Um fino fio de fumo amarelo sobe-lhe pelos nós dos dedos até às unhas exemplarmente cortadas. Ele larga a beata. A sua mão trémula avança para a maçaneta. Os dedos encarquilham-se-lhe como uma garra. Roda o pulso. Empurra a porta. Entra na sala verde. A mesa está posta.
Na sala verde o condenado está agrilhoado de pés e mãos. Tem as mãos pousadas sobre o tampo. Olha em frente e respira tranquilo. Dois guardas ladeiam-no. Um deles coça ostensivamente os genitais.
O algoz dirige-se-lhe retirando de um dos bolsos um molho de chaves. Liberta-o das algemas e diz: Podes começar.
Ele aferrolha as pálpebras, cura o pescoço, une as palmas das mãos entrelaçando os dedos. Principia a meia voz um poema.A colher imersa no clado fumegante inicia a subida. O condenado sopra, uma e outra vez, com redobrada atenção antes de a entornar sobre a língua e os dentes. Mal engole a mistura, o prazer enche-lhe de rugas o pano do rosto.
A refeição é composta por - duas fatias simétricas de pão escuro; um pires de azeitonas pretas ( temperadas com alho e orégãos ); um requeijão de ovelha cortado em fatias grossas ( polvilhado com pimenta preta ); uma taça de vinho tinto; e por fim, o caldo verde onde, no cimo das couves, flutua uma rodela de chouriço de soja.
A colher sobe. A colher desce. Bate no prato. Produzindo um som.
Plim.
Enche-se do caldo. Plim. Som esse que irrompe pelo pesado silêncio, juntando-se ao das correntes que gargalham a cada movimento quase imperceptível dos seus pés. As paredes são verdes. A luz difusa. O tecto branco. O chão de mármore. E a colher sobe. E a colher desce e bate. Plim. Enche-se do caldo. Ele repete o gesto uma dúzia de vezes. Tranquila e parcimoniosamente. A um dado momento pára. Inspira. Sorri. Segura numa fatia de pão escuro e cobre-a com duas de requeijão. Os dois guardas que o ladeiam agitam-se e fixam atentamente os seus olhos sobre o pão. Um deles continua freneticamente a coçar os genitais. O condenado não repara. Dá uma, duas dentadas e pousa a fatia novamente na mesa. Com uma delicadeza extrema retira do pires uma azeitona. Depois outra. Olha para o par no centro da sua mão como uma criança olha os seus berlindes preferidos antes de os lançar à cova: cheio de esperança e ternura. Usa a ponta dos dedos. Brinca maquiavelicamente. Aperta suavemente o corpo de cada uma delas entre o indicador e o polegar. Sente-lhes a espessura enquanto as faz girar, obedecendo ao sentido dos ponteiros do relógio. Depois de mastigadas as duas, depõe os seus caroços escuros, como dois cadáveres cilíndricos, paralelos, em cima do guardanapo.
O algoz frenético assiste a tudo. A sua tez confunde-se com as paredes e com o medo. As suas narinas estão dilatadas como as de um touro a resfolegar, bem como as suas pupilas. Uma onda de calor que lhe nasce do ventre invade-lhe todo o corpo. Leva as mãos à cabeça rapada. Arranha, o mais que pode, o couro cabeludo, usando as suas unhas exemplarmente cortadas. Sente um ligeiro formigueiro chegar à ponta dos dedos dos pés. Coça freneticamente os braços e as pernas até deixar vincos na pele. A sua respiração entrecorta-se. Enquanto a colher desce da boca do condenado e bate novamente no prato. Plim. O condenado mastiga. Mastiga. Mastiga. A mistura ultrapassa-lhe as amígdalas, a traqueia, o esófago. O condenado abre os olhos. A colher desce pela útima vez e bate no prato, produzindo o último som. O algoz atenta. O condenado sorri.Sandro William Junqueira, inédito, in "Cadernos do Algoz".
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