29/03/2018

Rosário breve



David & da Vida





Sucedeu numa casa-de-pasto de cujo balcão sou freguês recorrente há bons (e menos bons) anos. Foi pela finimanhã de quarta-feira, 21 de Março de 2018, já o meio-dia não vinha longe. Aos que estávamos, juntou-se-nos um homem perdido. Em segundos velocíssimos, aquela aparição disse ao patrão da casa que não vinha pedir esmola em dinheiro mas sim a caridade de alguma coisa para comer – porque não comia há muitos dias, porque tinha sido escravizado em Espanha, porque não sabia o que fazer à ou da vida. E era de facto, na vida, David. David era deveras: fiquei a sabê-lo pelo diário local cá da paróquia na manhã seguinte, quinta-feira, 22 do corrente.
Por tal periódico, aprendi que este pedinte se chama David S., tem 50 anos, há sido trolha de profissão e foi dado como desaparecido pela família. A notícia (com retrato do extraviado senhor) acrescentava que é gente portuguesa de Joane (Vila Nova de Famalicão). A irmã, Rosa S., fornecera às autoridades e ao jornal um número de telemóvel, rogando que lhe ligassem em caso de avistamento do extraviado mano dela. Assim fiz. Liguei à senhora.
Disse-lhe o que Vos conto. Falei-lhe da cena na casa-de-pasto. Falei-lhe de Espanha. Ela disse-me: “É ele. Isso de Espanha é uma história que ele costuma alegar.” (Sim, ela disse “alegar”.) Perguntou-me depois se ele andava de barba (na fotografia do jornal, não a tinha.) Disse-lhe que sim, barba de muitos dias. Barba & casaco de couro acastanhado. E ela: “É ele. Tem de ser ele. Muito obrigada pela sua atenção.” Tinha a voz anestesiada pelo desespero.
Nessa mesma quinta-feira/22, fiz duas coisas: uma, fui à esquadra central da PSP cá do burgo, onde dei conta do facto aos uniformes competentes; antes, porém, comentei o caso com a freguesia & com a gerência da dita casa-de-pasto. Os demais clientes interessaram-se pelo episódio – mas a gerência nem tanto. A gerência nem tanto por pura má-consciência: é que, na véspera, tinha recusado comer ao homem – talvez por receio de tanga ou de ociosa pedinchice parasitária como tanta por aí anda, talvez. Percebendo o embaraço do remorso, não insisti. Paguei o meu copo e fui à polícia.
Tenho agora o recorte de jornal colado no caderno em que escrevivo estas crónicas para Vós. Não sei mais. Desconheço se o senhor de Joane, Vila Nova de Famalicão, foi já ou não ainda encontrado. Redijo estas linhas na sexta-feira, 23 de Março de 2018. Entrementes, a chuva voltou, maciça & massiva. Quarta & quinta foram dias muito formosos, de um azul oceânico feito céu a que o Sol presidiu com autoritário garbo & majestoso esplendor. Mas a chuva voltou, o que me faz temer pelo desaparecido.
Rosa diz que o irmão sofre de “depressão” por causa do descalabro do casamento e que anda “confuso e perdido” desde 11 de Fevereiro último, dia em que se desmaterializou de Joane. São muitos dias, bem mais de um mês ao lento relento.

E agora, Leitor meu, confesso: também eu padeço de má-consciência. Sim, má-consciência. Não reagi a tempo. Na manhã acabando-se de quarta/21, eu tinha duas sandes & uma banana no saco. Não me ocorreu sair à rua, perseguir David, dar-lhe de comer. Eram boas sandes: de mortadela & queijo-creme, uma; outra, de capitoso presunto translúcido & corado a fumo de lenha viva. Não me ocorreu, o que agora amargosamente lamento. Quando me lembrei, era tarde de mais: o perdido reiterara de si a perdição, invisibilizando-se na indiferente luz da manhã terminal.
A comparação seguinte pode parecer-Vos reles ou mentirosa ou lingrinhas ou auto-coitadinha: mas é mais friamente verídica do que meramente verosímil – também eu já me achei perdido. De família, de anos estragados, de projectos calçados a barro, de manuscritos sem tipografia, de animais amados como pessoas singulares & de pessoas não plurais como bichos de estimação. E de sozinhíssimas, insensatas copofonias. Verdade, tudo isto. Não hei-de hoje mentir.
Em lenitivo & paliativo contraponto, porém, a minha salvação tem sido esta mesma janela ribatejana de última-página, que há quase onze anos, em uma hora feliz, se me abriu para Vós. Porquê? Ora, porque não se pode perder tudo: a começar pelo que fazer, David, da Vida.



      
Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 29 de Março, 2018

Fotos de José Eduardo

Edição de Augusto Mota


26/03/2018

Café com livros





No dia 27 de Janeiro, p.p., teve lugar no Auditório António Campos do m|i|mo - museu da imagem em movimento, mais uma tertúlia "Café com livros", a tradicional iniciativa das Trêstúlias. Para comemorar a 25ª tertúlia foi organizado um programa especial com uma exposição de fotopoemas, a qual era para encerrar no passado dia 17 do corrente mês, mas o prazo foi prolongado até 31 de Março.
A responsável pelo Grupo “Trêstúlias”, Rosa Neves, abriu mais uma conversa tertuliana dando as boas-vindas a todos os presentes que fizeram parte da 25ª edição de “Café com livros”.

  

Deixou também um agradecimento à CML, na pessoa do Senhor Vereador da Cultura Dr. Gonçalo Lopes, pelo apoio logístico dado a este projeto. O agradecimento foi extensivo à equipa do m|i|mo, liderada pela Dra. Sofia Carreira, pelo profissionalismo com que sempre recebe "Café com livros". Tudo o resto decorre da vontade e da participação fantásticas de um já grande grupo de amigos que há cinco anos se junta à volta de conversas comuns.     



Rosa Neves referiu que a transversalidade do saber e conhecimento do Amigo e Colega de profissão Augusto Mota é enorme e por isso difícil de sintetizar. Apresentou-o como uma pessoa ilustre, mas discreta, como costumam ser os construtores de ideais. E continuou referindo que ele é um pensador, artista, mestre, amigo. Uma cabeça enredada na criação constante, que o faz respirar. Com um percurso riquíssimo de produção artística, Augusto Mota faz parte de uma geração que marcou a cultura da sua época com o traço da irreverência e do futuro. Tem uma vasta, valiosa e multifacetada obra que vai desde a pintura, o mosaico, a gravura, a publicidade, a ilustração, o cinema, a fotografia e a escrita.


É figura indissociável da vida artística, interventiva e humanista da cidade e do país, tendo mesmo os seus trabalhos sido referidos na Alemanha, aquando de uma exposição que fez no Ibero-Club de Bonn, em 1962.
Augusto Mota, não deixa de nos surpreender e por isso veio partilhar com os tertulianos a sua faceta de observador atento que esconde o olhar atrás da máquina fotográfica e capta as pequenas coisas do dia-a-dia e, no caso concreto, materializou-as na exposição “Olhares”, cuja curadora responsável foi a própria Rosa Neves.

 

Augusto Mota, tomando a palavra, fez uma breve introdução ao valor da imagem como meio de comunicação na história da cultura ocidental, referindo dois exemplos:
1. a célebre Coluna de Trajano, em Roma (séc.I d.C.), que exalta os feitos do general Trajano, na Dácia, no seu friso espiralado de carácter histórico-narrativo, ao longo dos 30 metros de altura da coluna, friso que contem cerca de 2500 figuras repartidas por 115 cenas, com uma riqueza de pormenores que possibilitam uma valiosa compreensão da organização militar romana;

Pormenor da Coluna de Trajano

2. um outro exemplo marcante é a Tapeçaria de Bayeux (séc. XI), que ao longo dos seus 70 metros de comprimento e 50 cm de altura narra em 58 cenas, mas já com texto incorporado nas imagens, cenas da conquista de Inglaterra por Guilherme da Normandia.

Pormenor da Tapeçaria de Bayeux


Nesta breve incursão pela história da  figuração narrativa não podia ter faltado uma chamada de atenção para o poeta inglês William Blake (1757 - 1827), sobretudo para a sua obra de gravador, impressor e pintor que, retomando a tradição conventual das iluminuras nos livros sagrados, inicia uma técnica muito sua para ilustrar os seus próprios livros: grava em chapas de cobre os seus textos e respectivas ilustrações, imprime-as para, depois,  colorir todas as páginas à mão. 
                                   




Quatro poemas de "Songs of Innocence and of Experience"

Esta técnica artesanal só lhe permitiu edições muito limitadas das suas próprias obras, variando as cores de uma mesma obra de edição para edição. Mas o que sobressai neste autor é o dramatismo da interpenetração texto/imagem que antecipa a poesia ilustrada que virá a conhecer entre nós, nos anos 50 e 60 do século passado, uma vaga de fundo, tanto em exposições, como na edição de postais, sobretudo por razões mais político-sociais do que estéticas.


"Europe, a prophecy",  K.41 (9)
Postal editado pelo British Museum

Hoje com as facilidades da fotografia digital e dos programas informáticos que permitem uma fácil junção do texto à imagem  acabámos por chegar a um novo conceito: o fotopoema, que nos  permite divulgar a poesia com muito mais facilidade e de um modo mais apelativo, alcançando um público muitíssimo mais vasto do que a poesia ilustrada, tanto através da net, como em exposições.




Exposição de Poesia Ilustrada na Marinha Grande


Postais:

Poema de José Dias
Desenho de Fernando Felgueiras

Poema de Ovídio Martins
Desenho de Pedro Frazão
Edição do III Encontro dos Suplementos e Páginas Literárias da Imprensa Regional

Rosa Neves passou a palavra ao Senhor Vereador da Cultura, Dr. Gonçalo Lopes, que evidenciou o sucesso do projecto “Café com livros” e lhe reafirmou o seu apoio e confiança. Salientou todo o mérito do convidado Prof. Augusto Mota, de quem, aliás, disse orgulhar-se de ter sido seu aluno.
De seguida foi inaugurada a exposição “Olhares” , composta por 30 FOTOPOEMAS, com fotos da autoria de Augusto Mota e poemas de autores por si seleccionados:  António Simões, Eugénio de Andrade, Carlos Alberto Silva, Cristina Nobre, Cruzeiro Seixas, Fernanda Sal, Gabriela Rocha Martins, Luís Pignatelli, Maria Encarnação Baptista, Maria Gomes, Maria Toscano, Rosa Mar e Rui Mendes.
Durante a visita o autor foi informando quais os poemas que seleccionara de obras publicadas e quais os que os poetas criaram motivados pelas fotografias que previamente lhes enviara. Tal método de criação, designado por écfrase (do grego 'ekphrasis') é uma prática de 'criação/descrição literária' que remonta aos textos clássicos, mas que tem evoluído ao longo dos tempos. O Romantismo deu novo fôlego à poesia ecfrástica, sendo a "Ode sobre uma urna grega", do poeta inglês John Keats (1795-1821), sempre referida como um bom exemplo de tal método de criação literária.
                                       
Goya - "Os fuzilamentos de 3 de Maio de 1808"


Entre nós, o poema "Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya", de Jorge de Sena (1919-1978), é um bom e moderno exemplo de 'écfrase', porque o autor não cai numa prática discursiva linear do quadro, antes nos consegue transmitir todo o horror que ressalta da pintura de Goya, mas projectando-o dramaticamente para um futuro... Ouvir o poema:  https://www.youtube.com/watch?v=ggoc8v0dgD0



 












A visita à exposição foi muito apreciada, decorrendo em amena tertúlia volante, com todos os presentes a solicitarem explicações e considerações ao convidado, que a todos procurou dar atenção.    
                       

Por entre imagens e poemas, por entre os corredores do espaço luminoso e elegante do m|i|mo voltou-se ao auditório, onde foi feita a 1ª Homenagem pública à poeta leiriense Maria da Encarnação Baptista, autora de «Hora Entendida», livro editado pela Editora Inquérito, Lisboa, 1951, com um prefácio/ensaio de Adolfo Casais Monteiro. Mercília Francisco, Cristina Nobre e Cristina Barbosa leram expressivamente poemas desta obra. 




A tertúlia terminou com uma surpresa feita ao nosso convidado: Bolo de aniversário muito especial, bolachinhas saborosas, soquetes e … o habitual café com Livros.
                                    
Papas de carolo à moda da Beira





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Augusto Mota realizou, no dia 1 de Março, uma visita guiada a pedido da associação cultural leiriense SEMPRAUDAZ, com sede no Centro Cívico, à rua Direita, visita que também foi precedida de uma breve introdução, no auditório António Campos, sobre a importância da união texto/imagem. A tal visita guiada se referem as fotografias seguintes: 









Como dissemos inicialmente a exposição prolongar-se-á até ao último dia deste mês. Só então terminará, verdadeiramente, a tertúlia "Café com livros" do dia 27 de Janeiro, já que "Olhares" é uma sua extensão que tem permitido ao espectador um "diálogo silencioso" com as imagens e a sua interligação com os poemas.


Voltamos a encontrar-nos em data e local a anunciar.

Até lá não recusem

                               um café quente
                                                   um livro fresco 
                                                                                                                    uma ideia nova


Texto de Rosa Neves

Fotos de Joaquim Cordeiro, Lídia Raquel, Nuno Verdasca, Pedro Carvalho e Rosa Neves