13/08/2012

Colateralidades 6







10/08/2012

Ofélia morta, de John Everett Millais





Está morta
uma grinalda à volta da cabeça
flores nas mãos e nos braços
permanece de olhos ainda abertos
mas já não vê o amado
É obra de John Millais
pintor inglês pré-rafaelita
que conhecia
o drama das muitas mortes:

um rei que mata o irmão
e casa com a cunhada
rainha viúva
e mãe que era de Hamlet

o príncipe que mata Polónio
por acidente
e o rei usurpador e assassino
por vingança

Laertes e Hamlet eram amigos
e matam-se também
nesta teia de equívocos
arquitectada por Shakespeare

Ofélia terá caído à água
ou ter-se-á suicidado
nas águas transparentes do rio?
Isso agora de nada vale
e o quadro nada nos diz.

                             Luís Serrano



in «QUANDO SE APAGAM AS CEREJEIRAS», Chiado Editora, Lisboa, Julho de 2012, p.78.
Ilustração: "Ofélia morta", célebre quadro do pintor pré-rafaelita John Everett Millais, 1852.

09/08/2012

Depois do esquecimento







Depois do esquecimento
é o nada
às vezes a flor do remorso
a lágrima tardia
o silêncio.

                            Luís Serrano


in «Quando se apagam as cerejeiras», Chiado Editora, Lisboa, Julho de 2012, p. 15.
Foto de Augusto Mota / centro de uma flor da aboboreira Manteiga, Agosto 2012.


Para comemorar os 50 anos de vida literária do autor, a Chiado Editora, com o apoio da Universidade de Aveiro, acaba de editar esta obra de Luís Serrano, que ele dedica à memória do Fernando Assis Pacheco e do João Vário.
A propósito desta mais recente obra poética do autor, transcrevemos, com os devidos agradecimentos, a apreciação crítica de Manuel Simões, publicada no «As Artes Entre as Letras», de 11 de Julho de 2012:
A POESIA RESISTE À LEI DA MORTE

(A PROPÓSITO DE “QUANDO SE APAGAM AS CEREJEIRAS”,  DE LUÍS SERRANO)

Quando se Apagam as Cerejeiras (Chiado Editora, 2012), título do mais recente livro de poesia de Luís Serrano – e que com ele se celebram 50 anos de vida literária do autor – é uma belíssima metáfora cuja amplitude reflecte um discurso que, na sua globalidade, aflora sobretudo acentos crepusculares. Não é, pois, por acaso que este corpo textual se constrói a partir de elegias a poetas que marcaram o nosso tempo (Manuel Amaral, Eugénio de Andrade, Fernando Assis Pacheco, com explícitas referências a Rilke, por exemplo) ou da representação de obras artísticas, com predilecção pela pintura ou escultura mas na maior parte dos casos pela música, de que o requiem constitui composição privilegiada pelas emoções que alguns exemplos ilustres não podem deixar de transmitir, tornando-se assim matéria de poesia.
Nesta organização textual em que parece encontrar-se subjacente o triunfo da morte, este elemento está porém em contraposição com o seu oposto, isto é, com a vida, embora se acentue a fragilidade que irremediavelmente acomuna os dois pólos, como se pode ler nesta reflexão essencial: «São frágeis os fios por onde a vida e a morte se articulam […] Mas esses fios são as linhas contraditórias que se cruzam sobre a obra de arte, ela própria um grito da vida e uma antecipação da morte» (“A propósito do Requiem de João Pedro Oliveira”, p. 31).
Vida e morte estão fatalmente ligadas pelos fios da consequencialidade, sabiamente confundidas mesmo a nível elementar, mas na obra de arte a vida acaba por se reflectir através da metamorfose actuante, subtraindo do esquecimento eventos ou figuras, prolongando os ecos da vida e, nalguns casos, amplificando e alimentando o mito, como no poema “Os Túmulos de Pedro e Inês”: «Quem sabe se não / foram os três anjos colocados/ à cabeceira de cada um/ que impediu a sua morte// vivos que estão ainda/ no rio da memória/ para hoje e para sempre?» (p. 61); ou na transfiguração de “Sinfonia nº. 7 de Chostakovitch: «A sinfonia ficou: homenagem/ possível para quem sofreu/ a dor o desalento o desespero» (p. 91).
Na elaboração de tal discurso poético, precisamente porque se contrapõem os extremos de um itinerário vivencial, tem uma importância nuclear o tempo como categoria numa dupla dimensão: a sua implantação como componente da história em articulação com o seu manifestar ao nível do próprio discurso. É óbvio que para a condição humana é fundamental a vivência do tempo, como aqui se testemunha através do devir existencial que filtra o tempo («falo do relógio sem ponteiros», p. 33), o que nos leva a interrogar se é o tempo que passa ou se somos nós que passamos, o que determina a incidência fundamental do tempo psicológico, também referente da sua mudança irreversível («Há um tempo perdido/ uma rosa dissimulada/ uma dor um rosto antigo», p.32; mas também «Há um peso no que sobra/ do tempo passado», p. 36), do desgaste e da usura que sobre a mudança exerce a passagem das horas e as experiências vividas: «É verdade que as árvores/ continuam a crescer/ mas o verde não é mais/ o mesmo e as folhas caem/ nos degraus melancólicos/ do Outono» (“No tempo em que…”, p. 36).
Na sua poética, que desde a estreia na revista Êxodo, de 1961 (com Herberto Helder, Rui Mendes e o malogrado poeta caboverdiano João Vário), passando por Poemas do Tempo Incerto (1983), Entre Sono e Abandono (1990), As Casas Pressentidas (1999) e Nas Colinas do Esquecimento (2004), revela uma perfeita geometria rítmica e a «projecção metafórica de uma realidade em decomposição, sujeita a um processo degenerativo, da fragmentação de um mundo do qual nos fica a memória através da palavra» (como noutro lugar já tive ocasião de salientar), o discurso inscreve também aqui um tempo balizado por cicatrizes, pela inquietação e pelo medo («Havia desemprego/ miséria fome desesperança; era a Grande Depressão/ de vinte e nove», p. 64), e uma história cultural e social de luzes e sombras mas cujas marcas eloquentes emergem à superfície do texto, mesmo que por vezes pareçam assumir-se apenas como «um deserto/ de alguns sinais/ de magoada escrita» (p.13).
Saliente-se ainda que Quando se Apagam as Cerejeiras, na sua totalidade, elege programaticamente a poesia substantiva e que os poucos adjectivos que pontuam o texto funcionam como elementos acentuadores de uma melancolia que percorre transversalmente todo o discurso. E acentue-se, por fim, o recurso à memória e à sua hermenêutica, numa conjugação que as torna elementos primordiais no evoluir da expansão textual, isto é, da polifonia que se distribui por «harmonias e dissonâncias», tudo matéria da poesia, «esse afecto especial/do coração».

 Breve resenha biográfica de Luís Serrano:
Nasceu em Évora em 1938. Licenciou-se em Ciências Geológicas (UC). Estudos especializados na Universidade de Bordéus e em Madrid (CSIC). Assistente da Faculdade de Ciências da UC(1967.1970), geólogo da Direcção-Geral de Minas (Porto, 1970-1975) e investigador da Universidade de Aveiro (1975-2001). Entre 1996 e 2001, responsável pela coordenação cultural desta Universidade.