04/05/2018

Rosário breve




TRÊS CURTAS-METRAGENS



A maior parte é baseada em factos reais.

A menor, também.




1. Baile de sábado-à-noite em associação recreativa de lugarejo. Os casados no bufete. As casadas, em casa. Os solteiros, à caça. As solteiras, ao alcance de tiro. Lâmpada de luz-roxa, bola-de-espelhos. Fora do recinto, mais motorizadas do que carros. Dentro, a latência biológica, predatória, rapace: fervor da pré-procriação.
Uma das solteiras: olhos iridescentes, carnação (gene)rosa, frequência universitária, um só ex-namorado no currículo.
Um dos solteiros: belo rapagão alto, espáduas simétricas, electricista-canalizador, cobiçadíssimo pela fauna fêmea.
O salão-de-baile tem escadas que sobem ao balcão-beberete. Ele vai a subi-las, agora. De baixo, ela mira-o fixamente pelas costas. Ele sente a pressão hipnótica daqueles olhos de céu estilhaçado. Já não acaba de subir. Desce, vai dextro a ela. A música está quase no fim – mas ele toma-a na mesma, dançam sem prévia apresentação mútua. Depois, ele leva-a pela mão ao bufete. Cerveja para ele, gasosa com groselha para ela. Só então se tornam Armando & Otília. E só então se tornam um(a) do outro.
Passado pouquíssimo tempo, têm uma filha. Oito meses antes disso, casaram-se pela igreja. Passado pouquíssimo tempo, ele adoece da cabeça. Desorienta-se por nada, muda-se-lhe o carácter, torna-se irascível, desfecha palavrões descabidos, arranja problemas no trabalho, despedem-no. Ela consegue finalmente forçá-lo aos médicos.
O primeiro médico é um negligente arrogante, não cuida da evidente gravidade do mal, mas o segundo doutor acerta de imediato contas com a fatalidade: tumor cerebral maligno. É uma vez operado – resiste heroicamente, segura-se de muletas, ainda reconhece mulher & filha. É operado segunda vez – fica vegetativo. Dura uns meses. A respiração dele enche a casa como o vento as florestas. O vento cessa, aquieta-se o arvoredo: ele morre.
No lugarejo, entretanto, não houve mais quem pegasse na direcção da associação recreativa. Nunca mais houve baile – só a luz permanece roxa, estilhaçados os espelhos da bola como dela o olhar outrora.


2. Era de comboio que vinha pelas primícias do entardenoitecer. O trabalho não era muito, não mais de quatro horas, ao fim das quais comia alguma coisa numa casa-de-pasto perto da gare ferroviária. Desfazia tempo lapijando as palavras-cruzadas do jornal do dia. Tomava o comboio de volta à hora invariável. Se o não fizesse, só cinco horas depois teria outro.
Uma noite, conheceu outra pessoa. A nova pessoa era mais velha uns vinte anos. Foi ao balcão da casa-de-pasto que se conheceram. Comiam lado-a-lado nos bancos giratórios de pé-alto. Foram revelando-se lances pretéritos de cada vida. Eram vidas vulgares. Eram tão-só duas pessoas. Não possuíam fortuna financeira ou predial relevante. Trabalhavam, colhiam o salário, gastavam-no em comida, luz, água, gás, licor, sabão & sapatos.
A pessoa com mais anos passou a interessar-se por palavras-cruzadas também, começando até a adquirir & a partilhar publicações da especialidade com a pessoa menos jovem. (E talvez algumas vezes a de menos anos tenha ido no comboio de só cinco horas depois.) Foram envelhecendo a par até as duas décadas de diferença se esbaterem invisivelmente.  
A casa-de-pasto mudou de gerência, o novo dono era antipático, passaram a encontrar-se na de duas portas ao lado. A pessoa que vinha & partia de comboio arranjou trabalho na cidade de origem, deixando de entardenoitecer por ali. Cruzam ainda palavras pelo correio – mas nunca mais se cruzaram.


3. Era uma vez um homem que se abstraía de dores anacrónicas do foro afectivo pelo escapismo da leitura. Ele era o primeiro – e o último – e o único – a reconhecer que o coração sentimental é uma relojoaria atafulhada que não bate bem (d)a hora: daí que lesse tanto contra ele.
Certa tarde de largos oiros aéreos, abeirou-se dele um indivíduo possuidor de olhos anónimos: era uma senhora. A mulher saudou-o pelo nome próprio. Ele sentiu-se embaraçado por se não recordar do próprio dela. Fez-se porém de não-surpreso & ofereceu-lhe assento. Ela aceitou, continuando a falar-lhe com a maior naturalidade tu-cá-tu-lá deste mundo.
Os temas eram os de sempre: separações, filhos, progressão-na-carreira, escassez de perspectivas, a aranha da idade babando a seda da última teia.
Ele apreciou o fulgor não-pintado da cabeleira dela, a alvura coruscante da dentição, a firmeza agressiva dos morangos peitorais pontiagudando a blusa roxa, as mãos pequeninas de boneca crescida. Isso – mais as safiras perigosas com que ela o olhava (e via). Ela insistiu em pagar a despesa, despedindo-se assim: 
– Felicidades, Armando.
Ai Otília, como se “felicidade” pudesse ter plural.







Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 3 de Maio, 2018
 
Ilustrações: Dois desenhos clássicos do Gestaltismo, ou Teoria da Forma, ou Psicologia da Forma. 
Em cima  –  A ilusão apresenta ao observador uma escolha mental entre duas interpretações válidas: a silhueta de um cálice ou a silhueta do perfil de duas faces humanas. Normalmente o observador percebe apenas uma delas e somente, após algum tempo, consegue perceber a segunda. Ao tentar observar a primeira e a segunda interpretação simultaneamente percebe-se que uma acaba por impedir a outra.
Em baixoNeste desenho também o observador está sujeito a uma escolha mental, mas mais complexa.  O observador, geralmente,  vê  primeiro a cabeça de uma velha. Mas está lá a cabeça de uma jovem. Tudo depende dos processos cognitivos do leitor no momento em que vê a imagem. Por isso é natural que outro leitor veja logo a cabeça da jovem e não consiga ver a cabeça da velha.

Ao ler estas "Três curtas-metragens" e a advertência inicial do autor, por qualquer estranha lógica, logo se me impuseram mentalmente estas ilustrações como as mais adequadas para tais textos! 
 

Edição de Augusto Mota

03/05/2018

Wanya, escala em Orongo




AUGUSTO MOTA NA DOMINGOS SEQUEIRA



No passado dia 19 de abril, as portas do auditório da Escola Secundária de Domingos Sequeira (ESDS) abriram-se para receber Augusto Mota. A acolhê-lo estavam os alunos de Artes da Escola e alguns professores: os primeiros tinham uma ideia vaga de quem se tratava, os segundos, em particular os mais velhos, sabiam que aquele seria um evento especial na Escola.




A apresentação inicial feita pela organização do evento forneceu dados úteis, não só sobre o percurso e obra do convidado, mas também sobre a história da ESDS. Era importante que os alunos ficassem a saber que eram herdeiros de uma escola centenária que teve como diretores e professores vários artistas, a começar pelo primeiro diretor, em 1888, João Ribeiro Cristino da Silva; a ele se juntaram, ao longo de décadas, Ernesto Korrodi, Narciso Costa, Luís Fernandes, Matilde Rosa Araújo, Cristóvão Aguiar, Nelson Dias… e Augusto Mota, entre outros. 



Na conversa mantida na sessão, falou-se de alguns destes nomes e outros que a memória viva de Augusto Mota ia desenrolando. Destacou em particular o nome do pintor  Nelson Dias, de quem foi colega como professor e com quem trabalhou no álbum de banda desenhada Wanya, escala em Orongo, nos anos 70. Este era um título que dizia alguma coisa aos alunos presentes que tinham andado a explorar graficamente o álbum, sendo disso testemunho a exposição de trabalhos presente no átrio. 



 

Em torno desta obra, ficaram a conhecer vários pormenores ligados ao aparecimento do projeto, a referências do texto, o perfeccionismo do traço, a edição e o impacto que o livro teve nas instituições e na imprensa da época e aquando do lançamento da 2ª edição, em 2008. A este propósito, leu artigos de jornais e revistas publicados na altura e que testemunham o espaço singular que Wanya ocupou no panorama das histórias aos quadradinhos.


 


Várias questões colocadas ao convidado por professores e alunos permitiram que se entendesse o que era ser professor e artista num tempo em que os constrangimentos à liberdade eram maiores, mas em que, talvez por isso mesmo, a vitalidade artística da escola tinha uma dinâmica particular, que fazia da então Escola Industrial e Comercial de Leiria uma “incubadora” de artistas. A evidenciar esta ideia, falou-se da atual exposição  no m|i|mo - museu da imagem em movimento, Nós e os outros”, tendo Augusto Mota salientado a qualidade da mostra e apelado a que os alunos fizessem uma visita guiada.


Os alunos presentes saíram certamente mais enriquecidos da sessão e oxalá tenham apanhado o testemunho da vocação artística da Escola, da qual Augusto Mota é uma lenda viva.

Bem haja!


Texto de Natália Caseiro

Fotos da sessão de Paula Gaspar