31/12/2013


ARITMÉTICA  DE  REBANHO
 





Digo-o de cor mas não à pressa: a 8 de Março próximo, é de celebrar o primeiro século decorrido desde a magia de maravilha daquele   momento/limiar em que, acercando-se de uma cómoda alta em perfeito transe de criação, um tal Fernando Alberto Pessoa Caeiro deu à luz, e de um jacto, os poemas de O Guardador de Rebanhos.
Esse mesmo ano quatordécimo do XX foi o do rebentamento da famigerada Grande Guerra, também chamada Primeira Mundial (como se toda e qualquer guerra, por invariavelmente configurar o crime da desumanidade contra a humanidade, não fosse sempre mundial).
E foi também, já agora, o do nascimento de Alberto dos Santos Abrunheiro, meu Tio paterno e o mais perfeito exemplar da mais exemplar solidão pessoal que já me foi acontecido conhecer. Amputado aos dezanove anos de uma das pernas no mesmo ano de gangrena da ascensão de Hitler à chancelaria do Reich e da, por cá, infame Constituição salazarenta que pros(ins)tituiu a ratazanaria do Estado Novo, esse meu também Alberto atravessou a vau o almegue desolado da própria existência, a qual se lhe finou, sozinho ele como à chuva um cão sem coleira, a 14 de Agosto de 1980. Outro catorze para outro Alberto, portanto: aritmética de rebanho.
Destas águas passadas, confesso, se movem os meus moinhos, quiçá se não de mais. São, por assim dizer, a minha cinemateca portátil, pois que, surda e gestual à maneira de cinema-mudo comigo sozinho na plateia, sempre me deixa re(vi)ver o-que-lá-vai no cumprimento da ameaça de nunca mais voltar.
Entre o ano que aí vem e o que ora se nos acaba, parece-me bem (mal) que o Diabo já veio e já escolheu: mais do mesmo e p’ra pior. O contumaz e relapso desGoverno da Nação, em inquebrantável imunidade ao mais simples civismo como o daltónico ao arco-íris, tudo (des)fará em proveito do piorio.
Passos continuará sempre inapto e inepto, incapaz sempre de entender o Barão de Itaraté: “Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.”
Já o inefável Portas não há-de ter, dentre as dezenas de milhar de fotocópias que à escancarada sorrelfa esmifrou ao xerox do Ministério da Defesa, uma mera folheca A4 que lhe recorde o que Virginia Woolf recordou, que foi aquilo que fez a Lady Winchelsea escarnecer do autor de Trivia, um tal John (curiosamente) Gay: “Mais lhe competiria andar à frente da carruagem do que andar nela.”
Resta-nos, dos vigentes, o mineral Cavaco, cuja rigidez malar trai dele a propensão facínora para a lagrimeta de esguicho provinda da flor de plástico à lapela de mau cómico. Porque, de entre tantas mais coisas, a “preocupação” dele para com os reformados se resume a dois utentes: ele próprio e a própria mulher dele próprio.
Em 2013 como em 2014, tudo isto me parece ser de sem-tirar-nem-pôr, tão-só ressalvando, da geral canalhada, a rapaziada de toga-tunga do Tribunal Constitucional, benza Deus a tais santinhos deste mais estábulo do que Estado.
À guisa, enfim, de conclusão, isto está pró péssimo e não vai p’ra menos ruim. Optimismos tolos, sirva-se deles o acéfalo de serviço à porta da sopa-dos-pobres em arroubo de caridadezinha sazonal. A verdade é sermos, um a um(a), dez milhões de pategos sempr’agradecidos a Vossa Senhoria, o bonezito estendido como língua de pano, o joelhozito dobrado em ângulo tipo-Cova-da-Iria ante a azinheira do Poder. Como é verdade também subirmos todos já a encosta nascente da Serra do Caramulo, em cujo cume pontifica o quarto sozinho e crepuscular do sanatório que os dois Albertos, o que era meu Tio e o que guardava rebanhos de tinta por veigas de papel, escolheram para, respectivamente, morrer e nascer – dois actos existenciais que o próximo ano não promete propriamente vir a saber distinguir.


Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 31 de Dezembro de 2013




Ilustrações de Vlasta Zábranský, in «Pardon», revista satírica alemã, início da década de 1970. 
 
* escrito e editado por augusto mota

Haicais e que tais





Capa


Do postfácio de Fábio Lucas - Carlos Seabra além dos Haicais - transcrevemos:


 " Os géneros literários constituem marcos retóricos ou poéticos, legitimados pelas convenções. Cumpre aos poetas segui-los e, depois, ultrapassá-los.
É o que se verifica com os Haicais de Carlos Seabra. Encontram-se mais próximos da forma do que do espírito. É que a alteridade da composição, transplantada ao solo brasileiro, incorpora os sinais da tradição poética local. Tudo em versos mínimos, de rapidez eletrônica.
Carlos Seabra visita vários núcleos temáticos, com um gestual de cirurgião plástico. Ventila os pequenos poemas ora com o sopro romântico, ora com a graça da ironia, que não chega, todavia, à mordacidade.
Gradua o tempo segundo a herança heraclítica: caminho para a morte, pontilhado de clarões epifânicos. Relâmpagos de eternidade.
Intromete-se, em uma ou outra composição, o homem político, indignado, acossado pelas injustiças que a civilização vem acumulando. (...)" 


O autor agrupa neste livro várias categorias de Haicais: os que se referem à natureza, os humorísticos ou satíricos, os românticos e os eróticos. Transcrevemos, de cada categoria, os que, de imediato, mais nos sensibilizaram:


trigo dourado
pelas mãos do vento
é penteado


que flor é esta,
que perfuma assim
toda a floresta?
 
chão de caruma,
crepitar de pinheiral -
passos ou fogo?
         * 
fera ferida
nunca desiste -
luta pela vida

casa quieta -
cochila o avô e
dorme a neta

rochedo no mar
barco afundado
olhos a chorar
         *
gente sem terra,
corrupção, dsemprego:
mundo em guerra

dia de eleição
primeiro o seu voto
depois a traição

deu no jornal:
economia vai bem
o povo vai mal
         *
ao te adorar 
não sei mais se tens 
corpo ou altar...

que delícia -
um decote aberto 
com malícia 

olhos felinos
e um corpo de mulher -
cuidado meninos!




Contracapa 


É permitida a reprodução dos textos contidos neste livro, desde que citados autor e fonte. Capa e contracapa Eugénia Tabosa, Massao Ohno Editor, S. Paulo, 20o5. Dimensões: 15  x  15 cm, 60 pp.

Carlos Seabra nasceu em Lisboa em 1955, mas vive no Brasil, em S. Paulo, desde 1969.

* escrito e editado por augusto mota

22/12/2013

Lançamento de livro 2






(Clique, no texto abaixo, em multifacetado escritor para aceder à biografia do autor)


No passado Domingo, dia 15 de Dezembro, pelas 17.30 h, teve lugar no belo auditório da Filarmónica das Chãs a apresentação do livro «PEGADAS DO TEMPO», da autoria de Luís Lourenço, mais uma obra a juntar ao seu curriculum de multifacetado escritor. Solicitou-me o autor que lhe fizesse a apresentação da obra, tarefa que aceitei dadas as características muito específicas do livro. É que me surpreendeu com uma bem conseguida incursão pelos territórios do haikai, ou haiku, modalidade poética muito cultivada no Brasil na década de 1930, não só por imigrantes da vasta colónia japonesa, mas também por intelectuais brasileiros que por tal forma de arte se deixaram seduzir e a adaptaram ao ritmo e sonoridade da língua portuguesa. O haikai caracteriza-se por um esquema muito simples de 3 versos (5-7-5 sílabas), em que o primeiro verso rima com o terceiro e o segundo, normalmente, tem uma rima interna na 2ª sílaba, que rima com a 7ª sílaba. 
  
Pároco de Regueira de Pontes, Augusto Mota e Luís Lourenço


O autor apresentando o apresentador

Luís Lourenço que, como escritor, é mais conhecido e reconhecido no Brasil do que em Portugal, foi lá que contactou com o haikai e com as diversas correntes de opinião quanto à respectiva estrutura, hoje mais liberta dos rígidos cânones tradicionais. Há os que defendem mais o conteúdo, para realçarem a concisão, a intuição e a emoção, enquanto outros são adeptos de uma forma rígida, seguindo a norma das 17 sílabas e o jogo da rima. Luís Lourenço afastou-se do espartilho de ambos para construir a sua  própria estrutura de curtos tercetos, com uma rima variável, que voga ao sabor da emoção e das imagens que os motivaram: umas vezes tal rima é a-a-b, outras  a-b-a, ou ainda a-b-b. Também o poeta não se assumiu em parte alguma da obra como cultor do haikai. Apenas o autor do prefácio nos remete, logo no início, para “a poesia haiku, talvez para dar uma pista ao leitor para este género de composição. Mas já outros poetas portugueses se dedicaram, esporadicamente, a este tipo de exercício conciso, sem terem a preocupação de o catalogar. Interessou-lhes, apenas, o resultado final. Recordo alguns nomes, cujos poemas breves já ilustrei e expus como Fotopoemas, portanto com o texto fazendo parte integrante das imagens. De Cruzeiro Seixas: “Silenciosa flor / do meu jardim / que ar amargo / guardas para mim.”, ou “Desfolhar uma rosa / é poesia / ou prosa?”; de António Simões: “ quem deu asas de oiro às giestas / e às borboletas, pétalas macias? / ah! Já sei: tu chegaste!” (título «primavera»); de Luís Pignatelli: “uma cabra / ruminando a manhã / o arco-íris / a sua erva.”; de Carlos Alberto Silva: "há um banquete de pólen / no jardim do amor / eu serei abelha e tu a flor" / (título «refeição nua»); ou ainda de Eugénio de Andrade: “Vê como o verão / subitamente / se faz água no teu peito, / e a noite se faz barco, / e minha mão marinheiro.” 


 
Aspecto parcial da assistência

Ao contrário dos poetas acima referidos, cujos textos nasceram apenas da vivência poética de seus autores, Luís Lourenço teve a feliz ideia de motivar todos os seus tercetos com fotografias a cores, cuja selecção já denota um critério para-poético, bem como as múltiplas vivências na sua aldeia natal, que, depois, interpreta transversalmente, dando-nos não uma mera descrição do texto icónico, portanto da imagem, mas um texto verbal que implica da parte do leitor um exercício reconstrutivo, o qual interfere subjectivamente no objecto retratado. Ao leitor exige-se, pois, um esforço interpretativo, devendo também ele fazer um apelo à sua cultura, às suas vivências e experiências. 


 Lendo poesia minimalista de Tchello d'Barros

Aproveitando a ocasião, e porque tudo se liga com tudo, não quis deixar de chamar a atenção para outras modalidades poéticas como a poesia minimalista do brasileiro Tchello d’Barros, do qual li alguns exemplos, e para uma modalidade típica da língua inglesa - os Limericks -, criados por Edward Lear, que publica anonimamente o seu primeiro livro de limericks em 1846: «Book of Nonsense» (Livro dos Disparates). Este género teve cultores de renome como Lewis Carroll, Rudyard Kipling e até mesmo T.S. Eliot. O limerick tem, como o haikai tradicional, uma estrutura rígida, mas de cinco versos, rimando a-a-b-b-a, sendo o terceiro e quarto versos mais curtos do que os outros. Tem de constituir uma unidade temática, satírica, política ou, até, brejeira, mas, tal como acontece com outras modalidades poéticas, é deixada ao leitor toda a liberdade de interpretação. Do livro «Pensar Sem Senso – Limericks Portugueses», de Hélio Osvaldo Alves, edição Campo das Letras, Porto, 2002, (esgotado) li um com bastante actualidade: “Havia um Sistema Nacional de Saúde / Que, vai ou não vai, falha amiúde. / Os utentes protestavam, / E peticionavam, / Mas o sistema insistia em falhar amiúde.”/ (p.65).


 Uma imagem para memória futura

Igualmente chamei a atenção para as Décimas tão portuguesas, já cultivadas por Camões e que hoje permanecem vivas só no Alentejo, principalmente entre os poetas populares, que a partir de uma quadra, que é o mote, desenvolvem quatro glosas de 10 versos, tendo o 10º verso da primeira glosa que ser o 1º verso do mote e assim sucessivamente. Portanto o 10º verso da última glosa é o 4º verso da quadra. E há os repentistas, que conseguem desenvolver as glosas de improviso, sendo o mais célebre o Ti Limpas, de seu nome Manuel Inácio Veladas, de Ferreira de Capelins, Alandroal, que vi e ouvi dizer na Confraria do Pão (Alentejo) uma décima em louvor de Bento de Jesus Caraça, durante uma homenagem à  sua memória, que lá se realizou em 23 e 24 de Junho de 2001. Estamos longe, portanto, da simplicidade e concisão dos haikais, dos limericks e da poesia minimalista, mas muito perto do que é genuinamente nosso e tão saboroso como o genuíno pão artesanal alentejano! 

"A descoberta consiste 
em ver o que todos viram e
  em pensar no que ninguém pensou."
 ALBERT SZENT-GYORGYI  






Reprodução de duas páginas de «Pegadas do Tempo»



Texto de Augusto Mota
Fotos de Rui Jorge Rebelo

21/12/2013

Fotopoema

 
Aí está ele de novo!...






... o sempre apetecido poema de António Simões e a foto do meu jardim nos últimos dias de um qualquer Outono, quando o sol da manhã incendiou a folhagem da Liquidambar styraciflua, como que a anunciar a chegado próxima do Inverno.

foto: augusto mota

Lançamento de livro 1






No dia 11 deste mês de Dezembro teve lugar em Lisboa, numa sala do Palácio da Independência, o lançamento do romance de Teresa Fernandes «Exercícios de Amor e Apartar», editado pela DG Edições. A apresentação esteve a cargo de Fernando Dacosta, que também é o autor do prefácio. É um romance de exercícios de amores e desamores urbanos, típico da vida sôfrega e vertiginosa de uma grande metrópole, onde tudo parece acontecer por acaso. Mas é um acaso provocado ao ritmo do pulsar das sensações que percorrem as artérias de todas as personagens, femininas e masculinas, lhes define os sentimentos e faz fluir a acção de um modo natural. «Invulgar fluidez» intitula, com razão, Fernando Dacosta o seu texto introdutório, que, com a devida vénia, passamos a transcrever, para melhor dar a conhecer a técnica narrativa de Teresa Fernandes:

Teresa Fernandes é uma escritora que agora nos surge com um romance singular, expressivamente intitulado Exercícios de Amor e Apartar. Nele, a autora encontra, e impõe, caminhos próprios, tendo na sensibilidade, na criatividade balizas inamovíveis. A realidade que lhe coube partilhar e a imaginação que lhe coube dilatar, foi-as escrevendo, ardendo nas margens da imprevisibilidade.

Com minúcia e exigência, Teresa Fernandes torna-se referência no território literário que abriu. Dotada de capacidades de observação invulgares, que a inteligência, a vivência decantaram, afirma um espaço próprio para si e para a sua (futura) obra.

Discreta, secreta, desdobrou, dobou íntimas reflexões de íntimas vidas que fingiu desocultar para melhor ocultar.

O que faz grandes livros, dizia-me Jorge de Sena (gigante no fazê-los), é a respiração, a atmosfera que lhe inculca o autor.

Teresa Fernandes surpreende-nos precisamente pela respiração, pela atmosfera que impregna esta sua obra – cumpliciada a quente. Tudo nela é rítmico, harmonioso, envolvente; os frios que a perpassam diluem-se sem agressões nem rupturas; as inquietações avistadas dissolvem-se, as lonjuras esbatem-se. Muita vida há nestas páginas de invulgar fluidez e fundura transmitidas com a serenidade dos que dominam as crispações sofridas.”



 Fernando Dacosta, Teresa Fernandes e Daniel Gouveia, o editor



foto: Ana Ramon, a quem agradeço o exemplar oferecido, autografado pela autora.

19/12/2013

Tempo de circo 1





Minha mãe amassa o circo
Quando ele está na aldeia -
                                                         São só fatias de riso
                                                         Esse pão da nossa ceia.

Minha mãe amassa o circo
    Com seus bichos e palhaços -
                                                         Ainda hoje me divirto
                                                         Na arena dos seus braços.


Quadras de  António Simões, in «Minha mãe amassa o pão», edição da Câmara Municipal de Beja, 2001, p.41

Ilustração digital de Augusto Mota, 2001, da série «Quadras&Quadros» baseada em 30 quadras deste livro