19/02/2015

Rosário breve


GRAÇA  AGRADECIDA





Escrevo hoje sob um céu muito puro, desses céus totais, absolutos e ubíquos cujo azul chega a doer em seda. Raro, um fiapo de nuvem a oeste: fumo branco, dedada de neve não mortífera. Não chega aqui, deo gratias, o fragor estúpido dos carnavais, as idiotas tranquibérnias de machos travestidos sem graça nem mistério de mulheronas hirsutas (quantos não tirarão hoje do armário o esqueleto da sua pederastia reprimida?).
Há sossego, a brisa penteia & despenteia a seu bel-talante o que por aí vai de orquídeas, gardénias, chitas de senhoras. Ronrono ao sol da praça a digestão de enchidos endógenos com que me apancei a tulha. Longe, um amigo (que agora pertence ao MEO ) faz anos. Outro amigo (que agora pertence à NOS  ) fez uma biopsia. Andamos nisto.
De cediça ossatura, um velho osteoporótico atravessa pela ponte de ferro o canal fluvial. Vai a pensar em cenas de há décadas, como aliás também a mim me acontece tanto, protagonista de pretéritos só já. Sobre ele, o sol português dardeja suas radiantes frechas termonucleares. Por aqui, o anho sacrificial grego não tem de morder o pastor alemão. Não é uma paz feita de genuflexão ante o bezerro-de-ouro. A teratologia da coisa é outra.
Todavia, a entristonhar esta fotogravura verbal surge um homem-anúncio: de farpela plástico-amarela pejada de gritantes maiúsculas pretas, roga-nos ele que saibamos como vender-lhe o nosso ouro e as nossas eventuais pratas avoengas. É rapaz já descriado, fará publicamente aquela figura para comer, não sei, por carnaval não será, suponho mas não sei. Ei-lo além já, amarelejando a passadeira à pré-rotunda da velha fábrica de farinhas. A visão troca-mo de imediato por uma fêmea de madeixas roxas que lhe ficam mal – como se alguém lhe tivesse vomitado na cabeça. É de joelhos agudos como álgicas pontadas de papagaio úrico. O olhar brilha-lhe qual moeda nova, porém: esteve com amigas velhas a beber chá de catorze graus, daquele que leva mais branco. É senhora de opiniões tipo TV- cassette, useira & vezeira de fatalismos zodíacos fundamentados, tão-só e afinal, na falta de homem. Conheço-as destes anticarnavais: explora um negócio de unhas pintadas num desvão de escada-urinol-dos-aflitos ali perto da Sé.
Entretanto, a Grécia recusa-se a ser, para já, como as barreiras do planalto santareno. Em fúria, o furão teutónico brande índex-ultimatos de má-fé ariana & pior consciência histórica. Os acólitos portugas rezam, de joelhos naturalmente, à cruz (gamada). Mas por aqui não. É que estou sorrindo à epifania, galeri’afora, do casal de carrinhos-gémeos a quem a lotaria da genética brindou com dois clonezitos de chupetas geminadas. Homem-senhora-menino-e-menina: bonito de se ver, a este sol. Que a saúde nunca se furte ou escasseie a este baralho de quatro naipes, de trunfo todos eles.
Pela avenida passa ora um carro de aparelhagem sonora stum-stum-stum-stum. Condu-lo um pardal imbecil de perfil mumífico à Ramsés II. Vontade minha de autuá-lo com Bach até 2042. Também ele passa e se dissipa, porém. A calma retorna à gravura, pacificadora e materna como flanela mental.
A minha verdade íntima, no entanto, é que quase não tenho pensado noutra coisa senão na biopsia que o meu amigo fez, ou lhe fizeram, por estes dias. Ao pé da faringe dele, nem alemanhas nem grécias contam seja o que for.
É que esse amigo é, por assim dizer, meo.
Ele e eu somos nos.
Ou assim: meo gratias

Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 19 de Fevereiro de 2015


Foto e edição de Augusto Mota

foto: Vale do Lis, zona da Carreira

Espiralando



A ESPIRAL DA VIDA




Por estranhos caminhos se chega à conclusão de que a vida não se desenvolve seguindo a geometria da Espiral de Arquimedes, mas, sim, seguindo a da Espiral de Fermat. Na primeira, cada vez nos afastamos mais do ponto de partida - do nascimento -, passando pelo êxito do corpo e do espírito, a que se segue o declínio gradual de tudo, até à morte cerebral e física; na segunda, a certa altura da vida, passamos, sem nos apercebermos, para a outra linha que lhe é paralela e, assim, iniciamos um regresso ao ponto de partida, mas percorrendo um caminho bem distinto do primeiro, onde afloram, por vezes tenuamente, coisas do passado como se presente fosse, até regredirmos ao estado do não-ser. 

augusto mota, fevereiro de 2015

12/02/2015

Rosário breve




A CERA NÃO É RUIM, O DEFUNTO É QUE SIM






Um país de pobres desgovernado por miseráveis – conheceis algum?
Eu, sim. E não queria.
Conheço um onde a vozearia é muito mais iracunda e a revolta muito mais veemente quando um qualquer padre é trocado por outro qualquer do que quando o posto de saúde, os correios, a escola, o tribunal e a própria junta são encerrados até (nunca) mais ver. País-carapau, que só assim faz escabeche.
Uma cidade capital de distrito (e de província) inçada de lixo e de contentores de recolecção estripados à maneira de fins de acampamento de rave – conheceis alguma?
Eu, sim. E não queria.
Conheço uma que Garrett imortalizou, por exemplo. E não sei se o mesmo hoje faria, ele, a tal morredouro de miasmas.
Tal país e tal cidade parecem andar e trazerem-se a si mesmos num virote esquisito. Varrer as respectivas testadas é coisa que nem esta nem aquele fazem. Nem à chicotada. (Da psicológica, claro, que da outra nunca a demos a sério, isto ainda não é a Arábia Saudita e as sanzalas ultramarinas há muito as extraviámos.)
Qualquer antístite, mesmo o mais reles, é gajo para abichar sem esforço mor os cimélios da parvónia – digo-o assim porque ando a ler o santareno Veríssimo Serrão tão saudoso de seu Marcello exilado, rebate lhe(s) dando o coração contrito.
Eu nem quero imaginar o que não faria uma Suíça, por exemplo, se lhe dessem nem que fosse uma só légua de litoral do nosso. Um Tejo destes adentrando as primícias do Atlântico por quanto é regadio, lezíria, sequeiro, céu até. E se esses acantonados e multilingues helvéticos relojoeiros/queijeiros/banqueiros pudessem dispor deste sol sem neve de quase todo o ano incidindo a pique sobre planuras tão mais úberes quão mais desertadas? Não quero imaginar. O que damos à Suíça é emigrantes de não-retorno e porrada no hóquei-em-patins (mais daqueles e menos desta, aliás).
Venho há uma vida gastando despicienda cera com o ruim defunto que, todavia, me é, no (des)concerto das nações, o único que alguma vez me interessou, interessa e interessar há-de – Portugal. Portugal e o Ribatejo dele, já agora. Continuarei tal gasto, bem no sei, desgastado e desgostado, mas exalçado sempre por (in)certa íntima obstinação a que só não chamo patriótica por poder ficar, hoje em dia, malvisto com o epíteto.
Não frequento doutos grémios. Nem subidos sinédrios. Nem vou, sabido, à TV parecer sabedor – gosto bem mais de iscas com elas e de ginjas idem.
Vou mais pelo escalpelizar da pública coisa atoardando indignações miudinhas de cigarra farta de ser formiga.
Terçando armas pela Língua – é ver o estropiado idioma com que a mais soez ignorância escreve, às costas e a pretexto do execrável AO 90, os rodapés dos telenoticiários e demais imundícies afins.
Objurgando o fedelho que fizeram, primeiro, cola-cartazes, depois assessor, depois (tumba!) edil e/ou, até, ministro da Relespública.
Exprobrando a demora inaceitável da adjudicação do Ministério da Saúde, no seu todo, à confederação nacional de agências funerárias: pois não é ele o mais ingente gato-pingado que por aí negreja o mais negregada, o mais mórbida e o mais mofinamente? É. É pois: legionella, urgências, hepatite C em infindo e cursivo etc.
Increpando a emanação morbífica da mui bela, mui antiga e mui mal empregada Scalabis, cuja multissecular vetustez merecia (e merece) outro futuro. Ou outro galo no campanário. Ou outro povo cá em baixo. Ou, pelo menos, menos lixarada por tudo quanto é canto, chiça.
O meu único receio é ainda vir a ficar reduzido, uma destas quintas-feiras, a um qualquer insensato atirador-não-furtivo de geriátricas verborreias, à imagem daquele pantafaçudo peregrino do 44.
Pode ser que não: ser pobre não é o mesmo que ser miserável.
Assim sendo, que nunca me/nos falte a cera.  


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 12 de Fevereiro de 2015

 
 

Fotos e edição de augusto mota 

fotos de cima: "ninho" de processionárias e Processionária (Thaumetopoea pityocampa)
foto de baixo: "procissão" de lagartas iniciando a travessia de uma estrada