25/02/2013

Soneto


 
 
 

arrumações
 
arruma a dor na alma, aí num canto,
e o ódio também,  se acaso o tiveres;
arruma o inútil, lastimoso  pranto
pelo amor de  esquecidas mulheres;
 
 
arruma o rumor de pratos e  talheres
em ágapes de silêncio e de quebranto;
arruma tudo quanto tu puderes
e teu ser magoou tanto e tanto;
 
 
arruma o sol em teu coração,
leva-o contigo lá para onde vão
os fulgores da tarde  adormecida;
 
 
arruma os  medos e  as alegrias,
o quanto sofreste e não merecias,
arruma a vida, sim, arruma a vida.

                                           António Simões
 
 
foto: augusto mota
 


22/02/2013

Sonetos da Tasmânia


príncipe sou, mas não dos poetas

 
 
 
 
príncipe sou, mas não dos poetas,
cujo perfume  outrora  enchia, balsâmico,
as folheadas páginas das selectas;
sei do poder do ácido clavulânico,
 
que cura patologias nas doses certas;
pra  enfrentar  o  poder, prescrevo o dinâmico,
decidido afã  das mentes mais despertas
que revigorem o povo perdido de pânico;
 
príncipe sou, meu reino é o soneto,
este meu refúgio donde vos prometo
luta sem tréguas, quiçá aliterante…
 
homem de paz, uso o gládio da palavra,
e o meu estro,  meu protesto lavra,
pra que em versos  ardentes o cante.
 
 A. Inocêncio Príncipe
 
foto: augusto mota 


21/02/2013

De NADA

Um ponto de vista




  
 Alberto Pimenta é uma das maiores forças em vigor na poesia portuguesa. E a fazer, felizmente, estragos. A prová-lo, a acção de mais de 40 anos de livros publicados. Em poucos casos a palavra "acção" será tão bem empregue.
De Nada seria uma edição de formato inovador, não se tratasse de Alberto Pimenta, fabuloso reiventor de si próprio como agente da (à falta de melhor palavra) cultura. 
O registo áudio a acompanhar o livro - em que um soberbo Pimenta diz os seus poemas - materializa um aspecto que vem marcando a sua produção: o poema é caminho de ida e volta para a palavra dita. E está disseminada por toda a sua obra essa atenção à rede de relações entre léxico e sonoridade, ritmo e verso. De Nada não é excepção - "todas as noites há um ruído / fino / cada vez mais perto / parece já no quarto / do lado" (p. 39).
Neste seu mais recente livro - como em toda a sua intervenção -, ele é o oposto do poeta na sua torre. Não há torre, não há pose,  não há poeta - "tudo isto claro / não se aplica a poetas / até certo ponto meus semelhantes" (p. 62).
Há, em compensação, muito mais do que isso: Alberto Pimenta, alguém que propõe para a poesia novo fôlego, outra amplitude - "a sua função / era ampliar o mundo / não / reduzi-lo ao tamanho de cromos" (p.74).
Eis, então, uma poesia que não se alheia do mundo, cuja valia e propriedade nos dizem mais sobre o que é estar aqui hoje do que mil tratados poderiam - "para os desempregados / o único grupo desta sociedade / que está em alta / uma boa notícia mais" (p.59).
 
Hugo Pinto Santos, in «Time Out Lisboa», 6-12 Fevereiro 2013.
 

 
 
Editora BOCA - palavras que alimentam, Lda. / Novembro  2012 / 112  págs. / 2 CD / € 16.
 

Sonetos de Shakespeare


Que tudo o que é muito belo tenha descendência
 
 
 
 
1

 
From fairest creatures we desire increase,
That thereby beauty’s rose might never die,
But as the riper should by time decease,
His tender heir might bear his memory;
But thou, contracted to thine own bright eyes,
Feed’st thy light’s flame with self-substantial fuel,
Making a famine where abundance lies,
Thyself thy foe, to thy sweet self too cruel.
Thou that are now the world’s fresh ornament
And only herald to the gaudy spring
Within thy own bud buriest thy content,
And, tender churl, makes waste in niggarding.
     Pity the world, or else this glutton be,
     To eat the world’s due, by the grave and thee.
 
 
William Shakespeare
 
 
1
 
 
Que tudo o que é muito belo tenha descendência,
Para que nunca morra a rosa da beleza,
Pois se pra quem for velho cessa a existência,
Seu  herdeiro,  sua memória mantém acesa.
Mas tu, que a ti mesmo te reduziste,
Irás arder na tua própria combustão,
Onde abunda a beleza, uma carência viste,
A ti mesmo  te  maltratas  sem razão.
Tu, que és do mundo,  juvenil ornamento,
Arauto que anuncia a primaveril beleza,
Enterras em ti os dons que trazes dentro,
Generoso avaro,  pródigo em  tua avareza.
     Tem piedade do mundo, porque senão,
     Devoras o que a campa e tu lhe devem, glutão.

 
Tradução de António Simões
 
 
Quando quarenta invernos cercarem tua fronte
 
 
2
 

When forty winters shall besiege thy brow
And dig deep trenches in thy beauty’s field,
Thy youth’s proud livery, so gazed on now,
Will be a tattered weed of small worth held.
Then being asked where all thy beauty lies,
Where all the treasure of thy lusty days,
To say within thy own deep-sunken eyes
Were an all-eating shame and thriftless praise.
How much more praise deserved thy beauty’s use
If thou couldst answer “This fair child of mine
Shall sum my count and make my old excuse,”
Proving his beauty by succession thine.
      This were to be new made when thou art old,
      And see thy blood warm when thou fee’s it cold.


 William Shakespeare
 

2


Quando quarenta invernos cercarem tua fronte,
Fundas trincheiras nesse campo cavando,
O admirado trajo juvenil ora flamejante,
Será então farrapos d’aspecto miserando.
Ao perguntarem onde tua beleza jaz,
Onde todos esses fogosos dias ‘stão,
No vazio profundo dos olhos verás,
Vergonha sem decoro, lisonja sem razão.
Servindo a beleza, merecias maior louvor,
Se pudesses responder: “Este belo filho meu,
Saldará as contas que a vida me deu,”
Sua  b’leza prova que é o teu sucessor.
     E quem já é velho, novo se sentiu,
         Pois corre quente o sangue que outrora era frio.

Tradução de António Simões

Obs.: Apresentamos a versão provisória da tradução dos dois primeiros sonetos de William Shakespeare, ainda sujeita a revisão, encontrado-se, porém, já concluída a tradução da totalidade dos seus 154 sonetos, os quais serão, posteriormente, acompanhados de notas esclarecedoras para uma melhor compreensão e fruição da obra do poeta.

15/02/2013

SONETOS DA TASMÂNIA

Eis três recentíssimos trabalhos que o poeta A. Inocêncio Príncipe nos enviou da Tasmânia (onde se exilou já lá vão uns anos!), e que, talvez motivado pela agressividade do diabo-da-tasmânia, lhe dá agora para, de vez em quando e para nosso deleite, produzir uma acutilante poesia aliterante: 
 
 
 
 
Diabo-da-tasmânia (Sarcophilus harrisii)
 
 
a mesquinha matilha de melífluos mastins
 
um grupo de gente gananciosa e gasta,
flébil e frouxa como um feixe de feno,
básica e brutal a quem bater não basta,
que nos varre da vida com seu venal veneno. 
 
um clã de cruenta e cavilosa casta,
perniciosa e pelintra de pequeno porte,
que tudo arrepanha, arrepela e arrasta,
soturna como a sombra da mais sinistra sorte;
 
os gestos generaliza enquanto gesticula,
come caviar e nós lambemos lula,
dorme em doces dosséis e nós na lama;
 
mesquinha matilha de melífluos mastins,
finar-se-á refém de seus funestos fins -
nesta amorosa pátria ninguém os ama.
 
 
A. Inocêncio Príncipe
 
 
 
 
Canguru-da-tasmânia (Macropus giganteus tasmaniensis)
 
 
pedro passos poejo
 
 a pedro passos coelho, eu preferia
um pedro passos mais aliterante;
um pedro passos poejo, oh! que alegria,
com alguém assim, tudo iria avante;
 
e a pátria, bem-temperada ficaria
no decurso exacto de cada instante -
poejo é planta de sabor-sabedoria,
grácil, perfumada, estruturante:
 
quem açorda de poejo bem conhece,
sabe que não há sabor assim como esse,
nem perfume igual a esse há;
 
para acbar com a crise eu só desejo:
presida ao poder pedro passos poejo,
e o outro pedrinho se demita já!
 
 
A. Inocêncio Príncipe
 
 
 
 


 Echidna / Ouriço-da-tasmânia (Tachyglossus aculeatus
 
 
 
 d.d.d. 
 
oh desleixada, desigual democracia,
que soez sacrificas quem te sustenta:
a uns dás menos d'oito, a outros mais d'oitenta,
e farsante falas funérea e fria;
 
aquele que cria a couve é quem te cria,
faz a fábrica e faz a ferramenta;
pisas o pobre povo e o povo não aguenta
quem de sua vida varreu a alegria;
 
iletrada e ignorante, esqueces nossa história,
às vozes de bom senso, preferes a escória
de gente carreirista, sem ética ou ideal;
 
procacíssimo* pesadelo permanente,
bruta e brutal, insegura, insolente,
pára de piratear o pobre Portugal.
 
 
A. Inocêncio Príncipe
 
* superl. abs. de procaz=petulante, descarado
 

05/02/2013

Alberto Pimenta - «De Nada»

 
 
 

De Nada (excelente título que nos remete, com ironia e corrosão, para os tratados filosóficos em voga nos séculos XVII e XVIII) podia ser apenas um dos melhores livros de Alberto Pimenta publicados neste século. O que já não seria pouco. Mas a proeza é de outra ordem,  alegoricamente sugerida no texto final do livro (“o trabalho que dá pôr em ordem um caos”) ou  na nota colocada logo a seguir ao índice: “a escrita é contínua (sem interrupções sonoras entre as faixas)”.  O importante não é tanto o facto óbvio de estarmos perante um audiolivro, admiravelmente lido e gravado, mas antes o continuum que este ciclo de poemas reclama ser. Não se trata, porém, de um conjunto harmonioso, elegante ou unívoco.
Voltando uma vez mais as costas à “poesia da poesia”, Pimenta confronta-nos, sem complacências, com a aspereza do tempo que nos coube em sorte:

“mas isso

foi ainda no I Reich

para mais na Baviera

depois veio o II Reich

e depois o III

e agora o IV

chamado Europa.”
Não é só o tempo histórico, com tudo o que possa ter de vil, que este livro denuncia. Vituperado é também o tempo individual, enquanto sinónimo de torpe, ou resignada escravatura:
“o homem aproveita

engenhosamente

o tempo

e nos intervalos

produz os novos escravos

do novo tempo.”
Numa época em que muita poesia parece ter prescindido de qualquer vocação política, Alberto Pimenta inverte sabiamente as coordenadas, esbofeteando em versos limpos e cirúrgicos os economistas andróides ou os católicos assassinos de Gisberta Salce (tema e matéria do seu intenso e denodado “Indulgência Plenária”, publicado pela &etc em 2007). Para que fique bem claro:
“ganir

sim talvez seja isso 

o que devíamos dizer

e é o que ainda por cima

sentimos”
 
Manuel de Freitas, in «Atual», revista do «Expresso» de 12 Janeiro 2013
Fazem parte integrante desta obra 2 CD com os poemas ditos pelo autor, com a participação de Oriana Alves.
112 págs., € 16
Editora BOCA – palavras que alimentam, Lda., Novembro de 2012