Depois do esquecimento
é o nada
às vezes a flor do remorso
a lágrima tardia
o silêncio.
Luís Serrano
in
«Quando se apagam as cerejeiras», Chiado
Editora, Lisboa, Julho de 2012, p. 15.
Foto de Augusto Mota / centro de uma flor da aboboreira Manteiga, Agosto 2012.
Para comemorar os 50 anos de vida literária do autor, a
Chiado Editora, com o apoio da Universidade de Aveiro, acaba de editar esta
obra de Luís Serrano, que ele dedica à memória do Fernando Assis Pacheco e do João
Vário.
A propósito desta mais
recente obra poética do autor, transcrevemos, com os devidos
agradecimentos, a apreciação crítica de Manuel Simões, publicada no «As Artes Entre as Letras», de 11 de
Julho de 2012:
A POESIA RESISTE À LEI DA MORTE
(A PROPÓSITO DE “QUANDO SE APAGAM AS CEREJEIRAS”, DE LUÍS SERRANO)
Quando se Apagam as Cerejeiras (Chiado Editora, 2012), título do
mais recente livro de poesia de Luís Serrano – e que com ele se celebram 50
anos de vida literária do autor – é uma belíssima metáfora cuja amplitude
reflecte um discurso que, na sua globalidade, aflora sobretudo acentos
crepusculares. Não é, pois, por acaso que este corpo textual se constrói a
partir de elegias a poetas que marcaram o nosso tempo (Manuel Amaral, Eugénio
de Andrade, Fernando Assis Pacheco, com explícitas referências a Rilke, por
exemplo) ou da representação de obras artísticas, com predilecção pela pintura
ou escultura mas na maior parte dos casos pela música, de que o requiem
constitui composição privilegiada pelas emoções que alguns exemplos ilustres
não podem deixar de transmitir, tornando-se assim matéria de poesia.
Nesta
organização textual em que parece encontrar-se subjacente o triunfo da morte,
este elemento está porém em contraposição com o seu oposto, isto é, com a vida,
embora se acentue a fragilidade que irremediavelmente acomuna os dois pólos,
como se pode ler nesta reflexão essencial: «São frágeis os fios por onde a vida
e a morte se articulam […] Mas esses fios são as linhas contraditórias que se
cruzam sobre a obra de arte, ela própria um grito da vida e uma antecipação da
morte» (“A propósito do Requiem de João Pedro Oliveira”, p. 31).
Vida e morte
estão fatalmente ligadas pelos fios da consequencialidade, sabiamente
confundidas mesmo a nível elementar, mas na obra de arte a vida acaba por se
reflectir através da metamorfose actuante, subtraindo do esquecimento eventos
ou figuras, prolongando os ecos da vida e, nalguns casos, amplificando e
alimentando o mito, como no poema “Os Túmulos de Pedro e Inês”: «Quem sabe se
não / foram os três anjos colocados/ à cabeceira de cada um/ que impediu a sua
morte// vivos que estão ainda/ no rio da memória/ para hoje e para sempre?» (p.
61); ou na transfiguração de “Sinfonia nº. 7 de Chostakovitch: «A sinfonia
ficou: homenagem/ possível para quem sofreu/ a dor o desalento o desespero» (p.
91).
Na
elaboração de tal discurso poético, precisamente porque se contrapõem os
extremos de um itinerário vivencial, tem uma importância nuclear o tempo como
categoria numa dupla dimensão: a sua implantação como componente da história em
articulação com o seu manifestar ao nível do próprio discurso. É óbvio que para
a condição humana é fundamental a vivência do tempo, como aqui se testemunha
através do devir existencial que filtra o tempo («falo do relógio sem
ponteiros», p. 33), o que nos leva a interrogar se é o tempo que passa ou se
somos nós que passamos, o que determina a incidência fundamental do tempo
psicológico, também referente da sua mudança irreversível («Há um tempo
perdido/ uma rosa dissimulada/ uma dor um rosto antigo», p.32; mas também «Há
um peso no que sobra/ do tempo passado», p. 36), do desgaste e da usura que
sobre a mudança exerce a passagem das horas e as experiências vividas: «É
verdade que as árvores/ continuam a crescer/ mas o verde não é mais/ o mesmo e
as folhas caem/ nos degraus melancólicos/ do Outono» (“No tempo em que…”, p.
36).
Na sua
poética, que desde a estreia na revista Êxodo,
de 1961 (com Herberto Helder, Rui Mendes e o malogrado poeta caboverdiano João
Vário), passando por Poemas do Tempo Incerto (1983), Entre Sono e Abandono (1990), As Casas Pressentidas (1999) e Nas Colinas do Esquecimento (2004),
revela uma perfeita geometria rítmica e a «projecção metafórica de uma
realidade em decomposição, sujeita a um processo degenerativo, da fragmentação
de um mundo do qual nos fica a memória através da palavra» (como noutro lugar
já tive ocasião de salientar), o discurso inscreve também aqui um tempo
balizado por cicatrizes, pela inquietação e pelo medo («Havia desemprego/
miséria fome desesperança; era a Grande Depressão/ de vinte e nove», p. 64), e
uma história cultural e social de luzes e sombras mas cujas marcas eloquentes
emergem à superfície do texto, mesmo que por vezes pareçam assumir-se apenas
como «um deserto/ de alguns sinais/ de magoada escrita» (p.13).
Saliente-se
ainda que Quando se Apagam as Cerejeiras,
na sua totalidade, elege programaticamente a poesia substantiva e que os poucos
adjectivos que pontuam o texto funcionam como elementos acentuadores de uma
melancolia que percorre transversalmente todo o discurso. E acentue-se, por
fim, o recurso à memória e à sua hermenêutica, numa conjugação que as torna
elementos primordiais no evoluir da expansão textual, isto é, da polifonia que
se distribui por «harmonias e dissonâncias», tudo matéria da poesia, «esse
afecto especial/do coração».
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