16/07/2005


Legenda Íntima 45. Augusto Mota Posted by Picasa

( sortilégio )

Quantos barcos nos dizem adeus, ou quantos soluços amarramos na própria garganta? Quantos braços voam até nós, ou quantas vontades sacrificamos num olhar? Por vezes tudo é tão simples e sentimos como que água fresca nos pulsos e banhamos o rosto nas mãos, nas nossas próprias mãos. As outras, aquelas que são ilusão do olhar, ou sortilégio da cabeça, guardamo-las para outras ocasiões, quando o desespero ou nos fere, ou joga connosco às escondidas. Nesse jogo fortuito vamos animando os barcos da nossa regata, ou ancorando-os na esperança, que também é água.
Todos marítimos, somos piratas de um absurdo. As ondas vão e vêm como os dias e as horas dos dias.
Augusto Mota, in "O Artifício da Loucura", 1964 ( inédito )

Praça Al-Mu'tamid, em Silves,
fotografia de António B. Oliveira Posted by Picasa

14/07/2005


fotopoema 27. Augusto Mota Posted by Picasa

A taça das tuas mãos

Traz-me numa taça
a água fresca do dia,
quando o vento se liquefaz
sob o meu olhar atento,
e o meu corpo é menos carne do que vento
porque minha alma lá dentro não cabia,
excessiva, enorme -
Vá, toca-me ao de leve com tuas mãos
para que a tarde sobre mim se entorne -
António Simões

Fotopoema 26. Augusto Mota Posted by Picasa

mariah e myriam

10h00
uma qualquer manhã de julho

saio quando o calor ainda adormece os corpos
há que inventar espaços nessa aventura de ganhar alternativas

o sul sufoca

gente / praia / gente / sol
há que encontrar outros trilhos
novas paragens
o absoluto desafio

entras num café
pedes uma bica / / uma garrafa de água
folhados molhados
"uma dúzia para embrulhar"

atravessas a rua e entras
em nenhures

um enorme quadro de "carlos porfírio"
retem
alfarrobeiras
árvores da beira serra
resistentes como as suas gentes
na parede ao lado
duas frases em bronze
"diz o que sente na forma como lhe brota espontânea da ideia"
( antero de quental )
"é o nosso maior poeta do amor"
( josé régio )

um sorriso azul inicia um novo desafio

subo as escadas e
uma voz cadenciada insinua
enquanto o marco e a catarina se atrasam
na leitura acrílica de poemas

um miúdo mais azougado passa a correr
ri
dispara
"ups desculpe"
um outro persegue-o
mais atrás
uma terceira derrapagem quase
me atropela
ali

há vida

espaços abertos / rasgados / vividos / estoriados
amplos / claros / reinventados
contrastam
o criativo

guardam
o silêncio
"o espírito do lugar"
absoluto

regressas
em verdade ou como consequência
ao mundo do faz de conta
?

. aceito o desafio.

gabriela rocha martins, resposta em blogue-mail

há fotografias como punhais

há fotografias como punhais
e poemas também
todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os escrever em pedaços de argila
neles estão impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças dos séculos
e o meu pai e a minha mãe que já partiram
esvoaçando num passado remoto
e também a rapariga feia e bela
e desfigurada pela varíola
que nunca fora amada porque não era bela
e que numa noite na taberna de Vladivostoque
se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel
talvez pouca gente saiba deste verso
que nunca foi escrito deste modo
e que foi acontecido durante a guerra sino-japonesa
ninguém esteve lá mas eu estive
trouxe-o comigo
é exactamente por isso que os meus poemas
escritos em verso já foram todos escritos
são como chagas alastrando e crescendo
em cristais de fogo
e o recinto do seu destino
está entre a terra e as estrelas
sei apesar de tudo porque li Juan Gelman
que cada lágrima é um problema insolúvel
maria azenha, ( lembrando a fotografia escolhida no 7 de julho, em londres )

há fotografias como punhais Posted by Picasa

13/07/2005

a História ( a guardar ) faz-se a ler e ver...devagar!


Desenho de Álvaro Cunhal. 5.maio.54 Posted by Picasa
(...)
- Mariana! - gritou um. - Junta a ceia de hoje à ceia de amanhã para quando eu voltar. Assim ao menos já enche o prato.
Riram em cima do camião e no ajuntamento responderam da mesma forma.
O camião tinha de certeza qualquer avaria no motor, pois um militar estava às voltas com ele. Entretanto os camponeses continuavam a chalacear e a rir.
- Vão rindo, vão rindo, que talvez chorem! - berrou o cabo da Guarda, vendo-se, pelo tom empregado, não ser a primeira tentativa feita para pôr termo àquele desaforo.
(...)
Manuel Tiago, "Até Amanhã, Camaradas", pg. 234

Pintura a Óleo. Álvaro Cunhal Posted by Picasa

XVII

( poema a ser lido, hoje à noite, no programa "Grande Entrevista" de Judite de Sousa, um mês após a morte de Álvaro Cunhal )

Quando vieres
Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.
Quando vieres
Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.

Quando vieres
nenhum de nós dirá nada
mas a mãe largará o bordado
o pai largará o jornal
as crianças os brinquedos
e abriremos para ti os nossos corações.

Pois quando tu vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora
Qando vieres.

Maria Eugénia Cunhal, in "Silêncio de Vidro"

12/07/2005


Ala dos Namorados, 1961,
3,00x5,50 m, mosaico de vidro evinel. Augusto Mota.
Jardim da Escola Secundária Domingos Sequeira, Leiria Posted by Picasa

alisa as sílabas, meu amor

alisa as sílabas, meu amor,
quando me falas para dentro dos olhos
e por eles desces abrindo poços
até onde o teu desejo for.
torna-as macias, pétalas de flor,
aveludando a dureza dos ossos,
embrulhando segredos que são nossos,
em um doce, sonolento torpor.
alisa as sílabas que à noite dizes
e vão tornar-me mais fluido depois,
pra que eu me perca no sonho e no ar -
e voemos sem rumo, tão felizes:
um dentro do outro, seremos dois
que a ternura não deixa separar.
António Simões

VOANDO NO SONHO

O menino segura a fita
O papagaio
sobe, sobe...
A cabeça gira, gira...
os pés pregados no chão.
Dá-lhe guita.
Vira, vira...
É tão veloz como o raio.
Subiste pelo cordão
- eras tu quem mais voava -
Gago Coutinho
avião
como teu avô contava.
Papagaio
cavalo alado
- e tu sempre a cavalgar -
Gagarine
Sputnik
o teu paizinho a contar...
e o sonho mesmo a teu lado.
Glória Maria Marreiros, "Algarve Gente e Mar" ( esgotado )

Ceifeira, 1964.
linóleo, 16x10cm. Augusto Mota Posted by Picasa

POR ISTO

somos crianças brincando
na seara de ser felizes -
pela força da semente
pela firmeza do tronco
pelo silêncio das raízes
pela verdade do trigo,
eu te ofereço este poema -
pelo prazer de estar vivo.
António Simões, 1974

11/07/2005


Legenda Íntima 43. Augusto Mota Posted by Picasa

TODAS VOLTAM DE ALGUM LUGAR


em homenagem aos mortos nos massacres de Srebrenica e noutros locais da Bósnia e da ex-Jugoslávia
Todas voltam de algum lugar
Zelja de Regensburgo.
Sanja de Trieste.
Asja de Maiorca.
Daniela de Tuniz.
Nieves de Roma.
Mirka de Budapeste.
Sandra Lucic de Tucepi.
Nusa de Kajetan do mercado.
Zaga do hospital.
Lucy das aulas.
Todas voltam de algum lugar.
Apenas tu não voltas.

Izet Sarajlic, bósnio ( 1930-2002 ).
Traduzido por José Luís Peixoto,
a partir do castelhano e do italiano.
enviado por Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com

El crimen fue en Granada/A Federico Garcia Lorca


Posted by Picasa
Se le vio, caminando entre fusiles
por una calle larga,
salir al campo frio,
aun con estrellas, de la madrugada.
Mataron a Federico
cuando la luz asomaba.
El peloton de verdugos
no oso mirarle a la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ni Dios te salva!
Muerto cayo Federico
sangre en la frente y plomo en las entrañas
que fue en Granada el crimen
sabed - pobre Granada! - en su Granada!
Se les vio caminar...
Labrad, amigos,
de piedra y sueno, en el Alhambra,
un tumulo al poeta,
sobre una fuente donde llora el agua,
y eternamente diga:
el crimen fué en Granada! en su Granada!
Antonio Machado
www.franceweb.fr/poesie
Pourquoi gâtez-vous mon eau même,
Mêlez-vous de terre mon pain?
Pourquoi ma liberté suprême
Se voit transformer en pantin?
Parce que je reste fidèle
À mon pauvre et triste pays
Et que je n'ai pas ri, cruelle,
Du sort aimer de mes amis?
Ainsi soit-il! Bourreau, potence,
Il n'est point de poète sans eux.
À nous de faire pénitence,
D'aller en cortège de gueux...
Anna Akhmatova,
poétesse russe dissidente persecutée pendant la période stalinienne
avec sa famille

10/07/2005


Johann Friedrich Schiller Posted by Picasa
1759-1805
( Bicentenário da sua morte )

"Sempre melhor, sempre mais tranquilo"

Alemão nascido em Weimar. Poeta lírico. Depois de Goethe, é considerado o maior poeta da literatura alemã. Na hora da sua morte disse: " Sempre melhor, sempre mais tranquilo".
Maria Luisa Paiva Boléo, in "O Leme da História"

A Despedida de Heitor

Andrómaca
Vem Heitor despedir-se de mim para sempre,
Quando Aquiles, com as mãos temíveis,
Prepara o horrendo sacrifício a Pátroclo?
Quem, de futuro, ensinará o teu filho
A atirar as lanças e a honrar os deuses,
Quando te tragar o Orco escuro?
Heitor
Esposa querida, poupa as tuas lágrimas,
A minha ânsia febril vai para o campo de batalha,
Estes braços protegem Pérgamo
Lutando pelo altar sagrado dos deuses,
Cairei e, salvador da terra pátria,
Descerei ao rio estígio.
Andrómaca
Não mais escutarei o fragor das tuas armas,
Ociosa está a tua espada no átrio,
Arruina-se a estirpe heróica do grande Príamo.
Vais para onde não mais surgem os dias,
O Cocito chora, através dos desertos,
O teu amor no Lete termina.
Heitor
Toda a minha ânsia, todo o meu pensamento
Quero afundar na torrente tranquila do Lete,
Mas não o meu amor.
Escuta! o selvagem já está em fúria nas muralhas,
Afivela-me a espada, deixa-te de lágrimas,
Não morre no Lete o amor de Heitor.
Friedrich Schiller,
( Tradução de Maria do Sameiro Barroso )

Ettore e Andromaca. De Chirico Posted by Picasa

Claude Simon, prémio Nobel da Literatura, morre aos 91 anos


Claude Simon, último escritor francês a receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1985, faleceu na passada quarta-feira, em Paris, aos 91 anos - informou o Ministro francês da Cultura, Renaud Donnedieu de Vabres.
Claude Simon fazia parte do "Noveau Roman" francês, e, segundo palavras do próprio ministro, "representava a renovação da literatura francesa, no período do pós guerra". Toda a sua obra teve por base a rejeição de convenções, e, a originalidade fundamental do homem foi a fonte da sua criação.
Nasceu em Madagascar, em 1913, filho de um oficial de cavalaria morto na 1ª Guerra Mundial. Criado pela mãe, no sul de França, estudou em Paris, Oxford e Cambridge. Capturado pelos Alemães durante a 2ª Guerra Mundial, foge para integrar a Resistência Francesa e escrever, em 1945, o seu primeiro romance, "Le Tricheur", sobre o colapso da França, em 1940.
Os seus livros retratam a permanência de objectos e pessoas que sobrevivem através das revoltas da história contemporânea.
Desenvolveu um estilo muito pessoal, em que a narrativa, sem pontuação, misturava-se com passagens de fluxo de consciência.
( Agência Reuters, Paris )

09/07/2005


Augusto Mota, ilustração digital, 2000 Posted by Picasa

Laranjofilia

Na praça só de hoje
passeia o esqueleto.
Na praça cheia desses atributos que damos às coisas
e as tornam desumanas,
nesta praça enlouquecida e branca
de pó que já foi casas conforto e doença,
passeia o esqueleto a comer uma laranja.
Há quem diga que valeu a pena
ter ido buscar morte e laranjas ao pomar.
Há quem diga que não,
há quem berre e grite alto muito alto
há quem mate mil vezes o esqueleto
há quem peça para ele o inferno de mil deuses
mas a calma dele a comer laranja desnorteia.
António Simões, in "Ainda", 1958, coimbra

Augusto Mota, ilustração digital, 2000 Posted by Picasa

O morto

( um dia acordei afogado na irrealidade da minha imaginação e debati-me com o fantasma do concreto amórfico. recuei na intemporalidade do nada e caí no momento preciso da minha morte. rebentei o mármore frio da minha sepultura e desfiz os versos do poeta que sempre admirara. destrui mesmo a ilustração que gravara na pedra branca e enchi-me do rumorejar das árvores que cheiravam a vida e que vibravam ao dobre do sino metálico.
a cera pingava as minhas mãos e fazia-me sentir o drama do não ser nada. o ambiente carregado de tragédia confundiu os meus olhos já cerrados à luz mediana, mas esse ambiente pairava em mim com a formalidade do característico, revolvendo os sentimentos intempestivos que sempre me animaram, acordando a revolta intermitente das tempestades interiores que me lançaram no absurdo duma inexistência passiva. uns pontos esbatidos de amarelo assinalavam a homenagem mais sincera dos mortais e destes pontos escorria a cera diluída de morte que, obrigando-me a gritar a minha vida, impedia que o mundo me ouvisse, esta cortina de luz transitória separava-me da realidade presente, de toda a não-negação existencial que o meu espírito procurava negar.
fugi àquele ambiente de tragédia e de fatalidade comunicativamente impessoal, procurando na sensilidade dos pedintes a acusação da minha existência. chorei com eles o crime irrisório de uma transcendência palpável. admirei-os na sua pureza vagabunda, na conformação duma naturalidade emocional ilogicamente realizável. calei as vibrações ondulantes daquele mesmíssimo sino e atirei para longe o vácuo que rodeava a pedra fria da minha inconsciência. repus os versos do poeta e gravei de novo a ilustração nascida ao pulsar da artéria, embora não esperasse que a obra fosse igual a três mil anos. fechei-me para sempre no mar onde morrera afogado e não mais voltei à realidade...)
Augusto Mota, in "quadriculado", 1959, coimbra

08/07/2005


Legenda Íntima 42. Augusto Mota Posted by Picasa

Ao Carlos Alberto Silva

das palavras dum poeta
faço meu grito de revolta / teclo
o som e a fúria
na mesma outra cidade
lavam novos corpos em sangue

a morte alacre na manhã

riscou

. sílabas de guerra.

gabriela rocha martins, 7 julho 2005

Posted by Picasa
amanheceu o sangue
no coração da cidade cosmopolita
como ontem amanheceu
nos campos da Palestina
como amanhece sempre
em todos os sítios do mundo
onde a insanidade humana
faz explodir bombas
em vez de florir pão
se o cenário muda
a dor é a mesma
e a morte
igualmente estúpida
igualmente cega
Carlos Alberto Silva
7 Julho 2005
http://sitiodoshaikais.blogspot.com
http://animalpoetico.blogs.sapo.pt
http://manualdeculinaria.blogspot.com

07/07/2005


Nocturno, 1964,
linóleo 17x14,5 cm.Augusto Mota Posted by Picasa

Uma pequenina luz

Uma pequena luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a litle light
una picola... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente a sopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não alumia apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.
Jorge de Sena

XI

"Je dis tu à tout ceux qui j'aime même si je ne les connais pas"
J. Prevert
É a hora de chegares.
Ao fim da tarde,
quando o vento é mais brando
o ar mais puro
e o dia nos concede
aquele momento tão nosso
que a vida nos negou.
É a hora de chegares.
O teu rosto suave e magoado
o teu sorriso triste de renúncia
vêm até mim através da distância.
Mas vejo ainda vivo nos teus olhos
o sonho do menino que tu foste
e ainda mora em ti.
Todos os dias vens
ao fim da tarde.
Posso enfim agarrar a tua mão
correr contigo todos os caminhos
inundados do sol que lhe emprestamos.
Vemos o mar, quando apetece o mar
e a terra cheira
sempre ao que nós queremos.
Contigo vem o prazer
das coisas simples.
O gosto de afagar
os sonhos da infância.
Vem a dádiva espontânea do sorriso
Contigo reconstruo a Primavera.
Maria Eugénia Cunhal, in "Silêncio de Vidro"

"O Vento Assobiando nas Gruas"


A escritora Lídia Jorge, natural de Boliqueime, Algarve, recebeu na passada terça feira, na Embaixada Francesa em Lisboa, o Grau de Oficial das Artes e Letras, atribuído pelo Governo francês.
O último romance da escritora que nasceu em 1946 - "O Vento Assobiando nas Gruas" - foi considerado um dos mais importantes do ano em França, tendo chegado a ser nomeado para o Prémio Fémina 2004.
Já em Junho de 2003, a última obra de Lídia Jorge havia sido contemplada com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE).
Em síntese, "O Vento Assobiando nas Gruas" fala de intolerância, da mudança do mundo , da febre do futuro e da pressa em atingir metas.

06/07/2005

Traineiras


Ficha Técnica de
"Ainda, uma folha de poesia ilustrada" Posted by Picasa
Já vão chegando as traineiras...
Trazem sal nos mastros negros,
ventanias nos fòquins,
montes de escamas e sol.
O mar entrou às lufadas
pelos caminhos da Ria
e sorvendo maresia,
gaivotas atarefadas
procuram peixe perdido.
O guarda-fiscal cinzento
não larga os cestos de prata,
enquanto braços de força
badalam como remadas.
Magotes aos quadrados
caminham para a cidade;
outros cavam astros brancos
no preto sujo da Ria
e passando sob a ponte
batem palmas de metal
nas pedras brancas de sono.
Ai, que saudades do mar
nas quilhas destas traineiras!
Que luz e cor, que lidar
e que cheiro a maresia
pelos caminhos da Ria!
André Ala dos Reis
"A POESIA DE HOJE vive o momento crítico da escolha do caminho na encruzilhada a que chegou.
Não ousamos profetizar um regresso à ordem da tradição clássica ou hispânica, nem uma permanência na liberdade formal conquistada; não profetizamos a senda do esteticismo, nem a do humano-vivido.
Encontramo-nos na encruzilhada: registamos o que há, cremos sinceramente na diversidade do que há. Sabemos que muito nos separa e se insistimos na publicação de mais uma folha de poesia, é porque acreditamos em que, apesar de tudo, a POESIA existe AINDA."
- escreviam Fernando Subtil, Augusto Mota, Alberto Pimenta, Gaspar Albino, André Ala dos Reis e António Simões, autores do Número Único de "Ainda, uma folha de poesia ilustrada" ( visto pela Comissão de Censura ), em Coimbra, no dia 15 de Janeiro de 1958.

Ainda, uma folha de poesia ilustrada, Alberto Pimenta Posted by Picasa
Mais um sino, mais uma folha
entre esperar-te e receber-te.
Mais um sino, mais uma folha.
E apetece ficar com este sol
de fim de tarde,
que anda por andar, meio encoberto
e sem ninguém reparar nele.

Ninguém


"Ninguém", de Augusto Mota,
in "Ainda, uma folha de poesia ilustrada"
Posted by Picasa
Procurei-te
numa noite fria
entre publicidade de neon
gritando produtos conhecidos.
Procurei-te em ruas largas
cheias de montras caras
e de caras enjoadas
de quem não tinha nada que fazer.
Procurei-te em ruas estreitas
cheias de lojas humildes
onde pairava um cheiro a luz
de vendedor ambulante.
Procurei-te em becos
onde silhuetas de amor perturbado
me fizeram regressar
às ruas cheias de montras caras
onde já não havia caras enjoadas
de quem não tinha nada que fazer...

05/07/2005

Considerações muito inoportunas...

...a eduardo pitta
quando me ofereceu "Poemas Escolhidos" e "Os Dias em Veneza", qual leiga que sou, teci algumas considerações banais e
porque prometi, remeto-as ao oferente...
( sem exigir resposta )

Desde todos os tempos, o homem procurou compreender o mundo que o envolve, e, ao fazê-lo, compreender-se a si mesmo.

Para isso, pôs em acção a sua inteligência que procura entrar nas coisas, e lendo nelas, entendê-las.

Desde então, surgiram e surgem os que se dedicam a procurar entender o mundo e a sua subjectividade.

Tentam compreender a realidade, toda a realidade, através da inteligência.

Se o mundo é ou não entendível através da inteligência esse é outro problema.

Mas, se o não é através dela, como o será, então?

gabriela rocha martins

Veneza,
[K]fábrica mutante/sobre fotografia de Eduardo Pitta Posted by Picasa

Dia 16, quinta-feira

Chove. A cúpula da Salute esbate-se no aguaceiro. O Grande Canal encrespa-se. O avião tem partida marcada para as 12:15h. O motoscafo vem buscar-nos às dez. Fazemos o check out com pena de não poder prolongar a estadia.
Tanto por descobrir.
Giudecca e San Giorgio Maggiore esperam melhor oportunidade. Não houve tempo para visitar o "monolítico" de Rossi que hoje é o Teatro do Mundo. O mesmo se diga da Scuola Grande di San Rocco, onde Tintoretto passou mais de vinte anos a pintar os quadros da Paixão ( culminando na Crucificação que faz da Sala dell'Albergo um lugar de culto ). Em São Marcos, desgraçadamente, a Basílica tem filas de quatro horas. Quem sabe se numa manhã fria de Janeiro, com Monteverdi e Orfeo por perto. O Ca Pesaro, instalado num pallazo que passa por ser a obra-prima de Longhena ( e não é dizer pouco, se pensarmos na Salute e no Rezzonico ), traduz em parte a fórmula "dois em um", de um lado a herança do Oriente, do outro Klimt, Bonnard, Matisse, Rodin, Emil Nolde, Felice Casorati e mais pintura italiana dos primórdios de Novecentos, enfim, o tempo dos modernos. No Fondaco dei Turchi, antigo entreposto de origem otomana, com bazar, banhos e mesquita, está instalado o Museu de História Natural. Também por ver o ghetto judaico, mesmo no coração de Cannaregio.
Dir-se-ia que é tudo uma questão de prioridades. É evidente que sim. Do que eu gostava mesmo era de vir aqui no Inverno, descobrir ruas insuspeitadas, e becos sem saída, isto é, com saída para o mar. Poder voltar a ver, sem atropelo, e com melhor iluminação, os desenhos de Leonardo que estão no Gabinetto dei Disegni dell'Accademia.
Um dia será.
Vamos para o aeroporto ainda com chuva, a laguna mergulhada num manto de cinza, o motoscafo a uma velocidade desnecessária. No Zattere, atropelando a linha de água, a famosa Casa da Cegonha - Veneza não merecia o "abuso" do signore Ignazio Gardella -, com a sua excêntrica penthouse, perde-se irremediavelmente na distância.
No aeroporto, os procedimentos de segurança provocam filas intermináveis. O voo está atrasado, acabará por sair às 13:35h já com o dia limpo. Há quem procure a capela. Eu vou em demanda do derradeiro tiramisu.
Veneza é água?
Não.
Veneza é música e é luz.
Eduardo Pitta, "Os dias de Veneza" ( 2005 )

Eduardo Pitta nasceu em Moçambique em 1949. É poeta, ficcionista, ensaísta e crítico. Publicou oito livros de poesia, três de ensaio e um de ficção. Colunista da Revista LER e colaborador de inúmeras outras publicações. O essencial da obra poética encontra-se em "Poesia Escolhida" ( 2004 ). A trilogia de contos "Persona" ( 2000 ) deu legibilidade à narrativa ficcional gay que se publica em Portugal. Na área do ensaio e da crítica os títulos mais recentes são "Fractura" ( 2003 ), sobre representações da homotextualidade na literatura portuguesa contemporânea, e "Metal Fundente" ( 2004 ), uma colectânea publicada nas Quasi. Primeira obra de recorte diarístico, "Os Dias de Veneza" constitui o relato de um epicurista na cidade dos Doges.
Acolhia-se aos destroços
da velha casa, onde não encontrou
nenhuma das antigas pegadas,
entre si confundidas na sombra
da pedra, nos reflexos do lago, no
lajedo da vigília.
A nenhum deles encontraria -
perdidos entre Cartago e a Palestina
distantes do absinto, dos dias de fox
hunting, das leituras de algum árcade
pedante e apostólico. Estava só. Era no tempo
da canalha.
Para trás ficavam as capelas imperfeitas
e a tranquila majestade dos olmos.
Amara-os aos dois no intervalo
um do outro, na iminência sempre de um naufrágio
redentor.
E agora tinha as mãos vazias.
[Brideshead Revisited]
Eduardo Pitta, in "Poesia Escolhida", 2002
As crianças surgem, rápidas, na sombra da manhã.
Trazem ar
bustos e medos. Uma memória de vidro fosco. A boca
iluminada, disponibilidade nos rins. Vontade tamanha
para
o fogo.
Surgem deslumbradas: um devasso
volutear.
Absorvem-nos, híbridas, vorazes, capazes.
Roucas.
Imperecíveis jogadoras
E estão
Eduardo Pitta, in "Poesia Escolhida", 2002

04/07/2005

Retrato de Anna Akhmátova, pintado a óleo
por Kuzma Sergeevich Petrov-Votokin
54,5x43,5 cm
Catálogo/Tretyakov Gallery, Moscow Posted by Picasa
Anna Akhmátova, pseudónimo de Ana Andreievna Gorenki, nasceu nos arredores de Odessa, em 1889, e faleceu nos arredores de Moscovo, em 1966.