FÁBULA DE INVERNO COM UM BOCADITO DE VERDADE
Gosto
do Inverno. É quando mais franco se me volve aquele verso de Whitman: “Eu estou no meu lugar com os meus dias,
aqui.” Rondei o derradeiro dia de Janeiro na condição de amador do tempo
que fazia.
Era
o império da morrinha. Do céu fosco, do céu sem um brilho, abóbada laminada a
estanho, descendia espargindo-se a poalha atomizada. Pelas esplanadas, ninguém.
Era como se tivesse caído a Bomba. O esquisito foi depois.
Entrei
na tabacaria. Ninguém. Tudo ali à mão de pilhar. Luzes acesas sim senhor,
registadora electrónica mostrando a última venda, jornais do dia, revistas da
semana, fascículos coleccionáveis, aventais de raspadinhas esperando a moeda
fricativa dos tesos de fortuna, copo de lápis, copo de esferográficas, chocolates
finalmente baratos, brindes sorteáveis, canecas temáticas, jogos didácticos
para crianças do meu tempo, dêvêdês
de um tempo que vai deixando de ser meu, flores azuis e de plástico numa jarra
feia como a minha cara de quando durmo & como a de quando estou acordado,
tudo e menos alguma coisa.
Balbuciei:
“ – SôrAnacleto!”. Nada. “– SôraJudite!”. Túmulo. “ – M’nineIvone!”.
Espaço sideral. De imediato, sabendo-me portador de impunidade, do meu ombro direito
sopra-me o Diabo encavalitado: “Gama o
que quiseres, anjinho, isto hoje é tudo à fartazana.” Menos de metade de
segundo depois, do ombro oposto o senhor meu Pai assim e assim só: “Filho.”
Não
foi preciso mais nada. Rodei a esquina do balcão, tirei da estante do tabaco o
maço da minha marca, deixei as moedas contadas entre o visor e as teclas da
registadora. Saí. Saí um bocadito turvado pela sensação de ter ouvido fantasmas
tuteadores & tuteladores.Voltei
para casa. Esperei pela minha Senhora. A minha Senhora voltou.
Contei-lhe
o que se tinha passado. Ela ouviu tudo sem me interromper. Quando acabei, quis
saber o que achava ela. Ela achou.
Achou
que “Se o anterior executivo da Câmara do
Cartaxo tivesse feito o mesmo que tu fizeste, escusaria agora o pobre Pedro
Ribeiro de andar a tapar buracos sem poder deixar grande obra feita.”
Isto
foi a minha Senhora a achar, que eu, por mim, não acho nada. Sou achado. Onde? No meu lugar com os meus dias.
Aqui.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 2 de Fevereiro de 2017
Edição e fotos de augusto mota
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