30/06/2006

O primeiro livro impresso em Portugal...

Comemoram-se, hoje, dia 30 de Junho, os 519 anos do primeiro livro impresso em Portugal, o Pentateuco judaico, editado em hebraico, e saído de uma oficina de Faro, propriedade do judeu Samuel Gacon.
O livro terá sido impresso numa oficina que existiu na hoje chamada vila-a-dentro, propriedade de Samuel Gacon ou Samuel Porteiro.
Muito embora não tenha sido editado em português - o que vem a verificar-se com o "Tratado de Confissom", impresso em caracteres góticos e terminado em Chaves a 8 de Agosto de 1489 - a edição do "Pentateuco" é, sem dúvida, um marco importante da cultura portuguesa e algarvia do Renascimento.
Há anos, o Governo Civil de Faro fez uma edição fac-similada da "Tora", com tradução portuguesa. O original, levado quando do saque à cidade de Faro e ao Algarve, pelos Ingleses, no séc. XVI, encontra-se no Museu Britânico, em Londres.

29/06/2006

Fotografia de Tiago Varão.

"El Oro de los Tigres" / Dia Mundial das Bibliotecas

Lo invita a participar con Manuel Lozano del programa
"EL ORO DE LOS TIGRES"
-Para un panorama de la cultura actual -
( Jueves 29 de junio - 20 hs. GMT )
Cultura es el oro de los tigres que comunica un mundo: nuestro mundo. Cultura es el oro de los tigres en el cuerpo verdadero de lo humano. Cultura es el oro de los tigres que nos sobrevive.
- Manuel Lozano.
"El Oro de Los Tigres" recupera un territorio donde los creadores de productos y servivios culturales y el público que necesita estar informado o ser escuchado en relácion con sus preferencias, hallan un espacio imprescindible, poco recorrido actualmente en los medios de comunicación. Las instituciones ( empresas de lo cultural, ONG's, fundaciones ), las creaciones tanto individuales como grupales son difundidas, dentro de un entorno de música de alta calidad ( jazz, clássica, contemporánea ), preferentemente con formaciones y artistas de Argentina y del Mundo.
El escritor Manuel Lozano, en las secciones "Conversaciones con...", "Preludio" y "Didascalia Negra", le abre la puerta a esta fiesta que se ha dado en llamar - El Oro de los Tigres".

28/06/2006

Legenda Íntima 112. Augusto Mota.

27/06/2006

a curva dos dias

para o Rodrigo Freitas
Enquanto o sol aquecia o vento que agitava as heras do muro velho revimos os enxertos do ano passado e aliviámos-lhes as cicatrizes das feridas forçadas. A operação de enxertia apanhou a Lua de feição e a cura, agora, está em franco progresso. Em breve teremos frutos robustecidos pelo cruzamento celular de ambos os sexos e, então, à sombra de uma frondosa pérgola de quivis ( Actinidia chinensis ) hermafroditas, haveremos de beber do melhor vinho e comer do melhor presunto com um bom naco de pão alentejano. Depois dormiremos uma sesta reparadora e sonharemos com os sonhos antigos desfeitos pelo presente. E sonharemos com o presente que ainda não foi desfeito pelos pesadelos do passado.
O pão, o vinho e os frutos do estio alimentarão as enxertias da nossa memória de ontem com as desilusões de hoje e, assim, redimiremos as mãos que tanto trabalharam as ideias que nos enchiam a cabeça e as conversas silenciosas à mesa do café, ou pelas vielas solitárias da noite. Os traços e as cores que incendiavam os papéis diziam mais do que as palavras que nunca dissemos. E os jornais que multiplicavam a arquitectura das nossas cidades sitiadas eram o linitivo para o arrastar húmido e cinzento dos dias. Por isso inventámos metáforas de cidades e de mulheres. Por isso povoámos as praças de anseios e as torres da barbacã de atentos vigilantes do nosso absurdo. E sobre essas cidades do passado fizemos pairar poetas e pombas, que levavam longe as mensagens secretas da vitória.
Hoje a vitória é outra, mas vive ainda presa às ideias que germinam nas mãos que enxertam as palavras com novos significados. Ou que enxertam nas árvores os frutos da nossa experiência para, um dia, saborearmos tudo - os novos significados e os novos frutos - à mesa do tempo, debaixo de uma pérgola permanentemente em flor, enquanto o sol aquece o vento e agita as heras do muro velho do pátio da nossa vida.
A vida, como a casa, resume-se, afinal, a um pátio onde aquecemos os pés ao sol das recordações, abrigados do vento e a imaginar, com saudade, a sombra das árvores a ultrapassar o círculo que os nossos gestos foram traçando no chão, até fecharem a curva dos dias que ainda nos pertencem.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.
Fotografia de Augusto Mota. Flor sem nome.

26/06/2006

Caderno do Algoz, dia 8, 12:11

Hoje acordei ainda não era manhã. Através da janela do quarto, com os olhos raiados pela insónia, vi morrer a noite.
Sinto-me cansado.
O meu corpo pesa-me como o corpo de um velho. Pois desde que recebi a ordem, nunca mais o meu sono teve a profundidade a que estava habituado.
Levanto-me e não tenho fome. Cambaleio de tonturas. Tenho que tentar beber um copo de leite que não consigo. Ajoelho-me e vomito. As minhas estranhas entranhas dobram-se numa poesia de orgãos: intestinos, baço, pâncreas, estômago, fígado, vesícula, esófago, traqueia. Um jacto acre e ácido é projectado da minha boca: restos de frango misturados com bróculos e vinho e whisky.
Afinal o que detém importância?
Se a carne gera a carne. A violência. O apego. O sofrimento.
Há coisas tão evidentes que não encontro palavras.
Reparo na fruteira postada em cima da bancada. Um par de laranjas - cansadas de terem amadurecido - ganharam desde ontem na casca uma penugem de cinza. Uma pele gasta e pútrida pelo ar. O peixe dá voltas e mais voltas. Tudo fenece à minha volta. Lavo a boca, os olhos e os sovacos. Desfaço a barba. Guardo no fundo do saco a farda engomada e antes de fechar a porta pouso os olhos na tua fotografia. Tu sorris. Desço rapidamente as escadas enquanto acendo um cigarro que me provoca uma tontura embebida em náusea. Quando chego cá fora o dia está insípido: nem quente, nem frio, nem vento. Apenas umas nuvens espapaçadas se levantam do horizonte como um bando de pássaros tristes. Lembro-me de imediato das chuvas longas, e das trovoadas, que o Inverno já entretanto abandonado, levou consigo. Ao menos a chuva, penso, enquanto deambulo pela cidade, sem rumo, à espera que a vida de súbito pare, e o meu destino não seja cumprido.
Paro no jardim. Sento-me num dos seus bancos verdes, mais antigos. Ouço os melros assobiarem suspensos nos ramos. Vejo num dos canteiros à minha esquerda, sobre a relva fulgente, uma cadela encarquilhada sobre si, numa pose esteticamente reprovável, a estremecer sofregamente, a fazer força para que a merda a abandone. Com o barulho das patas a esgravatar a terra húmida. Com as flores pardacentas que despontam dos canteiros. Com os ramos altos dos olmos como halos desprendidos das almas. Com os passos. Sempre os mesmos passos. As mesmas pedras. Sempre as mesmas pedras pisadas dez mil vezes pelos mesmos passos. Dez mil passos. Dez mil vezes. Dez mil pedras. Dez mil ruas. O alcatrão. O sol como uma tangerina em chamas. As beatas dos cigarros mortos. As cinzas acordadas pela calçada. Os pátios vazios de pombos e jogos. Pelos meninos que um dia fomos, que queriam crescer à força, pelos meninos que já não são. E as gruas. As máquinas amarelas. O cimento. O vermelho. O betão armado. As casas. Os santos. A igreja. Os altares. Os talhantes. As floristas. Os cafés. As mesas cheias de aguardente às nove e meia. Os homens vivos. Os homens mortos. Os homens vivos com cara de mortos. Os transeuntes. Os benfeitores. Os rotinados. Os ignotos. Os nauseados. Os pestilentos. E nas faces o rumor do triste, os braços de desânimo paralelos ao tronco. O saco a tiracolo que aos poucos se torna um fardo. A merda da cadela já arrefecida, um torcido duro, uma porcelana de barro, plena de arquitectura em cima da relva. Grito. Levanto-me. Fujo. Corro. Entro no café. À procura de distracção? Talvez da fome ou do esquecimento. Fumo um e outro cigarro.
Choro convulsivamente.
Peço a conta.
Penso no oco dos dias.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "Cadernos do Algoz".

24/06/2006

Vinheta Ecológica.
Augusto Mota. 1981

Ninguém Mais

Numa galáxia distante,
um pássaro pousou
numa pedra,
num som quase imperceptível de veludo -
Ninguém mais o ouviu em todo o universo
senão minha alma que ouve e sabe tudo.
António Simões, inédito in "Poemas Antigos".

23/06/2006

Legenda Íntima 110. Augusto Mota.

22/06/2006

A Cabeça Inventada

Alargavam-se os versos e as rimas, pelas ruinas nocturnas.
Havia touros de lápis-lázuli, cavalos negros, serpentes azuis.
As velas acendiam-se.
Tudo se passava, cerceando os limites, o tempo e a voragem,
a flor negra prenunciando o fio excêntrico do ouro surreal.
No oriente, havia sacerdotes sagrando a abundância
e um louco imperador precipitando os eixos de Saturno,
sobre as idades frias da terra.
Chamava-se Heliogábalo e reinava sobre a excentricidade.
Penso no seu corpo abstracto,
na sua ruína excêntrica, a cabeça inventada,
as vísceras cosidas topo a topo, sobre a carne timbrada,
coberta de flores surreais, e no seu longo nome:
Varius Auitus Bassianus Marcus Aurelius Elagabalus
sacerdote do deus Baal de Emésia.
Era sírio, nascera em 218 d.C., filho de Iulia Soaemias,
manobrava a sua loucura, as vísceras encerradas,
topo a topo, os eixos de Saturno precipitando-se, castrados.
Tinha Marcus Aurelius no seu nome, porque Marco Aurélio foi,
de todos, o mais sábio Imperador e todos os que o seguiram
o quiseram imitar.
Quando o frio chegava, o ouro estendia-se,
pelas suas ramagens, trazendo Maio, uma mulher em touro,
um sábio imperador, os touros do Éfeso.
O tempo passava, e a hisória coloria-se, na sua intrínseca poesia.
No Éfeso houve poetas, como Calímaco e Hipónax,
médicos como Sorano, Xenófanes
e touros sagrados, sagrando a abundância.
Na cabeça inventada, o ouro engolia o frio, os touros sangravam,
como feridas negras;
as águas corriam e o mundo oscilava.
Por vezes, um livro é a escuridão suprema, caída pela noite,
mágica e orgiástica.
E os poemas são jóias, pulsos timbrados, pela noite inventada,
a cabeça insegura, sobre a negra voragem.
Assim Stefan George construiu Algebal.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

21/06/2006

Solstício de Verão - 21 de Junho.


A órbita da terra em volta do Sol não é, como sabemos, uma circunferência perfeita, o que faz com que a Terra ora esteja mais próxima, ora mais distante do Sol. O ponto de órbita de um planeta mais próximo do Sol é chamado periélio e o mais distante afélio. À primeira vista, poderíamos pensar que temos Verão no periélio e Inverno no afélio. Isso seria correcto se a diferença entre as distâncias Terra-Sol no periélio e no afélio não fossem tão pequenas ( cerca de 2% ).
A Terra passa pelo seu periélio no início de Janeiro, quando é Inverno no hemisfério norte e Verão no sul, e passa pelo seu afélio em Julho, quando é Verão no hemisfério norte e Inverno no sul.
Mas porque terão as estações os seus inícios nos solstícios e nos equinócios, em vez de estarem centradas em Janeiro e Julho?
Cada hemisfério recebe maior incidência solar no solstício de Verão - não deveria esse dia ser o mais quente do ano e corresponder ao meio do Verão? Da mesma forma, uma vez que é no solstício de Inverno que um hemisfério recebe menor incidência solar, não era para esse dia ser o mais frio do ano e ficar no meio do Inverno? O que observamos, no entanto, é que o dia mais quente do ano acontece depois do solstício de Verão, assim como o dia mais frio acontece depois do solstício de Inverno.
Mesmo assim convencionou-se corresponder os inícios das estações aos solstícios e equinócios. O desajuste dos dias mais quente e mais frio é devido a um fenómeno chamado "inércia térmica".
Os hemisférios demoram algum tempo a aquecer pelo aumento da incidência solar, assim como demoram algum tempo a esfriar, quando diminui essa incidência. Esta inércia é devida, principalmente, à grande quantidade de água espalhada pela superfície da Terra. A água tem uma enorme "capacidade térmica", "demorando" para variar a sua temperatura. No solstício de Verão, os oceanos ainda estão "a absorver calor" e a aquecer, enquanto, no solstício de Inverno retêm uma boa parte do calor absorvido durante o Verão.
"Solstícios, Equinócios, Afélio e Periélio", in pt.wikipedia.org/wiki/solstício.

20/06/2006

Excessos

Excessiva, esta emoção
de fim de tarde -
Excesso
de quem já traz dentro do peito
o universo,
mas sente rebentar-lhe o coração
porque a alma é que não cabe.
António Simões, "Poemas Antigos", inédito.

19/06/2006

Fotopoema 62. Augusto Mota.

os tambores da inquisição

Ouço já os tambores que se afirmam traiçoeiros de morte súbita. Ouço já as grilhetas dos cadáveres arrastando as calçadas em quedas de humidade sanguínea. Horror! O medo paira pelas vielas e as paredes estão incrustadas de olhos esgazeados perante o pavor da Inquisição. Há esbirros nas sarjetas e os ratos já fogem de pavor. Há lama nos palácios e os vermes já proliferam na estagnação da consciência humana. Apesar de tudo isto o homem aceitou a ruina da sua cidade, deixou milhares de cadáveres sepultarem-se nos escombros incendiados e permitiu que os chacais uivassem no deserto, quando a carne já cheirava a podre e os próprios ratos a abandonaram. E nem sequer se sentiu digno para impedir tudo isto...
Sombras negras continuaram a desfilar pelas ruas, atroando sons de ferros cavos e abrindo fendas nas portas vãs.
Tudo era deles! Mulheres pereceram em sexo virgem e mães abortaram em maternidades apressadas. Fetos corriam já para a morte em atitude de suprema glorificação humana, fetos nascidos de primeiros amores em campos cercados de sebes viçosas e apetecíveis, como afirmação endémica da pureza inicial, a que, agora, se tenta regressar, mas através de uma fé materialista, servida por espíritos malfazejos, desculpados por uma sociedade que não se apercebe da maquinação degenerada que se aproxima cada vez mais.
Deixai-me viver! Afastai-vos tambores malditos! Não excitai a minha curiosidade de lutador irracional e concedei o vosso perdão ao meu desenvolvimento interior. Permiti que desça ainda mais às minhas cavernas interiores e que eu lá possa encontrar a fuga de mim mesmo e a vossa justificação.
Avançai agora que já não vos temo! Dilacerai agora a vista dos rostos incrustados nas esquinas e totemizai Cristo na praça pública! Mas se o fizerdes assassinareis a humanidade e a vossa alma conhecerá o revolver eterno do mar em revolta. E nem a cólera dos pescadores que, em desespero, arrancaram Cristo da praça pública e o levaram para os barcos ancorados na baía vos salvará, porque uma multidão pressurosa os perseguiu e lhes afundou as esperanças de reabilitação quando aplaudiu o naufrágio de toda a frota à saída da barra e, ali mesmo, assistiu, impune, ao espectáculo de mil braços clamando socorro e afogando-se no meio do piar das gaivotas assustadas. Depois veio a calmaria e o nevoeiro invadiu a cidade. Ao longe só os tambores se confundiam com a ronca do porto e, de vez em quando, um grito humano cortava o ar agora pardacento com as fogueiras acesas na praça pública, onde os cadáveres já rebentavam de cólera e tiniam as grilhetas como fantasmas assustados, infestando o ar de sons pestilentos e pegajosos.
"A peste! A peste!"
Isso, agora já gritam por causa da peste, quando massacram virgens na praça pública e vêem bandos de abutres escurecer o sol poente como se fosse um exército em debandada! Rendei-vos, traidores! E vede como é belo um poente sem exércitos em debandada.
Agora já não ouço os tambores da Inquisição e parece-me que os exércitos derrotados já ultrapassaram o horizonte...
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora", 1962.

14/06/2006

"Espigas Azuis". Fotografia de Augusto Mota.

A companhia do poeta: Sidónio Muralha ( Portugal, 1920-1982 )

O Jardineiro Míope
O jardineiro míope levanta-se às cinco horas e vai dar alpista às flores
a seguir rega os pássaros
e enquanto vai regando vai dizendo:
"que bem cantam as minhas papoulas!"
Um dia a Liga das Senhoras mais Bondosas do Mundo
teve um gesto malvado
e ofereceu óculos ao jardineiro míope
que ajustou implacavelmente as imagens
perdeu toda a poesia
e viu tudo de maneira tão clara
que teve a ideia escura de pedir um emprego de funcionário público
enquanto a presidente da Liga
da Liga mais Bondosa
mais bondosa do mundo
subia para o céu
e se sentava à mão direita de Deus Padre
que lhe enfiou uma bofetada divina
que todos nós ouvimos em forma de trovão.
Sinónio Muralha ( nasceu em Portugal, morreu no Brasil, em Curitiba )

13/06/2006

118 anos de Fernando Pessoa

lembramos ...*
Se depois de eu morrer
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes uma das outras;
compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
Fernando Pessoa / Alberto Caeiro.
_______________________________________
* ... "outras mensagens" aqui

10/06/2006

Legenda Íntima 114. Augusto Mota.

Trevas Rasgadas

O tempo
- o vinho evaporava-se das suas taças de pedra.
O fogo renascia, as odes delirantes, os cometas de luz.
O silêncio respirava e queimava.
Genuína era a hora de todos os poemas e as horas minúsculas
cresciam, como bagas, tímidas, amarelas.
Era sempre assim, a voz e as flâmulas, a água entretecendo as fábulas,
pela urze transfigurada; as trevas rasgadas pela obsessão da luz.
E o tempo florescia, à noite, pelas suas mandíbulas,
que cresciam, como flores carnívoras.
Eu era a noite e um grito, a obsessão de um cântico, distinguindo
a aberrante espuma, o suor das estrelas,
e o meu coração era verde, como um girassol, abrindo as suas teias
desmembradas à névoa dolorosa, pela claridade implacável.
Moviam-se as musas lentas ( a lua em caranguejo ),
a loucura dionisíaca abrindo-se, pelos seus archotes sonâmbulos.
- Deus e o Diabo cruzavam-se.
José Régio era o poeta que me iniciava na claridade
de todos os poetas.
Rimavam com ele as águas, vestidas de brocado,
as nuvens, o mundo e as tempestades.
Percebia que os seres são poetas escondidos, dando nome
às coisas e poesia aos nomes.
Eu era a extensa harmonia e a criação inexplicável.
Na treva coberta de espuma, Deus sorria, sofrendo, derramando
o seu cântico de lira amarga,
narrando a poesia, evocando o sulfúrico esplendor das vozes
lisérgicas.
Contorciam-se as musas aberrantes, a matéria lírica.
Cresciam os lírios, o caos fervilhava,
num emaranhado soturno, numa amêndoa claríssima
- o silêncio voando, como um insecto nocturno
pousando, sobre o meu coração inerte.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

06/06/2006

Fotografia de Augusto Mota.
Castanheiro da Índia. Cacho de Flores.

Poemas Antigos

1. Riscos, Rastos, Restos
Escrevo poemas
para me libertar das palavras -
Caminhando de verso em verso,
até exausto cansar-me
e cansá-las,
deixo-as cair depois no chão
como folhas secas
que o vento leva para muito longe
e desfaz no ar.
Como a luz de estrelas há muito desaparecidas
debruando os contornos de minha alma,
cintilantes ainda dessa luz primeva,
aqui as deixo
na orla desta página,
dispostas como uma moldura ardente -
E fico a dançar no centro
até que o anel de fogo se vá estreitando
e eu arda na labareda das palavras -
O que aqui vedes negrejar nos caracteres deste poema
são as nossas cinzas -
Ardemos todos no fogo da emoção,
e o que fica é sempre isto:
uns rabiscos negros,
uns riscos,
uns rastos,
uns restos.
António Simões, inédito.

04/06/2006

Legenda Íntima 107. Augusto Mota.

o sortilégio dos frutos

Suculentos frutos frescos abrem-se à boca como romãs ao sol poente e o sumo carmim de suas veias derrama-se como música em nossas mãos. O bardo entoa o sortilégio de um céu longínquo de azul e fantasia. Muito para além das janelas desses frutos revejo os tempos em que juntos bebemos suas sementes, quando a maresia e o vento leste nos pinhais parecia prolongar a doçura de cada gesto e tais frutos abertos à natureza diziam de nós e de todas as colheitas que sagravam os bosques do nosso contentamento.
Em seu constante revolver o mar acolhe este balançar entre a memória e o vento, enquanto o bardo insiste nos tons outonais do poente que separa a vida e a gente.
Lestos são os frutos em seu despontar do prazer. Serão novo andamento em secreto concerto, melodia vaga e triste que ensombra os dedos e chora por nós um adeus que festeja o álacre Outono em sua primaveril renovação.
As estações do corpo também cumprirão seus ritos!
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.