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Abres a porta à procura da luz -
Um galo canta no cimo da hora,
e tu estremeces e agitas as sombras,
e a luz foge para longe.
Abres a porta à procura do nada:
um rato rói a alma por dentro,
e tu estremeces e agitas o vento -
e o nada foge para dentro de ti.
Abres-te para o verde cantante das searas:
uma cobra rasteja por entre os caules,
e estremeces de novo,
e a água foge da tua sede -
é então que ao pé da luz,
a sombra se casa com a água,
e a seara cresce desmedidamente,
e os deuses riem dos gestos dos homens,
confusos demais para abrirem caminhos -
contudo, sem que eles o saibam,
lá no fundo da sua alma,
num recanto obscuro da mente,
uma pequena flor começa a ganhar raiz -
ela vai crescer para todos os lados
e atravessar o mundo e o próprio universo:
e homens e deuses e pássaros e pedras
e árvores e asas e campos e casas
e pontes e portas, senhores e servos,
e tudo o que mexe e o que fica imóvel,
e tudo o que fala e tudo o que cala
são as pétalas infinitas dessa flor. António Simões, inédito. 9 de Fevereiro de 2002. Escrito entre a vigília e o sonho, numa tarde mágica dos campos do Louredo.
Legendas Íntimas de Augusto Mota.