MADRIGAL
Voltei
a despertar sem alarme e a levantar-me às seis da manhã. Durante o
aparentemente infindável Verão, tornou-se-me impossível tal madrugação. Estou
agora todavia pronto a retomar a vocação de guarda-matinas. É outra higiene
mental, garanto-vo-lo sem tretas. É vocação erma & linda.
A
cru, desjejuo a catacumba gástrica com um copo de água tépida. Deixo ferver no
vazio. A nutrição mastigante tem tempo. O mundo da Casa renasce entretanto em
tal singeleza, que nem de palavras precisa. Nem rádio, nem televisão, nem
computador. Para que raio me serviria saber da rotineira balbúrdia dos acessos
viários a Lisboa e Porto, igual todos os dias com seus toques por trás à
Rotunda do Relógio e/ou à Fábrica de Produtos Estrela? E dos famigerados
“mercados” abrindo em baixo hoje o que ontem fecharam mais abaixo ainda? Em vez
disso, passarada trabalhando música lá fora, isso sim. Descerro o estore, deixo
entrar o mercúrio frescote da primeira linha d’alva. Da cadeira do quarto, faço
por revertebrar as roupas quebradas, demando os sapatos desirmanados,
esqueço-me dos óculos afinal já postos ao norte da tromba.
As
decisões começam impondo-se-me já, porém. Raspar a barba hoje – sim ou não?
Calças de lavado? Se sim, as azuis ou as castanhas? Nestum ou resto da sandes de atum? E até que seja meio-dia –
Aquilino ou Cesário? Tudo opções com algum aparato de complexidade, que adio
para depois da chuveirada na carcaça.
Descaso-me.
À face oriental da ponte, sustenho a passada para arbitrar uma verbosa porfia entre
vendedeiras. Ao que percebo, receiam ambas (ou ambas desejam muito) vir a ser
comadres: o filho da das couves & a filha da das fanecas etc.-&-tal já
com bambino feito e a caminho. Alvitro-lhes que o melhor ainda seja esperar por
quinta-feira, dia em que o Jornal sai com a minha decisão por escrito. Acham-me
sensato. Isso maravilha-me: serão talvez as duas únicas mulheres do mundo a
achá-lo-me. Maravilhado, desando & sigo.
Os
expressos da Rodoviária disparam já à rosa-dos-ventos-cardeais. O de Lisboa
leva um pouco mais de maralhal do que os outros. O de Abrantes leva a velha dos
tremoços. O de Santarém acarreta sete ucranianos que vão para as obras das
barreiras mas, pelo que (não) ouvi dizer, se calhar vão mas é de passeio à
senhora-da-asneira. O de Coimbra não me leva.
Aos
poucos, a terriola fervilha quanto pode. Já há velhas-do-galão-margarina-no-pão
pelas pastelarias. Toxiarrumadores esbracejam já ao níquel no baldio que,
dizem, a Câmara não tarda muito a eriçar de parquímetros mamões. O cónego da Sé
paquidermandarilha com o breviário do Record.
Não
deram ainda as oito & meia, mas os panos de relva do Jardim, rociados ainda
do refrigério nocturno, surgem já esmaltados do sol salvífico. A estátua do
Poeta Oficial, devidamente cagada das pombas à imitação do que lhe fizeram à
Obra as moscas, boceja de bronze na praça das arcadas. Sob estas, tomam anis os
grossistas e ponche os retalhistas: de riscado, de tabaco, de faianças, de
retrosaria, de pitrol & de outros alternes com ou sem kizom(pim)ba.
Ao
quarto-para-as-dez, a madrugada é já uma improbabilidade crepuscular. O nervo
do dia tempera o aço da jorna. Um cantoneiro, furioso por ter tropeçado na
tampa de saneamento que o madraço do gajo das Águas deixou esbeiçada de
esguelha, vai ali à Alice Zarolha amandar-lhe c’um branco só por causa das
merdas. Da gaiola aberta do andaime, o pintor adere esfregaço de tinta areada a
uma empena de terceiro-andar. De patitas carcomidas pela própria dejecção,
pombas coxeiam como polícias reformados. Passa mais além, de rolos-projectos à
sovaqueira, aquele empreitovigarista que é amigalhaço do ex-cunhado do vereador
que tem a mulher metida naquilo do Gás. Carrinhos-bebés passeiam
paridas-solteiras. Do Anselmo das Bifanas mana um fio maravilhoso de petinga frita
agorinha-mesmo que nenhuma perfumaria de Paris pode alguma vez emular.
Parece
impossível: onz&quarent&sete são já elas. Campeio por berma-rio o
retorno ao casebre. Na passadeira, deixo passar, que vai doida, uma ambulância
de tal maneira aos uivos que deve ser um lobo a ir ao guiador. Quando meto a
chave à ranhura, soa a sirena da Cerâmica. Que fazer primeiro? A crónica ou o
almoço? Decido-me pelo raspar da barba, que hoje pode muito bem ainda vir hora
de ser visto pela Ermelinda (erma, linda), a quem nem Cesário nem Aquilino
aquentam ou arrenfentam, à semelhança do deitar-cedo-e-cedo-erguer, que a gente
um dia é toda morrer, case-se ou não o filho da das couves com a faneca da
filha da outra.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 15 de Setembro de 2016
Edição e fotos de Augusto Mota
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