30/03/2013

Soneto


O quarto em desordem


 

Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor


que não sabe como é feita: amor,
na quintessência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar


a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,


verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.


Carlos Drummond de Andrade, in «Fazendeiro do Ar», 1952-1953.

in «FAZENDEIRO DO AR & POESIA ATÉ AGORA», 2ª edição, p. 549, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1955.

foto: augusto mota / centro de uma rosa Madame Meilland 

17/03/2013

 
a terra não esquece
 
 
 


é um punhado de terra
que apanhei no campo –
tem o pó dos mortos
e o húmus do sonho;
os passos dos carrascos
ressoam lá dentro
nos torrões castanhos,
e o uivo do vento;
ouvem-se as crianças
voando alto
e o silêncio dos vermes
ganhando asas –
a sombra das nuvens,
o voo do milhafre,
tudo regista
a sua memória;
e o sangue caído
do corpo dos justos
ainda goteja
em seus labirintos;
a seca e a sede,
a chuva e o choro,
o que por ela passou
a terra não esquece –
e tu que a pisas
ou prendes nos dedos,
e tu que me lês
não esqueças também.

 

António Simões, 1983
 
foto: augusto mota



 

14/03/2013

Sonetos da Tasmânia


um solene alerta de minha Musa
 

 
                                             
 cuidado com o soneto”, diz-me a musa,
você,  ó Príncipe, é intrigante
na forma tão ligeira como usa,
em excesso, o modo aliterante;
 
esse frasear faz a forma confusa,
(eu própria alitero neste instante…);
meu caro, um bom poeta não abusa
desses artifícios; bom, passemos adiante:
 
sugiro que releia Sá de Miranda,
veja como ele, senhoril, comanda
a textura do verso na cadência certa;
 
e recorde Camões, Florbela, Antero,
e o seu Shakespeare, que eu também venero,
esteja alerta, Príncipe, esteja alerta”.
 
 
A. Inocêncio Príncipe
 
ilustração: pintura de Vladimir Kush


Rosário Breve


Tresloucada doença prolongada

 Os jornais de antigamente chamavam “tresloucado acto” ao suicídio. Quando no activo da profissão, nunca fui muito amigo de noticiar suicídios. Talvez a minha repugnância pelo tema derivasse do respeito (e do temor) por essa máxima privacidade que é a terminação auto-infligida.
Segunda-feira passada, os jornais parangonavam mais uma tragédia portuguesa desse teor. Um canalizador desempregado de 42 anos atirou-se para um poço aberto. A diferença está em que arrastou com ele o filho, menino de tão-só dois anos de idade. Foi numa aldeia de Viana do Castelo.
Parece moda moderna, esta de precipitar os próprios filhos no reverso do futuro. Acto e facto pungem e consternam em acerbidade aspérrima a todo quem não estiver embrutecido de vez. E fazem pensar toda a pessoa a quem não apenas o pente concorra à cabeça.
Não me resulta difícil, franca e infelizmente, ver naquele poço sem cobertura o pélago da selvajaria hipercapitalista do nosso tempo. A voracidade do Deus-Dinheiro revela-se cada vez mais mortífera. A vida pessoal, esse tesouro portátil que só se gasta uma vez, deixou de pesar na balança de um prato só dos mandadores. Daí que eu considere, o mais sinceramente, o mais acusadoramente, que quem matou aquele pai e aquele filho tenha sido o Governo da Nação.
É peregrina, esta minha ideia?
É tola, esta minha raiva?
É desajustada, tal minha arrelia?
Seja. Seja. Seja.
Mas.
Mas algo tem de ser feito para que o desassossego contagie, também, os criminosos da Alta-Finança. Para que a intranquilidade se aposse, também, dos corruptores da Banca. Para que o medo erice, também, o espinhaço dos bastardos adoradores do ouro.
Aquela aldeia de Viana do Castelo é Portugal todo: sinédoque tão triste quão real. O café em que fiavam a bica àquele canalizador sem esperança é o café a que todos vamos. E aquele poço a céu-aberto é deveras o que vos disse que é.
Os jornais de antigamente chamavam “doença prolongada” ao cancro. Eu não. Eu chamo “doença prolongada” à matilha governamental. E doença tão prolongada, que me não parece seja curável enquanto o solo pátrio não estiver juncado de pequeninos cadáveres de crianças que cometeram, sem no saber, o “tresloucado acto” de nascer em Viana do Castelo, isto é, em Portugal.
 
Crónica nº 300 de Daniel Abrunheiroin "O Ribatejo", de 14.03.2013

10/03/2013

Sonetos da Tasmânia

 
Imprecação aos homens sem h

 
 
 
 

a tasmanian credit rating agency
publicou  notícia que brado dará:
esses homenzitos, tal como os descrevi,1
nem sequer o agazito2 mantêm já:
são apenas ómens, sem direito a h,
sem esse h de humano, de honra imaculada;
gente de vistas  curtas  e tortas, claro está,
seu cérebro vazio é um tremendo nada;
seu discurso contraditório, arrogante,
de onde a compaixão há muito se sumiu,
roça, robótico, a crista do instante,
num registo irregular, impessoal e frio;
       perante  tais notícias da tasmânia,
       é urgente pôr fim a tanta insânia.
 
 
 A. Inocêncio Príncipe
 
 (nota: este poema observa a forma tradicional do soneto inglês)
 
1   ver soneto imprecação aos homens com h pequeno
      2  -  h pequeno
 
foto: augusto mota

08/03/2013

Sonetos da Tasmânia

 
imprecação aos homens com h pequeno
 

 
 
 
que homens são estes que  do Homem
não têm um claro e justo entendimento,
pois de seus irmãos que ao relento dormem,
pensam que o ar lhes serve de casa e alimento;
 
jamais o remorso ou dúvida os consomem,
opacos ao mais elementar entendimento,
e sobre colchões de notas duplas dormem
no alcatifado conforto de seu vencimento;
 
auferem  num mês o que em mil anos
os de baixa reforma jamais alcançarão;
alheios e aéreos, a gula grosseira os guia –
 
insensatos, inscientes da dor e danos
que causaram e causam a seu  infeliz irmão,
são fruto afinal  de  falsa democracia.
 
A.  Inocêncio Príncipe
 
foto: augusto mota