Ouço já os tambores que se afirmam traiçoeiros de morte súbita. Ouço já as grilhetas dos cadáveres arrastando as calçadas em quedas de humidade sanguínea. Horror! O medo paira pelas vielas e as paredes estão incrustadas de olhos esgazeados perante o pavor da Inquisição. Há esbirros nas sarjetas e os ratos já fogem de pavor. Há lama nos palácios e os vermes já proliferam na estagnação da consciência humana. Apesar de tudo isto o homem aceitou a ruina da sua cidade, deixou milhares de cadáveres sepultarem-se nos escombros incendiados e permitiu que os chacais uivassem no deserto, quando a carne já cheirava a podre e os próprios ratos a abandonaram. E nem sequer se sentiu digno para impedir tudo isto... Sombras negras continuaram a desfilar pelas ruas, atroando sons de ferros cavos e abrindo fendas nas portas vãs. Tudo era deles! Mulheres pereceram em sexo virgem e mães abortaram em maternidades apressadas. Fetos corriam já para a morte em atitude de suprema glorificação humana, fetos nascidos de primeiros amores em campos cercados de sebes viçosas e apetecíveis, como afirmação endémica da pureza inicial, a que, agora, se tenta regressar, mas através de uma fé materialista, servida por espíritos malfazejos, desculpados por uma sociedade que não se apercebe da maquinação degenerada que se aproxima cada vez mais. Deixai-me viver! Afastai-vos tambores malditos! Não excitai a minha curiosidade de lutador irracional e concedei o vosso perdão ao meu desenvolvimento interior. Permiti que desça ainda mais às minhas cavernas interiores e que eu lá possa encontrar a fuga de mim mesmo e a vossa justificação. Avançai agora que já não vos temo! Dilacerai agora a vista dos rostos incrustados nas esquinas e totemizai Cristo na praça pública! Mas se o fizerdes assassinareis a humanidade e a vossa alma conhecerá o revolver eterno do mar em revolta. E nem a cólera dos pescadores que, em desespero, arrancaram Cristo da praça pública e o levaram para os barcos ancorados na baía vos salvará, porque uma multidão pressurosa os perseguiu e lhes afundou as esperanças de reabilitação quando aplaudiu o naufrágio de toda a frota à saída da barra e, ali mesmo, assistiu, impune, ao espectáculo de mil braços clamando socorro e afogando-se no meio do piar das gaivotas assustadas. Depois veio a calmaria e o nevoeiro invadiu a cidade. Ao longe só os tambores se confundiam com a ronca do porto e, de vez em quando, um grito humano cortava o ar agora pardacento com as fogueiras acesas na praça pública, onde os cadáveres já rebentavam de cólera e tiniam as grilhetas como fantasmas assustados, infestando o ar de sons pestilentos e pegajosos. "A peste! A peste!" Isso, agora já gritam por causa da peste, quando massacram virgens na praça pública e vêem bandos de abutres escurecer o sol poente como se fosse um exército em debandada! Rendei-vos, traidores! E vede como é belo um poente sem exércitos em debandada. Agora já não ouço os tambores da Inquisição e parece-me que os exércitos derrotados já ultrapassaram o horizonte... Augusto Mota, inédito, in "Metáfora", 1962.
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