ASSUNTO COM JANELA
Era
um homem que tinha e mantinha um gato. O gato era velho, o homem também. Ambos
respiravam, comiam e dormiam numa casa do extremo da aldeia. Pela chaminé
descia a voz dos pássaros. O gato, enroscado na cama de jornais, abria um olho
e recordava caçadas jovens. O homem tinha umas chinelas de pano onde guardava
os pés magros. No fogão a lenha, cozia um pedaço de carne entre feijões e
couve. Dividia o caldo e a carne com o gato, fazia café, que o gato não
apreciava, ficava-se a ver as brasas com um cachimbo de ébano na boca. No mundo
de fora, o vento levava a chuva e as folhas a passear pelas alturas.
Um dia, o homem ficou muito doente. O gato percebeu logo. Enroscou-se-lhe aos pés e esperou. O homem não melhorava. O tempo, sim. Cá fora, o sol fazia filmes com os pinheiros, a brisa embebedava as andorinhas, o cheiro da resina tomava conta da madeira perpétua das horas.
O
gato levantou-se, saltou da cama e procurou uma saída. As portas e as janelas
estavam fechadas. Todas elas. O gato falou, então. Emitiu aquela frase
crescente que sobressalta o coração. Há um tigre em cada gato. O homem não
reagiu porque estava todo ocupado a morrer. O gato cheirou a presença
autoritária do fim do homem. Eram velhos, tinham tido tempo para compreender
que se morre de tanto estar vivo.Um dia, o homem ficou muito doente. O gato percebeu logo. Enroscou-se-lhe aos pés e esperou. O homem não melhorava. O tempo, sim. Cá fora, o sol fazia filmes com os pinheiros, a brisa embebedava as andorinhas, o cheiro da resina tomava conta da madeira perpétua das horas.
Pulou para a cómoda e atirou-se pelo vidro. Na rua, entre cacos, o gato olhou a esquerda e a direita. Tinha de decidir-se por um lado.
Na cama, o homem sentiu o ar que entrava pela janela partida. Louvou intimamente a sabedoria do seu gato. Deixou-se estar, não lamentando nada, esperando apenas que a sua noite interior arranjasse maneira de fechar aquela janela, levando-o para longe de uma primavera que já não era para ele, uma primavera que, exclusivamente, era um assunto de tigres.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in quinzenário «Trevim», 23 de Junho de 2016
Edição e fotos de augusto mota
1 comentário:
É uma honra vir a estas palacianas varandas, amig'Augusto.
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