Saborear o perfume dos frutos de uma líchia ( Litchi chinensis ) é como deixar as mãos navegar à sombra das pétalas de todas as rosas que já enfeitaram a esperança dos dias, quando as estações do ano se contavam pela germinação das sementes e pelos frutos que, ansiosamente, guardávamos nos olhos. Mas descascar minuciosamente a casca coriácea de uma líchia, sem ferir a sua polpa sumarenta, é como abandonar a boca ao prazer de todos os frutos exóticos que se escondem, ávidos, atrás das finas roupagens da memória.A noite é pródiga em tal caminhar pelos saborosos segredos da botânica, mesmo quando a azáfama dos dias nos afasta do mercado de todas as secretas e sensatas sensações. Assim penamos, extáticos, entre as gratas recordações das mãos e o sabor daquela memória que guardamos tão ciosamente como se fosse a secreta receita de um sofisticado licor. Por isso a boca antecipa o que os olhos, gulosos, já não conseguem disfarçar ao ver chegar de longe, pé ante pé, os sábios requintes da madrugada. Neles descansamos o corpo exausto. Neles adivinhamos a repetição dos dias. E neles semeamos, a esmo, erva-cabecinha, ou perpétua-das-areias ( Helichrysum angustifolium ), para que as suas flores animem, com um aroma de culinária exótica, o que ainda resta do sabor das tardes quentes, ou para, com elas bem secas, enchermos as almofadas que nos amparam o sono dorido e os sonhos vigilantes.É estático este êxtase que adormece o silêncio e a noite, como se a Glória de uma missa-cantilena acabasse, agora mesmo, de percorrer a nave de uma catedral gótica e deixasse as mãos perdidas ante a imponência das colunas e a hesitação dos olhos que, temerosos, vagueiam pelo transepto em busca do infinito de nós.Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
2 comentários:
Bela metáfora conseguida através da líchia, fruto exótico, aparecido por estes distantes e fechados lugares há pouco mais de uma quinzena de anos (??) mas, na realidade, na sua pequenez e aparente fragilidade, tão rico de subtilezas aromáticas, evocativas de paraísos vividos, imaginados ou sonhados, de enganadora e perturbante textura... Quantas e quantas vezes, ao segurá-las, as retenho no côncavo das mãos e as olhos , perscrutando-as, imaginando o que sabem, o que escondem, perguntando porque têm elas um ar tão encantatório... E a cor, variada, do exterior para o interior, criando também um engano !
E as recordações, evocando quem mas pedia para lhas comprar, porque as razões eram as mesmas...
Este texto, para mim, era mesmo inédito ! E soube bem saboreá-lo agora e aqui !
Um abraço.
fsm
P.S. (1)- E há também um saboroso licor de líchia, conhecia esse néctar ? Bom, MG, agora não o vá "conhecer" todo de uma vez...cuidado, respeito !
P.S. (2) - Claro, esta noite foi Lua Plena, distraí-me ... e fui ler o ô'caso... e lá encontrei um luar poético de que muito gostei !
minha querida!
a Nau e nós ( eu particularmente ) tinha saudades de lê-la aqui
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não comento o comentário ao texto do nosso Almirante, porque tenho a certeza que ele o fará
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oportunamente
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mas agradeço-lhe a visita ao ô'caso
que lhe reserva outras surpresas
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oportunamente
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reveladas
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mas feitas com um carinho muito especial em momentos, igualmente, especiais
um beijinho!
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