30/11/2011

Acaso





texto 53, de «A Geografia do Prazer», 2000 (não editado)
foto e arranjo gráfico: augusto mota 

a ARTE NOVA nos azulejos em Portugal




     No próximo dia 10 de Dezembro, pelas 15 horas, terá lugar, no Museu Municipal Dr. Santos Rocha, na Figueira da Foz, a inauguração da exposição a Arte Nova nos azulejos em Portugal, exposição que iniciou a sua itinerância no Museu Municipal de Aveiro, de 16 de Julho a 2 de Setembro, pp., como homenagem à cidade considerada em Portugal a capital da Arte Nova. Esta será a segunda mostra deste acervo temático do grande coleccionador e investigador da arte azulejar que é o Engº Feliciano David.


1. a colecção de azulejos
     Ao apresentar esta colecção, recordo com saudade a Maria Graciete que comigo partilhou, durante quase duas décadas, esta paixão.

     Com a paciência típica do coleccionador, em feiras e lojas de antiguidades, leilões, ou estaleiros de demolições, por todo o país, fomos juntando milhares de azulejos enriquecendo a colecção com os melhores exemplares que encontramos.
Esta é composta por um acervo que, pela sua vastidão (mais de seis dezenas de milhar), qualidade e diversidade (período entre o séc. XVI até à primeira metade do séc. XX) constitui, porventura, uma das maiores colecções privadas de azulejaria.
     Com efeito, dispõe de cerca de quatro milhares de azulejos de padrão do século XVII. Do século XVIII, afigura-se-me que é a mais variada colecção de padronagem existente em Portugal. Ainda deste século, possui dezenas de painéis de influência rocaille e barroca, e cerca de uma centena de painéis ornamentais de azulejaria neoclássica, muitos dos quais de produção da Fábrica do Rato, bem como de milhares de azulejos de figuras avulsas e de dezenas de albarradas.
     Do último quartel do século XIX e primeira metade do séc. XX, a colecção de azulejos de padrão é, também, bastante completa, com particular incidência na azulejaria de fachada, e ainda, de três centenas de azulejos de Bordalo Pinheiro de produção da Fábrica de Cerâmica das Caldas da Rainha.


2. as motivações para coleccionar azulejos

     Ao reunirmos esta colecção moveu-nos, não só o gosto pela azulejaria mas, fundamentalmente, o desejo de contribuir para o estudo e preservação de um dos mais belos e valiosos patrimónios artísticos nacionais, o património azulejar, considerado no contexto internacional o mais rico da Europa e um dos mais representativos da cultura portuguesa.
     Porque os povos que não cuidam do seu património histórico-cultural estão condenados a perder a sua identidade.


     Mas nunca quisemos mantê-la no âmbito privado para nosso deleite. Entendemos que a colecção só tem verdadeiro sentido quando lhe é dada visibilidade, quando é dada a fruir não só a outras pessoas que, tal como nós, amam o azulejo, mas igualmente, ao público em geral que ainda não está sensibilizado para olhar este tipo de expressão artística e para reconhecer a sua riqueza que é de ontem, de hoje e que será, certamente, de amanhã. Se a preservarmos.
     Por isso, uma parte da colecção encontra-se depositada, há mais de uma dezena de anos, no Museu Nacional do Azulejo, constituída por cinquenta e cinco painéis, que totalizam cerca de 3500 azulejos de padrão do século XVII ao XX, bem como de painéis ornamentais neoclássicos do século XVIII, muitos dos quais integraram várias exposições, nomeadamente: “A Cerâmica Neoclássica” em 1997; “A Cerâmica da Fábrica de Louça ao Rato”, em 2005 no Museu Nacional do Azulejo, e em 2006 no Museu Nacional Soares dos Reis; a exposição evocativa do Centenário de “Santos Simões”, em 2007, bem como outras exposições em Espanha, no Brasil, e em Itália.


     No Museu de Cerâmica de Sacavém foi, também, depositada, há 10 anos, aquando da sua inauguração, a colecção de produção desta Fábrica composta por cerca de 6600 azulejos e, igualmente no Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, os azulejos da autoria de Costa Motta Sobrinho.
     Mas outras iniciativas têm contribuído para dar a conhecer a colecção. Esta é a terceira exposição temática que se realiza, no âmbito local, integrada, exclusivamente, por azulejos da colecção. A primeira teve lugar no Museu de Cerâmica de Sacavém, promovida pela Câmara Municipal de Loures; a segunda, na Madeira, por iniciativa da Câmara de Machico, ainda a decorrer até Outubro, dedicada ao azulejo de figura avulsa.


5. azulejos que integram a exposição

     A exposição inclui cerca de 1400 azulejos portugueses e 164 estrangeiros seleccionados de entre os mais representativos da colecção.
     O maior número de azulejos portugueses exposto foi produzido pela Fábrica de Louça de Sacavém, vindo a seguir os da Fábrica do Desterro, e da Fábrica Constância, todas de Lisboa; as Fábricas das Devesas e do Carvalhinho, de Gaia/Porto, têm, também, uma presença significativa, bem como a Fábrica de Louça das Caldas da Rainha de Rafael Bordalo Pinheiro. Fazem, ainda, parte da exposição cerca de sete painéis constituídos por azulejos cuja origem de fabrico não foi possível identificar com segurança, mas que se supõe serem, maioritariamente, de produção de fábricas de Lisboa.


     A parte estrangeira inclui azulejos de diversos países, nomeadamente, de Inglaterra, Bélgica, França, Alemanha, Espanha, etc. Esclareço que nunca foi nossa intenção coleccionar azulejaria estrangeira. No entanto, acabamos por adquirir algumas centenas de azulejos com o objectivo de os conhecer e comparar com os congéneres portugueses.
     De resto, a minha experiência de coleccionador leva-me a admitir que, no primeiro quartel do século XX, Portugal importou relativamente poucos azulejos decorativos dos quais alguns de Inglaterra, sendo na sua maioria destinados ao Porto, onde foram adquiridos, provenientes, ao que parece, do interior de habitações; no caso dos azulejos espanhóis terão estado colocados, possivelmente, na região de Lisboa.


     Ao amigo Feliciano David agradeço ter autorizado a reprodução dos seus textos, que iniciam o belo catálogo da exposição realizada em Aveiro, bem como de algumas imagens que o ilustram. Para animar tais textos escolhemos as fotos que, pela suas proporções, melhor se adaptavam às "paredes" deste Palácio das Varandas, ou seja, do Xarajib de SilvesNão tivemos a preocupação de identificar técnicas, ou fábricas. Quisemos, tão só, suscitar a curiosidade de todos os que estas imagens vejam para irem até à Figueira da Foz ver e viver esta bela exposição.
augusto mota

Vídeo da inauguração da exposição no Museu de Aveiro:


20/11/2011

in memoriam

 
 
-ao JJ. 
gabriela rocha martins

13/11/2011

A Casa






Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada

Ninguém podia entrar nela, não
Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede

Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali

Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos, número zero

                                                   Vinícius de Moraes


"Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...". Todo mundo conhece esses versos infantis do Vinícius de Moraes. O que quase ninguém conhece é a sequência original: "Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Ninguém podia fazer pipi, porque penico não tinha ali, mas era feita com pororó, era a casa de Vilaró".  

Vilaró é Carlos Paez Vilaró, amigo pessoal de Vinícius e idealizador do Casapueblo, a casa em Punta Ballena, no Uruguai, onde o poetinha compôs "A casa" para seus netos.

Obs.: A letra desta canção infantil, popularizada por Tom Jobim, é apresentada na net com várias disposições gráficas. Optámos por esta por ser de mais fácil leitura.

Foto: Ana Ramon, tirada numa praia de Póvoa de Varzim, 2011
Informação in : http://www.pitoresco.com.br/espelho/2005_01/vinicius/vilaro.htm

12/11/2011

António Gedeão ( 1906 . 1997 )





Poema para Galileu

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

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bioblibliografia


António Gedeão, (Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), nasceu em Lisboa em 1906.
Criança precoce, aos 5 anos escreveu os seus primeiros poemas e aos 10 decidiu completar "Os Lusíadas" de Camões.
A par desta inclinação para as letras, ao entrar para o liceu Gil Vicente, tomou contacto com as ciências e foi aí que despertou nele um novo interesse.
Em 1931 licenciou-se em Ciências Físico Químicas pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e em 1932 conclui o curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras do Porto, prenunciando assim qual seria a sua actividade principal daí para a frente e durante 40 anos: professor e pedagogo.
Exigente e comunicador por excelência, para Rómulo de Carvalho ensinar era uma paixão e uma dedicação.
E assim, além da colaboração como co director da "Gazeta de Física" a partir de 1946, concentrou durante muitos anos, os seus esforços no ensino, dedicando-se, inclusivé, à elaboração de compêndios escolares, inovadores pelo grafismo e forma de abordar matérias tão complexas como a física e a química.
Dedicação estendida, a partir de 1952, à difusão científica a um nível mais amplo através da colecção "Ciência Para Gente Nova" e muitos outros títulos, entre os quais "Física para o Povo", cujas edições acompanham os leigos interessados pela ciência até meados da década de 1970.
Apesar da intensa actividade científica, Rómulo de Carvalho nunca esqueceu a arte das palavras e continuou sempre a escrever poesia.
Porém, não a considerando de qualidade e pensando que nunca seria útil a ninguém, nunca tentou publicá la, preferindo destruí-la.
Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publicou, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas "Movimento Perpétuo" com o pseudónimo António Gedeão.
Continuou depois a publicar poesia, aventurando-se, anos mais tarde, no teatro, no ensaio e na ficção.
Nos seus poemas há uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança.
Aí reside a sua originalidade, difícil de catalogar, originada por uma vida em que sempre coexistiram esses dois interesses totalmente distintos..
A poesia de Gedeão é bastante comunicativa e marca toda uma geração que, reprimida por um regime ditatorial e atormentada por uma guerra, cujo fim não se adivinhava, se sentia profundamente tocada pelos valores expressos pelo poeta e assim se atrevia a acreditar que, através do sonho, era possível encontrar o caminho para a liberdade.
É deste modo que "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, se torna num hino à liberdade e ao sonho. Mais tarde, em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e produz o álbum "Fala do Homem Nascido".
Nos anos seguintes dedicou-se por inteiro à investigação, publicando numerosos livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência.
Gedeão também continuou a sonhar, mas o fim aproximava-se e o desejo de morrer determinou, em 1984, a publicação de Poemas Póstumos.
Em 1990, já com 83 anos, Rómulo de Carvalho assumiu a direcção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, sete anos depois de se ter tornado sócio correspondente da Academia de Ciências, função que desempenharia até ao fim dos seus dias.
Quando completou 90 anos de idade, a sua vida foi alvo de uma homenagem a nível nacional.
O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, foi reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música.
Faleceu em 1997.

Obra Literária:
Poesia:"Movimento Perpétuo", 1956;
"Teatro do Mundo", 1958;
"Declaração de Amor", 1959;
"Máquina de Fogo", 1961;
"Poesias Completas", 1964;
"Linhas de Força", 1967;
"Soneto", 1980;
"Poema para Galileu", 1982;
"Poemas Póstumos",1984;
"Poemas dos textos", 1985;
"Novos Poemas Póstumos", 1990

Ficção:"A poltrona e outras novelas", 1973

Teatro:
"RTX 78/24", 1978;
"História Breve da Lua", 1981

Ensaio:"O Sentimento Científico em Bocage", 1965;
"Ay Flores, Ay flores do verde pino", 1975

Obra Científica:
"Ciência Hermética", 1947;
"Embalsamento Egípcio", 1948;
"Compêndio de Química para o 3º Ciclo", 1953;
"Sr. Tompkins explora o átomo", 1956;
"Guias de trabalhos práticos de Química" [3º Ciclo], 1957;
"Que é a física?", 1959;
"Problemas de Física para o 3º Ciclo do Ensino
Liceal", I volume, 1959;
"A Física para o Povo", 1968;
"Ciências da Natureza",1974;
"Aditamento ao guia de trabalhos práticos de Química", 1975;
"A Descoberta do Mundo da Física", 1979;
"A Experiência Científica", 1979;
"A Natureza Corpuscular da Matéria", 1979;
"Moléculas, Átomos e Iões", 1979;
"A Energia", 1980;
"A Estrutura Cristalina", 1980;
"As Forças", 1980;
"As Reacções Químicas", 1980;
"O Peso e a Massa", 1980;
"A Composição do Ar", 1982;
"A Electricidade Estática", 1982;
"A Pressão Atmosférica", 1982;
"A Corrente Eléctrica", 1983;
"A Electrónica", 1983;
"Magnetismo e Electromagnetismo", 1983;
"A Energia Radiante", 1985;
"A Radioactividade", 1985;
"Ondas e Corpúsculos",1985

Investigação histórica:
"História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa [1765 1772]", 1959;
"História do gabinete de Física da Universidade de Coimbra [1772 1790] desde a sua fundação em 1772 até ao Jubileu do Prof. Giovani António Dalla Bella", 1978;
"Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII", 1979;
"A Actividade Pedagógica da Academia das Ciências da Lisboa nos Séculos XVIII e XIX", 1981;
"A Física Experimental em Portugal no Século XVIII", 1982;
"A Astronomia em Portugal no Século XVIII", 1985;
"História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar Caetano", 1986;
"O Texto Poético Como Documento Social", 1994. [ in: luso.poemas ]

10/11/2011

texto transversal






José Tolentino Mendonça ( 1965.......)




A presença mais pura

Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


José Tolentino Mendonça
de "A Que Distância Deixaste o Coração"
( Anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa ) ,in poesias_e_prosas

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dados biobibliográficos


José Tolentino Mendonça nasceu em 1965 na ilha da Madeira (Machico). É licenciado em teologia e doutorado em Ciências Bíblicas. É capelão da Universidade Católica de Lisboa, onde dá aulas de teologia bíblica. Sobre a sua vocação religiosa já confessou que "foi uma coisa de juventude, inconsequente, imprudente, inesperada, que eu procuro manter. Ser padre é um nomadismo interior constante. É aceitar a pobreza como condição. E a pobreza é uma coisa chata de viver. É achar que isso pode ser uma forma de dizer alguma coisa ao seu tempo". Publicou vários livros de poemas (Os dias contados, S.R.T.C./Madeira, 1990; As estratégias do desejo, Ed. Cotovia, 1995, Longe não sabia, Ed. Presença, 1997; A que distância deixaste o coração, Ed. Assírio e Alvim, 1998; Baldios, Ed. Assírio e Alvim, 1999 De igual para igual, Ed. Assírio e Alvim, 2001 e A Estrada Branca,2005 Assírio & Alvim,). Escreveu, entre outros, o ensaio "As Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico sobre a Sexualidade", Livros Cotovia (1994), traduziu o "Cântico dos Cânticos" (1997). É autor da peça de teatro Perdoar Helena, Assírio & Alvim, 2005.

flores, flores, flores






flores,
essas, as de sangue,
dos que tombaram
e verticais ficaram
a nosso lado,
a crescer nosso amor
e nosso assombro -



flores, flores,
essas, as de esperança,
dos que ondularam
a seara do futuro em cada ombro !


                                             António Simões, 1963



da série  «POEMAS DUM OUTRO TEMPO»
foto: Augusto Mota / Papoilas das searas ( papaver rhoes )

08/11/2011

( ocasos ).- 1º desac acto






chega a casa

deita.se dentro da noite sem quaisquer palavras ou
ideias pré concebidas

os seus olhos abrigam o luar
nas redes dos barcos aferrados quando
( avara )
memora uma duas três palavras
indiferente à alegria azul dos braços
que estende ao sol
marejando a desilusão nas pálpebras
pousadas sobre a cama
como se fossem pássaros mortos
sem motejos mas
com as ideias
escritas no ocaso
delirante

dos homens//deuses





gabriela rocha martins ,in .cante.chão.

-imagens de ewa brzozowska.