15/09/2016

Rosário breve


MADRIGAL





Voltei a despertar sem alarme e a levantar-me às seis da manhã. Durante o aparentemente infindável Verão, tornou-se-me impossível tal madrugação. Estou agora todavia pronto a retomar a vocação de guarda-matinas. É outra higiene mental, garanto-vo-lo sem tretas. É vocação erma & linda.
A cru, desjejuo a catacumba gástrica com um copo de água tépida. Deixo ferver no vazio. A nutrição mastigante tem tempo. O mundo da Casa renasce entretanto em tal singeleza, que nem de palavras precisa. Nem rádio, nem televisão, nem computador. Para que raio me serviria saber da rotineira balbúrdia dos acessos viários a Lisboa e Porto, igual todos os dias com seus toques por trás à Rotunda do Relógio e/ou à Fábrica de Produtos Estrela? E dos famigerados “mercados” abrindo em baixo hoje o que ontem fecharam mais abaixo ainda? Em vez disso, passarada trabalhando música lá fora, isso sim. Descerro o estore, deixo entrar o mercúrio frescote da primeira linha d’alva. Da cadeira do quarto, faço por revertebrar as roupas quebradas, demando os sapatos desirmanados, esqueço-me dos óculos afinal já postos ao norte da tromba.
As decisões começam impondo-se-me já, porém. Raspar a barba hoje – sim ou não? Calças de lavado? Se sim, as azuis ou as castanhas? Nestum ou resto da sandes de atum? E até que seja meio-dia – Aquilino ou Cesário? Tudo opções com algum aparato de complexidade, que adio para depois da chuveirada na carcaça.
Descaso-me. À face oriental da ponte, sustenho a passada para arbitrar uma verbosa porfia entre vendedeiras. Ao que percebo, receiam ambas (ou ambas desejam muito) vir a ser comadres: o filho da das couves & a filha da das fanecas etc.-&-tal já com bambino feito e a caminho. Alvitro-lhes que o melhor ainda seja esperar por quinta-feira, dia em que o Jornal sai com a minha decisão por escrito. Acham-me sensato. Isso maravilha-me: serão talvez as duas únicas mulheres do mundo a achá-lo-me. Maravilhado, desando & sigo.
Os expressos da Rodoviária disparam já à rosa-dos-ventos-cardeais. O de Lisboa leva um pouco mais de maralhal do que os outros. O de Abrantes leva a velha dos tremoços. O de Santarém acarreta sete ucranianos que vão para as obras das barreiras mas, pelo que (não) ouvi dizer, se calhar vão mas é de passeio à senhora-da-asneira. O de Coimbra não me leva.
Aos poucos, a terriola fervilha quanto pode. Já há velhas-do-galão-margarina-no-pão pelas pastelarias. Toxiarrumadores esbracejam já ao níquel no baldio que, dizem, a Câmara não tarda muito a eriçar de parquímetros mamões. O cónego da Sé paquidermandarilha com o breviário do Record.
Não deram ainda as oito & meia, mas os panos de relva do Jardim, rociados ainda do refrigério nocturno, surgem já esmaltados do sol salvífico. A estátua do Poeta Oficial, devidamente cagada das pombas à imitação do que lhe fizeram à Obra as moscas, boceja de bronze na praça das arcadas. Sob estas, tomam anis os grossistas e ponche os retalhistas: de riscado, de tabaco, de faianças, de retrosaria, de pitrol & de outros alternes com ou sem kizom(pim)ba.
Ao quarto-para-as-dez, a madrugada é já uma improbabilidade crepuscular. O nervo do dia tempera o aço da jorna. Um cantoneiro, furioso por ter tropeçado na tampa de saneamento que o madraço do gajo das Águas deixou esbeiçada de esguelha, vai ali à Alice Zarolha amandar-lhe c’um branco só por causa das merdas. Da gaiola aberta do andaime, o pintor adere esfregaço de tinta areada a uma empena de terceiro-andar. De patitas carcomidas pela própria dejecção, pombas coxeiam como polícias reformados. Passa mais além, de rolos-projectos à sovaqueira, aquele empreitovigarista que é amigalhaço do ex-cunhado do vereador que tem a mulher metida naquilo do Gás. Carrinhos-bebés passeiam paridas-solteiras. Do Anselmo das Bifanas mana um fio maravilhoso de petinga frita agorinha-mesmo que nenhuma perfumaria de Paris pode alguma vez emular.
Parece impossível: onz&quarent&sete são já elas. Campeio por berma-rio o retorno ao casebre. Na passadeira, deixo passar, que vai doida, uma ambulância de tal maneira aos uivos que deve ser um lobo a ir ao guiador. Quando meto a chave à ranhura, soa a sirena da Cerâmica. Que fazer primeiro? A crónica ou o almoço? Decido-me pelo raspar da barba, que hoje pode muito bem ainda vir hora de ser visto pela Ermelinda (erma, linda), a quem nem Cesário nem Aquilino aquentam ou arrenfentam, à semelhança do deitar-cedo-e-cedo-erguer, que a gente um dia é toda morrer, case-se ou não o filho da das couves com a faneca da filha da outra.





Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 15 de Setembro de 2016
Edição e fotos de Augusto Mota 
 

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