12/11/2011

António Gedeão ( 1906 . 1997 )





Poema para Galileu

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

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bioblibliografia


António Gedeão, (Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), nasceu em Lisboa em 1906.
Criança precoce, aos 5 anos escreveu os seus primeiros poemas e aos 10 decidiu completar "Os Lusíadas" de Camões.
A par desta inclinação para as letras, ao entrar para o liceu Gil Vicente, tomou contacto com as ciências e foi aí que despertou nele um novo interesse.
Em 1931 licenciou-se em Ciências Físico Químicas pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e em 1932 conclui o curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras do Porto, prenunciando assim qual seria a sua actividade principal daí para a frente e durante 40 anos: professor e pedagogo.
Exigente e comunicador por excelência, para Rómulo de Carvalho ensinar era uma paixão e uma dedicação.
E assim, além da colaboração como co director da "Gazeta de Física" a partir de 1946, concentrou durante muitos anos, os seus esforços no ensino, dedicando-se, inclusivé, à elaboração de compêndios escolares, inovadores pelo grafismo e forma de abordar matérias tão complexas como a física e a química.
Dedicação estendida, a partir de 1952, à difusão científica a um nível mais amplo através da colecção "Ciência Para Gente Nova" e muitos outros títulos, entre os quais "Física para o Povo", cujas edições acompanham os leigos interessados pela ciência até meados da década de 1970.
Apesar da intensa actividade científica, Rómulo de Carvalho nunca esqueceu a arte das palavras e continuou sempre a escrever poesia.
Porém, não a considerando de qualidade e pensando que nunca seria útil a ninguém, nunca tentou publicá la, preferindo destruí-la.
Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publicou, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas "Movimento Perpétuo" com o pseudónimo António Gedeão.
Continuou depois a publicar poesia, aventurando-se, anos mais tarde, no teatro, no ensaio e na ficção.
Nos seus poemas há uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança.
Aí reside a sua originalidade, difícil de catalogar, originada por uma vida em que sempre coexistiram esses dois interesses totalmente distintos..
A poesia de Gedeão é bastante comunicativa e marca toda uma geração que, reprimida por um regime ditatorial e atormentada por uma guerra, cujo fim não se adivinhava, se sentia profundamente tocada pelos valores expressos pelo poeta e assim se atrevia a acreditar que, através do sonho, era possível encontrar o caminho para a liberdade.
É deste modo que "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, se torna num hino à liberdade e ao sonho. Mais tarde, em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e produz o álbum "Fala do Homem Nascido".
Nos anos seguintes dedicou-se por inteiro à investigação, publicando numerosos livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência.
Gedeão também continuou a sonhar, mas o fim aproximava-se e o desejo de morrer determinou, em 1984, a publicação de Poemas Póstumos.
Em 1990, já com 83 anos, Rómulo de Carvalho assumiu a direcção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, sete anos depois de se ter tornado sócio correspondente da Academia de Ciências, função que desempenharia até ao fim dos seus dias.
Quando completou 90 anos de idade, a sua vida foi alvo de uma homenagem a nível nacional.
O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, foi reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música.
Faleceu em 1997.

Obra Literária:
Poesia:"Movimento Perpétuo", 1956;
"Teatro do Mundo", 1958;
"Declaração de Amor", 1959;
"Máquina de Fogo", 1961;
"Poesias Completas", 1964;
"Linhas de Força", 1967;
"Soneto", 1980;
"Poema para Galileu", 1982;
"Poemas Póstumos",1984;
"Poemas dos textos", 1985;
"Novos Poemas Póstumos", 1990

Ficção:"A poltrona e outras novelas", 1973

Teatro:
"RTX 78/24", 1978;
"História Breve da Lua", 1981

Ensaio:"O Sentimento Científico em Bocage", 1965;
"Ay Flores, Ay flores do verde pino", 1975

Obra Científica:
"Ciência Hermética", 1947;
"Embalsamento Egípcio", 1948;
"Compêndio de Química para o 3º Ciclo", 1953;
"Sr. Tompkins explora o átomo", 1956;
"Guias de trabalhos práticos de Química" [3º Ciclo], 1957;
"Que é a física?", 1959;
"Problemas de Física para o 3º Ciclo do Ensino
Liceal", I volume, 1959;
"A Física para o Povo", 1968;
"Ciências da Natureza",1974;
"Aditamento ao guia de trabalhos práticos de Química", 1975;
"A Descoberta do Mundo da Física", 1979;
"A Experiência Científica", 1979;
"A Natureza Corpuscular da Matéria", 1979;
"Moléculas, Átomos e Iões", 1979;
"A Energia", 1980;
"A Estrutura Cristalina", 1980;
"As Forças", 1980;
"As Reacções Químicas", 1980;
"O Peso e a Massa", 1980;
"A Composição do Ar", 1982;
"A Electricidade Estática", 1982;
"A Pressão Atmosférica", 1982;
"A Corrente Eléctrica", 1983;
"A Electrónica", 1983;
"Magnetismo e Electromagnetismo", 1983;
"A Energia Radiante", 1985;
"A Radioactividade", 1985;
"Ondas e Corpúsculos",1985

Investigação histórica:
"História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa [1765 1772]", 1959;
"História do gabinete de Física da Universidade de Coimbra [1772 1790] desde a sua fundação em 1772 até ao Jubileu do Prof. Giovani António Dalla Bella", 1978;
"Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII", 1979;
"A Actividade Pedagógica da Academia das Ciências da Lisboa nos Séculos XVIII e XIX", 1981;
"A Física Experimental em Portugal no Século XVIII", 1982;
"A Astronomia em Portugal no Século XVIII", 1985;
"História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar Caetano", 1986;
"O Texto Poético Como Documento Social", 1994. [ in: luso.poemas ]

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