24/01/2016

Recado

 

Para o senhor Augusto Mota na Manhã de Domingo, 24 de Janeiro de 2016

 

 



(E esses – lacónicos, lancinantes –
instantes em que, de manhã mesmo embora,
a vida se faz tarde?
Qualquer coisa ardeu & já não arde:
é a Hora.)
                                     ***
Somos o que envelhecemos.
Hemos só o que em velhos somos.

                     Daniel Abrunheiro 

Edição e foto: augusto mota
Foto: centro de uma couve com manipulação cromática
           

21/01/2016

Rosário breve



É  ENGRAÇADO  MAS  FALO  A  SÉRIO 





Voltarei, nestas Presidenciais, a votar em Manuel de Arriaga.
É-me despiciendo o facto de o ilustre Terceirense (açoreano da Horta, n. 1840) estar fisicamente defunto desde 1917 – é no mesmo que voto na mesma.
Quero-me representado por uma figura de natural humanismo, de cívicas bondade & benevolência, de regrado carácter, de exemplar sentido de causa & serviço públicos, de alto empenho na justiça social – e, já agora, panteísta, que era como chamavam aos ecólogo-ambientalistas quando ainda era preciso meter deuses ao barulho de rerum natura.
Interessa-me, e muito, que o mais alto magistrado da Nação não seja um ganancioso predador-distribuidor de honras, ribaltas, milhões, clientelas & milhões. O Dr. Manuel de Arriaga não é, seguramente o não foi nem o será, desses. Quando eleito, foi o primeiro a ocupar o Palácio de Belémmas (note-se isto muito bem) por sua conta. O arrendamento de 100 escudos ao mês era satisfeito pelo bolso dele. Assim como a viatura automóvel que oficializou no cargo: comprou-a ele, acabando de pagá-la a prestações quando já resignara à Presidência. Sim, um homem assim interessa-me. Voltarei (sempre) a votar nele. Não tenho feito outra coisa, aliás. Quando foi do Soares, votei Manuel de Arriaga. Quando foi do (outro) Sampaio, votei Manuel de Arriaga. Quando foi disto, votei Manuel de Arriaga. E tenho ganhado sempre, ao contrário do País.
Sabendo-o adversário tenaz do analfabetismo (o do tempo que foi dele, à volta dos 80%; e o do nosso, que andará à volta do mesmo, evidenciando-se tal conclusão de uma rápida mirada às redes ditas sociais), tenho-o por aposta certa & vencedora nestes nossos tão desdentados dias. Agrada-me, além de tudo o mais, que a sua/dele Lucrécia não seja de Bórgia mas de Brito – e não do Vaticano mas da Ilha do Pico.
Sim, a minha cruzinha plebiscitará sem pestanejo o portador do primeiro Bilhete de Identidade alguma vez emitido pelo novel Registo Civil deste País.
E a quem eventualmente me acuse de eleger um morto, um fantasma, uma assombração, um espectro, uma múmia – ouvirá de mim a defesa acusadora de o mesmo terem feito, em recentes anos, os meus contemporâneos – e por dois mandatos consecutivos. 



Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 21 de Janeiro, 2016

Ilustração obtida na net, com um grafismo laudatório característico da época

Edição de augusto mota 
 

20/01/2016

Texto transversal







Marmeleiro-do-Japão






Os arbustos isolados, ou em sebes, do Marmeleiro-do-Japão (Cydonia japonica) já estão a querer anunciar a Primavera e a florir em força, para encanto dos abelhões e de algumas, poucas, abelhas.

Edição e fotos de augusto mota
 

14/01/2016

Rosário breve



EXPEDIÇÃO




O pico da montanha reverbera no vidro nítido do ar-longe. De cá, mulas & homens, provisões & desejos. Mantimentos longamente acumulados na ideia. Planos que entretiveram vários invernos. Homens & animais em transe de libertação.
Na estalagem toda de madeira, esperam. Toda de madeira excepto a estrutura lareira-chaminé. A mesa longa & larga pode albergar dezasseis comedores, mas os animais comem lá fora.
A Primavera demora o tempo de que precisa. Eles, homens, também; elas, mulas, também. Há um cão: chama-se Rafael e não é moço já.
Os estalajadeiros são o casal Gottlieb: Hermann Gottlieb tem 67 anos e é gordo; Marlene Gottlieb (née Zweig) tem 62 anos e é magra. Dão-se bem, comungam o silêncio retórico de muitos anos de matrimónio construtivo.
Os homens são oito.
Gunther Schwarz é sueco, 28 anos, foi mecânico (de bicicletas).
Telemann Kaltz é alemão, 42, foi aviador (de copos, não de aviões).
Claudio Baresi é suíço do cantão italiano, tem 50 anos, foi pediatra.
Arménio Jordão, português de Sintra, 39, foi rico.
Jelavert Zubizarreta, basco e de 19 anos, estudou enfermagem.
Thomas Osgood é inglês de Yorkshire, 64, foi bibliotecário.
Oleg Mikhaylichenko é russo, 74, foi professor-primário.
E o sénior é Astor Nicopolidis, grego, 85, que não se recorda (ou pretende não recordar-se) do que fez & foi na vida activa.
(Nota do redactor: o tempo verbal que antecede todas e cada uma das oito profissões é o pretérito-perfeito. Não é mera coincidência nem estilístico descuido. É de propósito. E é de propósito porque a ser não voltam aquilo que foram. Estão, os oito, em modo & condição pré-terminal da doença-do-caranguejo. Dispõem de umas muito poucas semanas para que o cancro de vez os desembarace do fardo do nascimento. E é por isso que, supra, foi escrito: "em transe de libertação"). 
 

E os animais - também? Sim. Também. Chegando os dezasseis seres à montanha, as oito mulas tornar-se-ão libertas. Os homens acamparão para continuar à espera. Quando lá no sopé da majestosa elevação, não terão forças já para qualquer veleidade andina, alpínica ou himalaica. Mas também não há-de ser isso a desconfortá-los, ou frustrá-los, ou a (di)feri-los. Já só hão-de esperar a espera mesma. Estas coisas são de nenhuma volta a dar-lhes. Estes oito só diferem por terem decidido esperar andando.
Reuniram-se em Istambul, perto do sítio onde agora há poucos dias o sacana dum islamita-radical-suicida deflagrou uma dezena de turistas.
Demoraram-se dois dias & duas noites na antiga capital imperial que foi Constantinopla depois de haver sido Bizâncio. Depois vieram para esta página, perdão, para esta estalagem tão sossegadamente gerida pelos Gottlieb.
Esta noite, jantaram carne prensada, ervilhas, sopa de tomate & marzipã. Ei-los derredor-lume, uns tomando café (Gunther, Claudio, Thomas), outros havendo chá (Oleg, Jelavert), outros xarope-de-groseelha (Telemann, Astor) - e Arménio, vinho tinto aquecido. Antes de subirem para dormir, Claudio sugere que cada um escreva ao seu-alguém (se algum) uma última carta. As oito missivas terão Marlene & Hermann como fidelíssimos-depositários-da-puridade. Uns dizem que sim (Thomas, Telemann, Arménio, Gunther), um diz que não (Jelavert), Oleg & Astor respondem que vão pensar nisso.
Sabe-se agora (sete da manhã mais catorze minutos) que não será bi-octogonal a expedição terminal-humana. Não pelas mulas, que estão robustas. É que já só sete dos homens respiram - posto que Jelavert, sofrendo de uma marrada mortífera do desespero, se cortou os pulsos antes de afogá-los no balde que faz de autoclismo (é modesta, a albergaria gottliébica).   
Nem por isso cancelam a expedição. Ao ar-longe-vidro, a montanha chama-os, um-a-um, pelo nome próprio, à parecença do que nesta mesma redacção acima se fez aquando das enumerações relativas. E como à consciência acontece com a rápida ingestão de ar gelado pelas esponjas pulmonares, o eco amplia os homens: (...) arzzarzzarzz, altztzztzz,, ésiésiési, dãoãoão, zgudgudgud, xencoencoenco, ólidislidislidis (...).
Pacientes como budas, as mulas aproveitam para escarvar enquanto esperam, ao passo que o Rafael as azucrina fingindo que lhes morde as assaz delicadas canelas, cena que, apesar de tão divertida & tão preciosa, não constará da carta que por alguma razão Jelavert decidiu não escrever, de si, como se (ou)viu, nem eco deixando. 
    



Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 14 de Janeiro,  2016 

Fotos inéditas de Nuno Verdasca

Nuno Verdasca é co-autor, com João Gil, do livro «Olhares Montanheiros» - Fotografias e Histórias de Montanha, Imagens & Letras, Leiria, 2010. Ambos estiveram presentes num "Café com livros", em 2014. Ver reportagem dessa tertúlia em: http://palaciodasvarandas.blogspot.pt/2014/10/cafe-com-livros.html


Edição de augusto mota
   

10/01/2016

Soneto



AQUELA  QUE  TRAGO  DENTRO




Imagino-te à porta, à minha espera,
Numa casa que é só pensamento –
Venho de longe, duma outra era,
Mas tu vives para além do tempo.

Tu és a que foste, a que já era
Antes de o meu próprio nascimento,
E que minha alma sem saber trouxera
Nos sonhos que eu à noite invento.


Teu avental feito de ar ou linho,
Preso à linha grácil da cintura,
Os braços puxando-me para ti.

E na luz desses olhos adivinho
Uma emoção que tudo transfigura:
Foi sempre e só contigo que eu vivi.

                                                            António Simões


Edição e foto: augusto mota
Flor da Gloriosa (Gloriosa superba), Lírio-glorioso ou Lírio-trepador 


03/01/2016

Lengalenga




FILASTROCCA DI CAPODANNO

LENGALENGA DE ANO NOVO





Fammi gli auguri per tutto l’anno:
voglio un gennaio col sole d’aprile,
un luglio fresco, un marzo gentile;
voglio un giorno senza sera,
voglio un mare senza bufera;
voglio un pane sempre fresco,
sul cipresso il fiore del pesco;
che siano amici il gatto e il cane,
cha diano latte le fontane.
Se voglio troppo, non darmi niente,
dammi una faccia allegra solamente.

                                           
                                                       Gianni Rodari (1920 – 1980)


Manda-me os votos para todo o ano:
quero um Janeiro com o sol de Abril,
um Julho fresco, um Março gentil;
quero um dia sem fim de tarde,
quero um mar sem tempestade;
quero um pão sempre fresco,
no cipreste a flor de pessegueiro;
que sejam amigos o cão e o gato
e que até as fontes dêem leite.
Se quero muito, não me dês nada,
dá-me somente uma face alegre.



Gianni Rodari foi jornalista, escritor e poeta italiano, especializado em literatura infantil. Autor de imensas obras de grande sugestão pela capacidade e pelo rigor na utilização da palavra. Em português, existe, pelo menos, a tradução do seu livro «Favole al telefono» («Histórias ao telefone»).


Tradução e nota sobre o autor de Manuel Simões
Edição e foto de augusto mota
 
*** 
Do amigo Carlos Alberto Silva, professor, poeta e autor de livros para crianças, recebemos esta preciosa achega sobre o autor da "Lengalenga de Ano Novo":

Gostei muito do poema de Gianni Rodari, que não conhecia, embora tenha vários livros dele. Dos que foram traduzidos e publicados em Portugal, destaco a «Gramática da Fantasia», dado à estampa pela Caminho, em 1997. «...Aqui fala-se de alguns modos de inventar histórias para crianças e de ajudar as crianças a inventarem sozinhas as suas histórias...»

Tenho um exemplar, que uso na minha actividade de professor bibliotecário. É muito bom.

Outros títulos publicados cá, foram:
«Pequenos vagabundos», Editorial Caminho, 1986
«Zé Jasmim na Terra dos Aldrabões», Caminho, 1990
«Histórias ao Telefone», Editorial Teorema, 2006
«Novas Histórias ao Telefone», Teorema, 2007
«Alice entre as Gravuras», Dinalivro, 2008
«Animais sem Jardim Zoológico», Dinalivro, 2008
«Baralhando Histórias», Kalandraka, 2011
«O Que É Preciso?», Kalandraka, 2011
Tenho alguns destes títulos. Outros, existem nas bibliotecas do meu Agrupamento.
 
Gianni Rodari recebeu o prémio Hans Christian Andersen (o mais importante da Literatura Infantil), em 1970.
Um abraço amigo.
Carlos Alberto Silva