não há dois, apenas um -
o outro é este virado,
a alma veste o casaco
do avesso que é nenhum. Morrer é ir para o avesso
do casaco desta vida.
Nem bom, nem mau: um começo,
voltamos ao mesmo berço,
renascemos de seguida. Por isso eu nunca penso
na vida que vem depois -
vivo a vida como um lenço,
nos dois lados está apenso
o mesmo número: dois. Cada um o outro é
num binário singular,
são duas formas de estar -
ausentes razão e fé. O outro que vive ao lado
e me olha, olha-se a si -
ao ver-te, fico mudado,
foi ao ver-te que me vi. Dois é o número chave
que tu és uno e diviso -
a única forma que abre
o portão do paraíso. Dois, o número escrito
no rosto do teu irmão -
finito número infinito
onde os outros todos 'stão.
Minha alma, assim, comporta
outras almas e lugares -
e a vida é viva e morta,
tudo integra, nada sobra,
é bom que nisso repares. Comigo eu te transporto
e o vasto mundo também,
estando vivo, já estou morto,
estou perto e longe do porto,
minha alma não vai nem vem. No sítio onde está, viaja
sem sair do seu lugar -
menina já velha e sábia,
sem lamentos e sem raiva,
ela vê o tempo passar. Porque ela sabe que o tempo
não é mais que uma miragem -
fluida e vária como o vento,
dentro de si tem assento
sua estática viagem. Ó minha alma viageira,
nómada de sítio nenhum,
acaba a tua canseira -
o Pai já de ti se abeira,
tu já não contas depois:
cala a canção do dois
e canta a canção do UM. António Simões, inédito, in "Poemas Circulares: Moradias e Navegações".
5 comentários:
Há um grito pungente neste poema.
Uma belíssima canção a alguém que muito se ama.
Obrigada, António Simões, pela beleza consentida!
Vou cantá-la consigo, meu amigo, se o consentir...
Um abraço, meu amigo!
thanks!
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