19/06/2006

os tambores da inquisição

Ouço já os tambores que se afirmam traiçoeiros de morte súbita. Ouço já as grilhetas dos cadáveres arrastando as calçadas em quedas de humidade sanguínea. Horror! O medo paira pelas vielas e as paredes estão incrustadas de olhos esgazeados perante o pavor da Inquisição. Há esbirros nas sarjetas e os ratos já fogem de pavor. Há lama nos palácios e os vermes já proliferam na estagnação da consciência humana. Apesar de tudo isto o homem aceitou a ruina da sua cidade, deixou milhares de cadáveres sepultarem-se nos escombros incendiados e permitiu que os chacais uivassem no deserto, quando a carne já cheirava a podre e os próprios ratos a abandonaram. E nem sequer se sentiu digno para impedir tudo isto...
Sombras negras continuaram a desfilar pelas ruas, atroando sons de ferros cavos e abrindo fendas nas portas vãs.
Tudo era deles! Mulheres pereceram em sexo virgem e mães abortaram em maternidades apressadas. Fetos corriam já para a morte em atitude de suprema glorificação humana, fetos nascidos de primeiros amores em campos cercados de sebes viçosas e apetecíveis, como afirmação endémica da pureza inicial, a que, agora, se tenta regressar, mas através de uma fé materialista, servida por espíritos malfazejos, desculpados por uma sociedade que não se apercebe da maquinação degenerada que se aproxima cada vez mais.
Deixai-me viver! Afastai-vos tambores malditos! Não excitai a minha curiosidade de lutador irracional e concedei o vosso perdão ao meu desenvolvimento interior. Permiti que desça ainda mais às minhas cavernas interiores e que eu lá possa encontrar a fuga de mim mesmo e a vossa justificação.
Avançai agora que já não vos temo! Dilacerai agora a vista dos rostos incrustados nas esquinas e totemizai Cristo na praça pública! Mas se o fizerdes assassinareis a humanidade e a vossa alma conhecerá o revolver eterno do mar em revolta. E nem a cólera dos pescadores que, em desespero, arrancaram Cristo da praça pública e o levaram para os barcos ancorados na baía vos salvará, porque uma multidão pressurosa os perseguiu e lhes afundou as esperanças de reabilitação quando aplaudiu o naufrágio de toda a frota à saída da barra e, ali mesmo, assistiu, impune, ao espectáculo de mil braços clamando socorro e afogando-se no meio do piar das gaivotas assustadas. Depois veio a calmaria e o nevoeiro invadiu a cidade. Ao longe só os tambores se confundiam com a ronca do porto e, de vez em quando, um grito humano cortava o ar agora pardacento com as fogueiras acesas na praça pública, onde os cadáveres já rebentavam de cólera e tiniam as grilhetas como fantasmas assustados, infestando o ar de sons pestilentos e pegajosos.
"A peste! A peste!"
Isso, agora já gritam por causa da peste, quando massacram virgens na praça pública e vêem bandos de abutres escurecer o sol poente como se fosse um exército em debandada! Rendei-vos, traidores! E vede como é belo um poente sem exércitos em debandada.
Agora já não ouço os tambores da Inquisição e parece-me que os exércitos derrotados já ultrapassaram o horizonte...
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora", 1962.

Sem comentários: