ENCONTROS DE BOLSO
Junta-se
um sem-fim de coisas nos bolsos. Cada um (não) sabe das suas. É preciso
despejar os bolsos de vez em quando. Caso contrário, o acumulado toma-nos conta
da vida.
Ia
eu no comboio descendente. Meti a mão ao bolso à cata de uma afiadeira.
Encontrei um lenço agora enxuto, resto mortal de um amor que deixou de valer a
pena molhar. Encontrei a chave de um carro que não tenho há muitos anos por me
ter esquecido de onde o estacionei. Encontrei uma unha que roí numa
quinta-feira do ano passado. Encontrei o calor da minha mão. Encontrei um peixe
que se tinha abrigado de não estar a chover. Encontrei um bilhete manuscrito
com a voz do meu Pai a dizer “há arroz de
frango está no fogão”. Encontrei o arroz, mas não o meu Pai. Encontrei uma maneira
diferente de escutar as árvores. Encontrei um pássaro desenhado a feltro azul
por uma estrela de cinco pontas. Encontrei uma estrela de cinco pontas que era,
a feltro encarnado, uma mão de menina. Encontrei uma carta impreterível do
banco. Encontrei a peça principal de uma máquina do futuro. Encontrei uma ponta
de cigarro fumado por outra boca. Encontrei um jornal publicado antes de tu
teres nascido. Encontrei duas folhas de árvore: a nervura de uma indicava a
certeza da morte, a transparência da outra demonstrava a necessidade de
nascermos. Encontrei um bilhete manuscrito com a voz da minha Mãe a dizer “se não quiseres o arroz estrela ovos não
sujes o fogão todo”. Encontrei a tatuagem do marinheiro que todos
deveríamos ter sido. Encontrei um brilhozinho nos olhos sem olhos. Encontrei o
mapa dos rios do sangue. Encontrei a visão aérea da solidão. Encontrei uma
pulga que fazia poupanças há quinze anos para comprar um cão maior. Encontrei a
fotografia que vê a minha irmã vestida de verde a olhar pela janela uma manhã
sem remédio. Só não encontrei a afiadeira com que costumo aguçar o lápis que escreve estas histórias.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in quinzenário «Trevim», Lousã, 15 de Setembro de 2016
Imagens - Em cima: "Jóvem à janela", óleo sobre tela de Salvador Dali, 1925. O modelo é a irmã mais nova do pintor, Ana Maria.
Em baixo: um fragmento/pormenor do mesmo quadro, que dá ênfase ao mistério do pensamento da jóvem, perdido, talvez, entre a proximidade da líquida paisagem e o barco à vela, ao longe, que a poderá levar à aventura para outros e melhores horizontes.
Imagens - Em cima: "Jóvem à janela", óleo sobre tela de Salvador Dali, 1925. O modelo é a irmã mais nova do pintor, Ana Maria.
Em baixo: um fragmento/pormenor do mesmo quadro, que dá ênfase ao mistério do pensamento da jóvem, perdido, talvez, entre a proximidade da líquida paisagem e o barco à vela, ao longe, que a poderá levar à aventura para outros e melhores horizontes.
Edição de augusto mota
*
Um comentário pertinente:
Mais
do que uma crónica este texto é um bom exemplo de microficção, em cujas águas o
autor já há muito navega, pelo menos desde «O Preço da Chuva», Pé de Página
Editores, Coimbra, 2006, obra que faz parte da extensa relação de autores
portugueses contemporâneos de Microficção/Es crita Breve Contemporâneas, organizada pela Biblioteca Municipal de Silves.
Mas
também será de incluir alguns textos breves do seu livro «Cronicão», uma produção Publicenso, 2003.
“Encontros de Bolso” tem os ingredientes próprios da microficção que, segundo
Lauro Zavala*, são: Brevidade, Diversidade, Cumplicidade, Fragmentariedade, Fugacidade
e Virtualidade. Vejamos onde encontrar estes ingredientes em “Encontros de
Bolso”:
Brevidade: cabe no
espaço de uma página.
Diversidade: a natureza híbrida do seu conteúdo, que oscila entre
um absurdo, algo surrealista, e um breve realismo do quotidiano familiar.
Cumplicidade: o leitor pode intervir na classificação do género
literário do texto, achando, neste caso específico, que é mais microficção do que
crónica. A classificação do género só é importante pelas expectativas que pode
gerar no leitor.
Fragmentariedade: o texto pode ser lido e
entendido pelos fragmentos, ou pormenores mais relevantes para cada leitor, de
onde ser possível um entendimento diferente do texto daquele outro que o seu
autor lhe quis atribuir. Pormenores que podem, então, adquirir um estatuto autónomo.
Fugacidade:
está
relacionada com a brevidade, mas, sobretudo, com a precisão, logo com a
intensidade expressiva. Quanto maior a intensidade expressiva, tanto maior a
brevidade possível do texto.
Virtualidade:
tem
a ver com os cibertextos, o que, originalmente, não é o caso deste, passando a
sê-lo, apenas, a partir do momento em que a sua publicação ocupou o espaço
virtual, que as novas tecnologias da comunicação nos proporcionam, quando o
autor o republicou no se blogue “Canil do Daniel” ( http://canildodaniel.blogspot.pt/ ),
no mesmo dia em que saiu no jornal. E agora, com a publicação neste blogue,
mais virtualidade passa a ter.
Há
uma simetria evidente na estrutura deste texto, marcada pela frase/fragmento “Encontrei a peça principal de uma máquina
do futuro”, que é o clímax do
absurdo que paira em todo o texto, um achado pleno de uma originalidade
desconcertante. Antes deste clímax temos o realismo do quotidiano familiar no
"bilhete escrito com a voz do Pai": “há arroz de frango está no fogão”.
Depois temos o "bilhete escrito com a voz da Mãe": “se não quiseres o arroz estrela ovos não
sujes o fogão todo”. Repare-se no número de frases/fragmento entre o clímax do absurdo e os recados do Pai
e da Mãe. Há uma repetição da estrutura simétrica do próprio texto, o qual
termina com a tal inesperada surpresa, tão característica da microficção: no bolso
foi encontrado um mundo de coisas e de vivências, excepto a afiadeira tão necessária ao autor para
“aguçar o lápis que escreve estas histórias.”
Augusto Mota
*Lauro
Zavala, professor e investigador titular da Universidade Autónoma
Metropolitana, de Xochimilco,
México. É director da revista electrónica “El Cuento en Red”,
especializada em estudos
sobre a Microficção.
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