21/09/2016

Contra os canhões


ENCONTROS  DE  BOLSO





Junta-se um sem-fim de coisas nos bolsos. Cada um (não) sabe das suas. É preciso despejar os bolsos de vez em quando. Caso contrário, o acumulado toma-nos conta da vida.
Ia eu no comboio descendente. Meti a mão ao bolso à cata de uma afiadeira. Encontrei um lenço agora enxuto, resto mortal de um amor que deixou de valer a pena molhar. Encontrei a chave de um carro que não tenho há muitos anos por me ter esquecido de onde o estacionei. Encontrei uma unha que roí numa quinta-feira do ano passado. Encontrei o calor da minha mão. Encontrei um peixe que se tinha abrigado de não estar a chover. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz do meu Pai a dizer “há arroz de frango está no fogão”. Encontrei o arroz, mas não o meu Pai. Encontrei uma maneira diferente de escutar as árvores. Encontrei um pássaro desenhado a feltro azul por uma estrela de cinco pontas. Encontrei uma estrela de cinco pontas que era, a feltro encarnado, uma mão de menina. Encontrei uma carta impreterível do banco. Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro. Encontrei uma ponta de cigarro fumado por outra boca. Encontrei um jornal publicado antes de tu teres nascido. Encontrei duas folhas de árvore: a nervura de uma indicava a certeza da morte, a transparência da outra demonstrava a necessidade de nascermos. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz da minha Mãe a dizer “se não quiseres o arroz estrela ovos não sujes o fogão todo”. Encontrei a tatuagem do marinheiro que todos deveríamos ter sido. Encontrei um brilhozinho nos olhos sem olhos. Encontrei o mapa dos rios do sangue. Encontrei a visão aérea da solidão. Encontrei uma pulga que fazia poupanças há quinze anos para comprar um cão maior. Encontrei a fotografia que vê a minha irmã vestida de verde a olhar pela janela uma manhã sem remédio. 
Só não encontrei a afiadeira com que costumo aguçar o lápis que escreve estas histórias.


 


Crónica de Daniel Abrunheiro, in quinzenário «Trevim», Lousã, 15 de Setembro de 2016

Imagens - Em cima: "Jóvem à janela", óleo sobre tela de Salvador Dali, 1925. O modelo é a irmã mais nova do pintor, Ana Maria. 
Em baixo: um fragmento/pormenor do mesmo quadro, que dá ênfase ao mistério do pensamento da jóvem, perdido, talvez, entre a proximidade da líquida paisagem e o barco à vela, ao longe, que a poderá levar à aventura para outros e melhores horizontes.

Edição de augusto mota 



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Um comentário pertinente:

Mais do que uma crónica este texto é um bom exemplo de microficção, em cujas águas o autor já há muito navega, pelo menos desde «O Preço da Chuva», Pé de Página Editores, Coimbra, 2006, obra que faz parte da extensa relação de autores portugueses contemporâneos de Microficção/Es crita Breve  Contemporâneas, organizada pela Biblioteca Municipal de Silves.
Mas também será de incluir alguns textos breves do seu livro «Cronicão», uma produção Publicenso, 2003.

“Encontros de Bolso” tem os ingredientes próprios da microficção que, segundo Lauro Zavala*, são: Brevidade, Diversidade, Cumplicidade, Fragmentariedade, Fugacidade e Virtualidade. Vejamos onde encontrar estes ingredientes em “Encontros de Bolso”:
Brevidade: cabe no espaço de uma página.
Diversidade: a natureza híbrida do seu conteúdo, que oscila entre um absurdo, algo surrealista, e um breve realismo do quotidiano familiar.
Cumplicidade: o leitor pode intervir na classificação do género literário do texto, achando, neste caso específico, que é mais microficção do que crónica. A classificação do género só é importante pelas expectativas que pode gerar no leitor.
Fragmentariedade: o texto pode ser lido e entendido pelos fragmentos, ou pormenores mais relevantes para cada leitor, de onde ser possível um entendimento diferente do texto daquele outro que o seu autor lhe quis atribuir. Pormenores que podem, então, adquirir um estatuto autónomo.
Fugacidade: está relacionada com a brevidade, mas, sobretudo, com a precisão, logo com a intensidade expressiva. Quanto maior a intensidade expressiva, tanto maior a brevidade possível do texto.
Virtualidade: tem a ver com os cibertextos, o que, originalmente, não é o caso deste, passando a sê-lo, apenas, a partir do momento em que a sua publicação ocupou o espaço virtual, que as novas tecnologias da comunicação nos proporcionam, quando o autor o republicou no se blogue “Canil do Daniel” ( http://canildodaniel.blogspot.pt/ ), no mesmo dia em que saiu no jornal. E agora, com a publicação neste blogue, mais virtualidade passa a ter.

Há uma simetria evidente na estrutura deste texto, marcada pela frase/fragmento Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro, que é o clímax do absurdo que paira em todo o texto, um achado pleno de uma originalidade desconcertante. Antes deste clímax temos o realismo do quotidiano familiar no "bilhete escrito com a voz do Pai":  “há arroz de frango está no fogão”. Depois temos o "bilhete escrito com a voz da Mãe": se não quiseres o arroz estrela ovos não sujes o fogão todo”. Repare-se no número de frases/fragmento entre o clímax do absurdo e os recados do Pai e da Mãe. Há uma repetição da estrutura simétrica do próprio texto, o qual termina com a tal inesperada surpresa, tão característica da microficção: no bolso foi encontrado um mundo de coisas e de vivências, excepto a afiadeira tão necessária ao autor para “aguçar o lápis que escreve estas histórias.”
Augusto Mota 



*Lauro Zavala, professor e investigador titular da Universidade Autónoma Metropolitana, de Xochimilco, México. É director da revista electrónica “El Cuento en Red”, especializada em estudos sobre a Microficção.   



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