18/01/2007

mítica cavalgada

Hoje a cidade anoiteceu envolta em névoa, como se o rio transportasse, desde as fontes que o alimentam, uma outra e nova dimensão para as coisas e para as pessoas que actuam para lá do ténue pano de boca, onde os actores continuam a cumprir o seu papel numa extenuante récita diária. As luzes multiplicam-se, difusas, em miríades de minúsculas gotas de água e os sons desprendem-se, abafados, do trânsito que se escoa para os arredores. As lojas fecham as portas e as ruas parecem ter um só sentido: todas se dirigem para casa.
A cidade, agora silenciosa, transforma-se, subitamente, nos arredores de si mesma, enquanto montes e fontes se povoam de sonhos e pela alcáçova do castelo esvoaça a sorrateira coruja-das-torres ( Tyto alba ) e o veloz rasante morcego-anão ( Pippistrellus pippistrelus ). Senhoriais, os mastins arremetem contra a noite, imaginando faunos a correr pelos bosques de ulmeiros ( Ulmus procera ) ao som de um prelúdio de Debussy. Eles, os mastins, são os guardas da noite e da névoa. Serão, também, os guardas da madrugada.
Que encantamento é este que recupera as cavalgadas pelas paisagens da História? Teremos de subir à Torre de Menagem e, de lá de cima, lançarmos o sonho sobre noite intensa, fazendo-o esvoaçar três vezes à volta da cidade adormecida. Assim se quebrará o mau agoiro. E, assim, viajaremos no tempo, para norte, até aos Campos de Ulmar e poisaremos, de mansinho, no Porto da Ruivaqueira para ir, rio abaixo, até à foz do Lis. Passaremos por muitos outros portos, sempre guiados por um vistoso e irrequieto guarda-rios ( Alcedo atthis ). Passaremos pelo Porto da Bóca, pelo de Monte Real, e da Caravela, e da Passagem, e da Galeota, até o sonho e o rio encontrarem as águas da maré-cheia. Aí lançaremos âncora à espera que a corrente da vazante nos arraste, sem esforço, pelo mar dentro, rumo à realidade.
Entretanto é manhã. O sol acarinha os últimos vestígios de névoa e a cidade afasta-se dos arredores. As ruas voltam a ter dois sentidos.
Augusto Mota, in "Geografia do Prazer", inédito, 2000.
__________________________
*fotopoema de Augusto Mota sobre um poema de Carlos Alberto Silva.

5 comentários:

Anónimo disse...

Oh maravilha das maravilhas, que tal mundo poemas e prosas me dais a ler!
Boa prosa, bela. Imagens magníficas.
Cordialmente

António Simões ,Augusto Mota e Gabriela Rocha Martins disse...

Olá, Amigo ,sensível à beleza da escrita e da imagem.

Um abraço!

Anónimo disse...

Li e reli este texto. Percorri com ele, num imaginário muito real, as ruas da nossa cidade, sobrevoei a nossa região, seguindo o percurso caprichoso do rio Lis. Conheço melhor a cidade das ruas com dois sentidos; conheço menos a das ruas com um só sentido, pois inquieta-me um pouco... A Torre de Menagem, à hora sombria, só a vislumbro da segurança do lar... Os campos que acompanham o rio até ao mar, esses, só à luz do dia. Mas agora, que lançou o sonho à volta da cidade adormecida na névoa, três vezes, para afugentar o "Adamastor", fiquei a vê-la melhor. Um abraço.

fernanda s.m.
http://matebarco.multiply.com/

António Simões ,Augusto Mota e Gabriela Rocha Martins disse...

espero ,agora, que o nosso "preguiçoso" Almirante não se esqueçade agradecer-lhe

beijinhos ,Fernandinha!

António Simões ,Augusto Mota e Gabriela Rocha Martins disse...

*de - desculpe a minha dislexia ( é do sono!!!!!! )