PALAVREADO COM DISCRETO REMATE PESSOANO
1. A páginas
tantas da sua «História da Literatura
Portuguesa», Teófilo Braga cita um tal “Caro”. Trata-se talvez (não tenho a
certeza) de Elme-Marie Caro (1826-1887), filósofo francês que escrevinhava na
célebre «Revue des Deux Mondes». Nesse
trecho, depois de enumerar os degraus da tomada de auto-consciência da
humanidade (que se desanimaliza
instituindo a família, a lei da cidade, a domesticação das espécies animais e
das forças da Natureza), acontece uma ressalva notável: “(…) a civilização expulsando a barbaria, mas experimentando
retrocessos terríveis desta barbaria, como por uma espécie de lei de atavismo
que acorda, segundo nos dizem, de tempos a tempos no homem, os instintos ferozes
de avós desconhecidos.”
Anotei
a passagem, que agora dou à publicidade por partilha convosco. Para mim, são
palavras que vingam pela infeliz actualidade: como se os séculos XIX & XXI
se mesclassem os idênticos algarismos romanos por que são nomeados. Veja-se
isto da Alemanha, mesmo agora: outro camião, outro assassino, outras vítimas
mortais; isto da Turquia, com um assassinato em directo à hora da janta; isto
tudo da Síria há tantos anos/séculos. Há pouquito, o Vietname, El Salvador, o
Iraque, o Afeganistão, Timor-Leste – e mais uma imparável carrada de etc.
Não
acho nada que a religião tenha a ver com isto. Trata-se do costume: petróleo,
diamantes, narcóticos & matérias-primas essenciais ao forno devorador das
grandes produções e dos consumos multitudinários. Trata-se da voragem do Poder,
enfim. Deus, chame-se ele Alá ou Jeová ou Manitou ou Zeus ou Júpiter ou Inti ou
Rá ou o Diabo por eles todos, pouco é para aqui chamado. Não alimento quaisquer
ilusões quanto a isto. E não, não vou com
o Pai Natal ao circo.
2. Então vou
aonde? Vou, como os marinheiros fazem ao barco, pôr ao largo o coração. Como o
que matou Bruce Lee não foi a brucelose, é descontraído que atiro as passadas
aeróbicas rumo à minha doença favorita: ver o mundo local com olhos de lápis. É
sempre maravilhoso. Exemplo imediato: passagem do Serafim das Arrufadas a bordo
de um transatlântico novo – o titanic do
dia é uma brasileira egressa de Goiás
que ele conheceu durante um Sporting-Arouca ali naquele alterne logo a seguir
às bombas da Repsol, vocês sabem e estão mesmo a ver. Adoro ver o desplante de
satisfação reverberando nas trombas do Serafim: de Rôsemére do lado direito
& a tilintar do esquerdo o porta-chaves do Mercedes importado de Frankfurt
em sétima-mão (como a Rôsemére, aliás – digo: a sétima-mão, não a cidade das
salsichas-de-lata). A felicidade é coisa tão pouquinha de tão fácil, pois então
não é? O Serafim não é desses lingrinhas dados ao verso-livre ou às maluqueiras
da pintura cubista, nem ao dodecafonismo intoleravelmente atonal ou ao
polemismo azedo do tal Teófilo Braga. Não. O Serafim é feliz: instituiu família
(tem dois filhos da Graciete Cabeleireira e um outro de uma estagiariazita
zarolha do Centro de Emprego), domesticou quatro cães, três periquitos, dois
árbitros dos Distritais & uma porca para o S. Martinho que vem, anda
contente com a nova Loja do Cidadão ao cabo de cinco anos-sant’engrácios, tem
pára-raios no canhão da chaminé – todo ele é, enfim, um civilizado. Não é daqueles tristes que, tendo medo da própria
sombra, nem sombra de si mesmos chegam a ser. Népias disso. Como ganha a vida
com um esquema de facturas-falsas que
não dá trabalhinho nenhum & é sempr’àviar, é muito gajinho para singrar na
política, tipo presidente-da-junta ou menos.
Quem
quiser provas de que só digo a verdade, toda a verdade & nada menos que a
verdade, que vá com o Serafim ao circo: mas do flanco esquerdo dele, que à
direita vai a Rôsemére navegando.
E
é de coração-ao-largo que navegar continua a ser preciso.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 22 de Dezembro, 2016
Foto obtida na net
Edição de augusto mota
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