30/05/2005

De noite, todos os gatos são pardos/Migração Nocturna


De escrita efémera, o texto de hoje, reporta-nos aos pavores nocturnos, próprios de todo o homem/mulher, já na fase adulta.
Mas falar de pavores nocturnos é, de certo modo, reconhecer todos os minutos em que perdemos o fio da realidade e nos achamos enrolados no lençol do medo da lucidez.

De dia, no pino da claridade, enfrentamos o disfarce, sacudimos o cobertor da memória e saímos para o largo do esquecimento.
É de noite, porém, que tudo se transforma ao limite da consciência. Sós, na terrível planície dos olhos abertos contra uma solidão indizível, vemos e sentimos a nossa mesquinha realidade.

E sofremos. Porque nenhuma mentira é permitida.
Um enorme fantasma senta-se na nossa cama - o outro.

O verdadeiro lado que trazemos colado à pele e que só no escuro se revela.
Não é a culpa. É a ausência dela.
É o sentimento de equilíbrio, o cume de todas as experiências gratuitas.

De noite, somos capazes de atingir um certo estado de pureza.
Não há jogos. Não há tréguas. Apenas nudez.

Perdemos origens, destinos, fronteiras.
Somos desertos.

Poder-se-ia chamar memória, ou regresso ao ventre materno, a encruzilhada nocturna.
Mas seria sempre um recuo, uma ponte para a doce inconsciência - a ausência de padrões.

É o ponto zero de um espírito em completo desassossego, perto da lucidez.
Nenhum afecto resiste ao peso de uma insónia.

Só uma espiral lenta e pesada. E aí perdemos a exacta medida do efémero.
É pouco o que nos resta para sonhar.

Inventamos o dia, o emprego, as tarefas do quotidiano, as pequenas trapaças, o último filme, algo que nos dê consistência, significado, tudo o que sirva para apagar a memória de quem somos quando não somos alguém.

De noite, todos os gatos são pardos.
Pardos são os dias quando os deixamos fugir na borda da areia.

Pardos somos nós quando desistimos de procurar o fantasma que herdámos no momento de fugir à claridade.
E, na expectativa dos dias, entragamo-nos ao silêncio da noite....

...emigrantes

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23h32

Nonsense.

a partir de agora procurem,
também,
o outro lado que trago colado à pele em
http://www.palavrardente.blogspot.com/

4 comentários:

Unknown disse...

Prendi-me nesta tua escrita, nessa consciência que nos traz a migração nocturna, na recusa de aceitarmos o outro, que somos nós "quando não somos alguém", inventando o dia.
Um beijo.

Anónimo disse...

Hello!
Bem haja e obrigada por este e outros textos belíssimos

Anónimo disse...

Linguagem desassombrada, própria de um espírito delicado e sensível

Anónimo disse...

(...) Se aceitarmos o conceito de que o "estilo é o Homem" (ou a Mulher ), vejo através da sua escrita o retrato austero e desenvolto de quem escreve...