto os
olhos navegavam mar adentro
buscando  no Adamastor  a voz
do corpo moreno de África.

Meu irmão Mandela, eu prefiro
o homem, as mãos doloridas
da construção que ajudaste
do nosso mundo selvagem,
com o teu olhar doce atento.

Tu és o primeiro homem antes
do homem, aquele  que traz
a sabedoria dos amplos espaços
pendurada nas palavras entregues
aos homens de boa vontade.

Que me interessa que sejas
mito das multidões que choram?
És apenas, e tão só, o Homem
Construtor de mundos  e assim
te guardarei comigo, irmão.


                    Orlando Cardoso, 29 de Junho, 2013

 

28/06/2013

Textos transversais



27/06/2013

Rosário Breve



 FALA   UM  POBRETUGUÊS
 




 A vida – ou é politécnica ou dá em ser chilra como as águas de bacalhau. Já quanto a tal não engordo o bacorinho da dúvida. Por teologia portátil, sou tão-só um não-católico praticante. Não sofro Deus lá em cima nem temo do Diabo o baixio. O que se acha no fundo de cada copo é o desencontro. O desencontro e o desencanto, que o retorno à sobriedade pune e agrava.
Longamente esperei  Junho – para isto. Isto sendo: na abcissa do paladar, o abcesso do couro molhado em a malvasia da melancolia. Isto é um País que nem Junho melhora. Deve ser porque a minha doença se chama Portugal. Ou Pobretugal. O amor é uma doença, ninguém com dois dedos de testa e duas unhas de coração raciocinante (m)o negará. Padeço de me serem portuguesas, ou pobretuguesas, a vida e a condição. Acontece que convalesço mui mal de tal enfermidade. Entardenoitece-me a o espectáculo reiterado da estupidez mineral de um ex-Povo. O nosso. Portador embora de uma Língua superlativa e como nenhuma outra milionária de sílabas do mais fino quilate áureo, multissecular já, a Malta continua a dar o crânio por mesa de onde lhe comem as papas. Entenebrece-me que os mandadores planetários (amailos seus lacaio-caudatários locais) possam impunemente condenar a comum gente a trincar areia por pão. Por extensão, desfanica-me a coragem que o meu País se veja, à maneira titular de Irene Lisboa, com uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.
Entanto, a terça-feira para que renasço, 25 de Junho, é de uma limpidez prístina que até dói. A Luz é maiúscula como um avesso de Lua – e de redundante quididade. O esplendor é prodigioso qual um trecho camoniano (um qualquer). Como vela à bolina fresca, a aragem empluma levezas de pele que se dá ares. Fragrâncias de limoeiro confirmam da passarada a condição de porta-perfume. Tudo se aguarela muito, tudo se me afigura recente de si mesmo. Junho floresce perigosamente como a esperança. A esperança seja do que for. A esperança  que é perigosa por consistir em usança da espera. Mas esta Luz ajunhada, esta claridade que dá perfeitamente para perceber, por essas ruas & praças, quais os cônjuges que pela noite se refizeram eroticamente sudoríferas branduras e quais os que não.
Despertar para a legibilidade humana sempre me permitiu, até hoje, a não, por assim dizer, d-existência. Nasce-se com defeito e morre-se perfeito. Há quem se minta o contrário. É talvez porque a morte torna anterior até o futuro. E porque ela já (nos, a todos) começou nos lugares onde estivemos e a que não voltaremos. É por isso que tanto faço por voltar. Voltar por voltar. Voltar para viver. Ainda. Um pouco. Mais. Ainda que não física ou geograficamente, voltar para e em frente da lembrança. Tenho (temos todos) uma máquina-do-tempo para o efeito. Chama-se Memória.
O amor é cego.
A memória é o cão do cego.
Assim pude escrever, resgatando-me, mercê deste dístico, há uns poucos anos e em sítio e para gente a que não voltarei, de uma manhã parda, vivia eu então numa merdaleja qualquer certas minhas horas más de anos não bons.
Fora de portas, a Realidade rosnava ameaças peremptórias: pobreza, desemprego, álcool a mais, fins-de-linha. Ainda rosna, mas retorquindo-lhe lhe vou, a instantâneo prazo, em, por assim dizer, r-existência. Escoro-lhe de livros bons as horas más. Esturrico-lhe de versos tónicos as veleidades materiais. E desminto dela, em paleta arco-irisada, o pretobranquismo de suas práticas e feias fauces.
Estragou-se-me ontem o telemóvel, não tenho dinheiro para outro e não quero saber. Quem quiser falar comigo, que me escreva. Outra coisa não tenho feito estes já tantos anos todos. Tenho andado mais macambúzio que de costume por causa de um documentário que há dias revi pela TV. Era sobre a breve vida (mas perene obra) de um grand’enorme artista: Mário Botas (1952-1983), português da Nazaré. Morreu aos 31 anos, como o meu irmão Jorge. Mário e Jorge gostavam ambos de Egon Schiele (1890-1918). Outro que morreu tão novo.
Por contraponto, acabo saudando o ter vivido já os meus 49. Ninguém mos tira, por mais torçam Deus e o Diabo os respectivos rabichos de saca-rolhas de bacorinho. Assim contra os canhões marcho, afinal, no esplendor de Junho, se não de Portugal.


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 27 de Junho de 2013


   


Fotos: Augusto Mota / Gotículas de nevoeiro numa teia de aranha a envolver um ramo de Tojo (Ulex europaeus). Com manipulação cromática.


04/06/2013

BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - 26 e 27

 
 
 
 
                                                                   Cacto (Echinocactus grusonii)
 
Leiria, manhã de 10 de Maio de 2013, sexta-feira
                      
                                 26
 
É preciso ter passado, como eu passei, por vilas desertas ao domingo.
É preciso não ter nada em frente senão um salário.
Eu sabia que ia ficar para sempre na Música.
Sabia também que não me sustentaria dela mas para ela.
Suturava feridas invisíveis nascidas da fome de saber.
Como no Verão de 1991.
 
No Verão de 1991 trabalhei por conta de um homem que eu já era.
Perto, o regato mal respirava,
saturado de sol como estava. 
Fazia as refeições num reservado invisível também:
como se celebrasse uma missa agnóstica
à impossibilidade de Deus e ao mistério do Corpo.
 
Derredor, na volta da fonte, mulheres alheias cacarejavam
as notícias vilãs com essa tão portuguesa fúria alegre
que resulta do comentário da desgraça dos outros.
Habitava eu então um quarto muito branco
de cuja janela se me oferecia o mistério simples do dia,
que invariavelmente pintava cegonhas e campos de arroz.
 
Quando a alguém da Filarmónica morria um alguém seu,
fardava-me para integrar as honras da Música
à pessoa perdida. No fim, embebedávamo-nos sempre,
pois que é ponto assente a libação vínica contra
o desmando escandaloso da morte.
E o jornal íntimo se me manchava em furor sereno.
 
                              27
 
Não eram ainda as sete quando a alva me levantou.
Saí do poço que imita a morte, dei-me ao ofício de renascer.
Procurei no escuro o fato para não despertar a Mulher.
Açucarei água na cozinha, que bebi de pé não devagar.
Senti as escadas desdobrarem para mim a rua.
E depois cumprimentei o senhor Eduardo que vinha com o neto.
 
Às tantas de ter 49 anos, uma pessoa já sabe o prémio do dia.
Na mercearia do bairro, caixas cantam alto a fruta.
De coxas gordas, varizmarmóreas, a senhora Juliana beijarica o canário,
que é claro como o limão e como o pão novo.
Nada me custa alcançar o Rio, sabendo nas costas o nascimento.
O nascimento & morte.
 
Quando chego, estou de partida.
Assim como toda a gente toda a vida.
Exerço então o lápis qual florete,
esgrimindo o puro minério (a pura chispa) do Verbo.
Almoço a saturação da Música, das casas encerradas
à passagem do rei morto.
 
Canto para dentro o meu Sá, o meu Garção.
Finjo que não componho qualquer canção.
Ponho-me a arabescar as árvores maiores
enquanto desfloro rosinhas de, digamos, torrão-de-Alicante.
Então, a glória banha-me todo, torna-me lustral
como uma tocha de gelo, como um homem para o fogo.
 
Daniel Abrunheiro
 
       
 
                                                                     Pútegas (Cytinus ruber)
 
 
 
Fotos: augusto mota