30/09/2016

As Salinas da Junqueira





A apresentação deste livro foi feita pelo Doutor Mário Moutinho, reitor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no dia 8 do mês de Setembro, em Monte Redondo, no âmbito da “Fesmonte 2016”. São as suas palavras que reproduzimos abaixo, ilustradas com fototografias de 1981, não incluídas na obra em apreço:

“É com muito gosto que aceitei o convite para apresentar uma nova obra sobre o património cultural da nossa área.
E digo Área porque reduzir este território a que estamos ligados, a uma, duas ou mesmo três freguesias, faz-nos esquecer que há alguns séculos havia apenas uma grande paróquia que, essa sim, correspondia a uma região com condições de existência sustentável para os seus habitantes.
Terra de agricultura, de produção de ferro, de comércio, de pinhais e terra de passagem.
Esta obra trata de uma riqueza local, certamente antiga, mas que no seguimento do fim da 1ª guerra mundial ganhou uma expressão de desenvolvimento, económico e tecnológico.

                                  
                                              O jornalista Afonso Cautela, do "Portugal Hoje", entrevistando o sr. José Rolo

AS SALINAS DA JUNQUEIRA:
Património natural e cultural
Jorge Carvalho Arroteia, Augusto Mota, João Moital
Leiria, CEPAE, 2016

A estrutura desta publicação contempla duas partes:
a primeira abarca aspectos diversos da exploração humana do sal, enquanto produto natural ligado à vida e à alimentação e à actividade humana, ao comércio e à indústria, bem como às condições locais da sua ocorrência, à exploração salineira e às condições que levaram ao abandono da produção. Para o efeito reúnem-se algumas notas que tendem a valorizar a dimensão geográfica e natural das Salinas da Junqueira no contexto da Orla Sedimentar Ocidental.
a segunda tem por base o texto de João Ferreira da Silva correspondente à descrição do Poço Salgado da Junqueira, completada por outros documentos que enaltecem o significado do complexo salineiro entretanto extinto.

No seu conjunto, atende:
– à dimensão técnica ligada à exploração e condições de fabrico do sal;
– à dimensão económica tal como nos é descrita num estudo realizado em 1961 pela Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos;
– à dimensão humana, relatada na primeira pessoa pelo seu proprietário, José Duarte Rolo;
– à dimensão paisagística assegurada pelas imagens deste empreendimento em diversas fases da sua laboração e após a primeira intervenção pública assegurada pela autarquia Municipal de Leiria.

                                                                  
                                                                                                        O sr. Rolo e a sua empregada Maria Ferreira

É pois um livro que nos dá a conhecer melhor a nossa área, e que poderá também servir de apoio para novas investigações.

Estamos agora num momento em que novamente se procuram soluções visando a conservação e valorização deste património.

A primeira tentativa coordenada pelo Museu do Casal de Monte Redondo num momento em que as salinas se degradavam a olhos vistos, chegou a receber apoio da CML e durante anos lá tiveram lugar importantes eventos culturais. Em boa hora foi refeito o telhado e outras obras que susterão a degradação, incluindo a limpeza das valas principais e secundárias.
Mas com o falecimento da Srª Dª Maria, mãos alheias ao bem público se encarregaram de destruir portas e janelas e demais atos de vandalismo. Face à recusa da CML para que lá se pudesse instalar uma família carente, a quem se resolveria o problema do alojamento, mas que também serviria pela sua simples presença de guarda das salinas, o Museu acabou por devolver oficialmente à Câmara as salinas por já não estarem reunidas condições para continuar a dar utilização e a manter as instalações face ao vandalismo.


                                                              Maria Ferreira e o sr. Rolo observam, sorridentes, uma  foto que lhes tirara numa visita anterior 

Infelizmente o tal viveiro também não foi solução para nada e foi com alegria que anos mais tarde vimos as Salinas serem abrangidas pelo Programa “Sal del Atlântico” – coordenado pelo “Grupo de Conservación de Hummedales Costeros” – Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências do Mar e Ambiente da Universidade de Cádiz. A valorização das salinas foi incluída no Programa de Iniciativa Comunitária FEDER/INTERREG III B – Espaço Atlântico (2004-2007).
Foi um projecto e uma realização da maior relevância mas que acabou por também se esgotar e de novo ficar ao abandono.
Agora parece existir de novo vontade de retomar acções que, com mais sustentabilidade, dêem nova vida às Salinas da Junqueira.

Que este livro seja um incentivo para que esse novo projecto chegue a bom porto e que o Património Cultural material e imaterial que as Salinas representam, não acabe por se perder definitivamente.

Resta agradecer aos seus autores e demais pessoas e entidades envolvidas, terem realizado mais este trabalho em prol da Cultura portuguesa.
Bem hajam”

Mário Moutinho

                                                                                *

Seguem-se fotos a cores, não incluídas neste livro, de pormenores da "Granja do Rolo", nome que, em letras recortadas,  encimava a cancela de entrada na propriedade:

 
Pormenor da turfa gretada e com vestígio de sal

                                                                             *
As fotos seguintes são uma pequena amostra das estruturas construídas pelo Município de Leiria, quando integrava o Programa de Iniciativa Comunitária FEDER/ITERREG  IIIB - Espaço Atlântico (2004-2007), estruturas hoje completamente abandonadas e deterioradas. As fotos são de 2006, altura em que fiz 25 fotografias a cores da valorização deste espaço, as quais foram publicadas, em Janeiro de 2007, no meu blogue «pilriteiro.multiply.com», o qual já não existe por o servidor ter deixado de operar na Europa. O livro «As Salinas da Junqueira» apenas reproduz 6 fotos desse conjunto, mas a preto e branco. Das fotos abaixo só as três primeiras estão reproduzidas no livro. Aqui se repetem, a cores, para dar uma pálida ideia do paraíso que se poderia ter feito daquele espaço:



Fotografias e edição: augusto mota
Os sublinhados a cor no texto do Doutor Mário Moutinho são da responsabilidade do editor


21/09/2016

Contra os canhões


ENCONTROS  DE  BOLSO





Junta-se um sem-fim de coisas nos bolsos. Cada um (não) sabe das suas. É preciso despejar os bolsos de vez em quando. Caso contrário, o acumulado toma-nos conta da vida.
Ia eu no comboio descendente. Meti a mão ao bolso à cata de uma afiadeira. Encontrei um lenço agora enxuto, resto mortal de um amor que deixou de valer a pena molhar. Encontrei a chave de um carro que não tenho há muitos anos por me ter esquecido de onde o estacionei. Encontrei uma unha que roí numa quinta-feira do ano passado. Encontrei o calor da minha mão. Encontrei um peixe que se tinha abrigado de não estar a chover. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz do meu Pai a dizer “há arroz de frango está no fogão”. Encontrei o arroz, mas não o meu Pai. Encontrei uma maneira diferente de escutar as árvores. Encontrei um pássaro desenhado a feltro azul por uma estrela de cinco pontas. Encontrei uma estrela de cinco pontas que era, a feltro encarnado, uma mão de menina. Encontrei uma carta impreterível do banco. Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro. Encontrei uma ponta de cigarro fumado por outra boca. Encontrei um jornal publicado antes de tu teres nascido. Encontrei duas folhas de árvore: a nervura de uma indicava a certeza da morte, a transparência da outra demonstrava a necessidade de nascermos. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz da minha Mãe a dizer “se não quiseres o arroz estrela ovos não sujes o fogão todo”. Encontrei a tatuagem do marinheiro que todos deveríamos ter sido. Encontrei um brilhozinho nos olhos sem olhos. Encontrei o mapa dos rios do sangue. Encontrei a visão aérea da solidão. Encontrei uma pulga que fazia poupanças há quinze anos para comprar um cão maior. Encontrei a fotografia que vê a minha irmã vestida de verde a olhar pela janela uma manhã sem remédio. 
Só não encontrei a afiadeira com que costumo aguçar o lápis que escreve estas histórias.


 


Crónica de Daniel Abrunheiro, in quinzenário «Trevim», Lousã, 15 de Setembro de 2016

Imagens - Em cima: "Jóvem à janela", óleo sobre tela de Salvador Dali, 1925. O modelo é a irmã mais nova do pintor, Ana Maria. 
Em baixo: um fragmento/pormenor do mesmo quadro, que dá ênfase ao mistério do pensamento da jóvem, perdido, talvez, entre a proximidade da líquida paisagem e o barco à vela, ao longe, que a poderá levar à aventura para outros e melhores horizontes.

Edição de augusto mota 



*

Um comentário pertinente:

Mais do que uma crónica este texto é um bom exemplo de microficção, em cujas águas o autor já há muito navega, pelo menos desde «O Preço da Chuva», Pé de Página Editores, Coimbra, 2006, obra que faz parte da extensa relação de autores portugueses contemporâneos de Microficção/Es crita Breve  Contemporâneas, organizada pela Biblioteca Municipal de Silves.
Mas também será de incluir alguns textos breves do seu livro «Cronicão», uma produção Publicenso, 2003.

“Encontros de Bolso” tem os ingredientes próprios da microficção que, segundo Lauro Zavala*, são: Brevidade, Diversidade, Cumplicidade, Fragmentariedade, Fugacidade e Virtualidade. Vejamos onde encontrar estes ingredientes em “Encontros de Bolso”:
Brevidade: cabe no espaço de uma página.
Diversidade: a natureza híbrida do seu conteúdo, que oscila entre um absurdo, algo surrealista, e um breve realismo do quotidiano familiar.
Cumplicidade: o leitor pode intervir na classificação do género literário do texto, achando, neste caso específico, que é mais microficção do que crónica. A classificação do género só é importante pelas expectativas que pode gerar no leitor.
Fragmentariedade: o texto pode ser lido e entendido pelos fragmentos, ou pormenores mais relevantes para cada leitor, de onde ser possível um entendimento diferente do texto daquele outro que o seu autor lhe quis atribuir. Pormenores que podem, então, adquirir um estatuto autónomo.
Fugacidade: está relacionada com a brevidade, mas, sobretudo, com a precisão, logo com a intensidade expressiva. Quanto maior a intensidade expressiva, tanto maior a brevidade possível do texto.
Virtualidade: tem a ver com os cibertextos, o que, originalmente, não é o caso deste, passando a sê-lo, apenas, a partir do momento em que a sua publicação ocupou o espaço virtual, que as novas tecnologias da comunicação nos proporcionam, quando o autor o republicou no se blogue “Canil do Daniel” ( http://canildodaniel.blogspot.pt/ ), no mesmo dia em que saiu no jornal. E agora, com a publicação neste blogue, mais virtualidade passa a ter.

Há uma simetria evidente na estrutura deste texto, marcada pela frase/fragmento Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro, que é o clímax do absurdo que paira em todo o texto, um achado pleno de uma originalidade desconcertante. Antes deste clímax temos o realismo do quotidiano familiar no "bilhete escrito com a voz do Pai":  “há arroz de frango está no fogão”. Depois temos o "bilhete escrito com a voz da Mãe": se não quiseres o arroz estrela ovos não sujes o fogão todo”. Repare-se no número de frases/fragmento entre o clímax do absurdo e os recados do Pai e da Mãe. Há uma repetição da estrutura simétrica do próprio texto, o qual termina com a tal inesperada surpresa, tão característica da microficção: no bolso foi encontrado um mundo de coisas e de vivências, excepto a afiadeira tão necessária ao autor para “aguçar o lápis que escreve estas histórias.”
Augusto Mota 



*Lauro Zavala, professor e investigador titular da Universidade Autónoma Metropolitana, de Xochimilco, México. É director da revista electrónica “El Cuento en Red”, especializada em estudos sobre a Microficção.