30/04/2013

as uvas de Labéria Gala / 3 excertos

 
 
 
 
(…)
 
21
exausta depois da chama divina incendiar
o seu espírito adormece agitada labéria
flamínia vinda das longas distâncias do sul
no jardim escondido de quem passa na rua
deserta febril prende a manta sobre o corpo
tão ínfimo da mulher virgem e maternal
 
22
encanto da voz como se fora um feitiço
chamando a miraculada presença do deus
entre os homens de esperanças adiadas
e desencantos vários no odor da resina
em chama viva e lenta como relâmpago
flamejante eras tu a doce mensageira
 
23
o sol despontava nos vinhedos de colipo
os cachos doirados e escuros despertos
como se um milagre fosse da criação
a bênção súbita nas suaves colinas
que abraçam o rio e as suas águas
frescas modulando a terra e as penhas
 
(…)
 
Orlando Cardoso, in «as uvas de Labéria Gala»
Obra distinguida com o 1º Prémio do Concurso de Literatura do Instituto Politécnico de Leiria (Categoria de Poesia) - 2007. Edição IPL , 2008
Foto e manipulação cromática: Augusto Mota
 
 
 
 
 
 
LIBERDADE


Chegaste com um atraso de anos
à minha ânsia de perceber
a complexa trama dos enganos.
Sabia-te como a chuva de Verão,
contigo esperava sempre renascer
quando o cheiro da terra chega ao coração.
Eras a minha sombra, o som
essencial da palavra por dizer,
a brisa prometida, o inesperado dom.
Como vento ligeiro, tocaste ao de leve
a natural euforia do amanhecer.
E, fugidia, de ti ficou sinal tão leve.
 
 
Poema: Manuel Simões, Abril de 2013
Ilustração: quadro de Dorindo Carvalho
 

25/04/2013

Rosário Breve


Brava maravilha
 
 
 

 Sepultei o meu Pai no exacto dia em que a Revolução dos Cravos fez vinte anos. Ambos mortos a essa data, revolução e ele. Tinha então a primeira das minhas filhas quatro meses e oito dias: a transmissão estava em marcha.
Um Pai não morre – os filhos é que se perdem dele. Deve-se isto ao facto de a morte ser apenas deixar de estar, não deixar de ser. Creio nisto. (Sim: não apenas descrenças me animam, da vida, o mote e as voltas.)
Dezanove anos são ora cumpridos sobre esse dia em que não choveu. Há um ano, portanto, que é maior de idade a minha orfandade patriarcal: já pode votar. Tenho sido bom eleitor: perdi-me da minha Mãe fez este Março dois anos. Nascera-me todavia entre os dois óbitos uma outra menina: a transmissão seguia (e segue) marchando. A vida pode ater-se; a vida pode conter-se – mas nunca se detém. Brava maravilha é que assim seja.
Escrevo estas linhas a um domingo. A longa ferida do Inverno parece sarada. É pelo cair da tarde. Pouca gente por ruas e praças. Há mais pombos do que pessoas. Um que outro cão vadiando pela temporalidade desertada como filósofos existencialistas de cunho católico à la Gabriel Marcel. Tenho moedas, vou ao Café da Rosa poetar as minhas crónicas patetices decassílabas. Em casa, a mulher penelopa a miríade têxtil do bordado aceso: sou dela o pretendente único, Ulisses de viagem nenhuma. (Alguém vomitou no fontanário de que já não mana a água que era de todos. Por onde congestion’andará a cirrose desse anónimo roxeador de fontes em pedra?)
Já a noite urde (arde) aos poucos a sua autoridade invencível, já dela o manto pipila estrelas de robe de mágico. Como aparado crescente de unha, já a velha Lua se faz numismática no argênteo firmamento. É tudo (ele)mental – sem ansiedade, sem esperança, sem dívida e sem remissão. É tudo muito bonito, também. Arrefeceu.
Sim, também o deserto é formoso. Sabes, aquela areia em ondas como o mar em dunas estriadas à espuma do vento, à escuma dos dias/anos/décadas, não tarda séculos, um que outro milénio como esses cães por essas praças e ruas vadiando, existenciais, o domingo.
Nenhuma quimera e nenhuma utopia. Onde foi a retrosaria, é hoje a agência bancária. Onde a livraria, hoje uma seita-maná qualquer. Onde a infância, hoje esta ferrugem úrica nas dobradiças de rachada cartilagem. As filhas crescem-me, porém.
Leva-me (ou traz-me) esta derradeira verificação, em nave (ou neve) do Tempo, à antevéspera do passamento do meu Velho. Levara-o eu ao hospital. Já a terminação lhe esbofeteava o semblante: era como um cego sem lotaria que apregoar, quanto mais vender. Deitado no lençol impessoal tatuado a carimbo (H.U.C.), regougava ele, como um cisne de asas quebradas, a respiração muito afadigada. Olhei-o muito, que me não via. Tinha os lábios causticados da febre de tantos anos terçãos e malsãos. Tinha a boca enlameada a branco do pó de tantos comprimidos sem remédio. Tirei-lhe a placa, fui lavá-la, remeti-lha na boca que já não dizia o meu caminho. Olhei p’la janela da enfermaria (enfer, Marie!) como ora olho as linhas que lhe/vos escrevo. Precisei de ir-me embora. Baixei-me ao ouvido dele, disse-lhe: Pai, amanhã volto. Disse-me ele: Eu também.
Até hoje.   
 
 
Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 25 de Abril de 2013
Foto de Augusto Mota

09/04/2013

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