13/04/2015

Café com livros



CRÓNICAS  DE  DIAS  DE  DESESPERO





No sábado, dia 28 do passado mês de Março, teve lugar no auditório do m|i|mo – museu da imagem em movimento, mais uma tertúlia “Café com livros”, a já tradicional iniciativa do grupo Trêstúlias com(vida). Desta vez o convidado foi o Professor Santana Castilho, que foi apresentado por Cristina Barbosa:
O Professor Santana Castilho é professor coordenador de Organização e Gestão do Ensino da Escola Superior de Educação de Santarém e cronista do jornal «Público». Foi membro do VIII Governo Constitucional, presidente da Escola Superior de Educação de Santarém e do seu Conselho Científico e, também, presidente do Instituto Politécnico de Setúbal. Foi consultor do Banco Mundial, da União Europeia e da UNESCO, em projectos educacionais de âmbito internacional. Foi responsável por vários projectos internacionais de investigação educacional. No exercício de actividade liberal, foi consultor e formador de quadros de grandes empresas nacionais e multinacionais, no domínio da gestão estratégica e da avaliação e gestão do desempenho. Foi director de várias revistas educacionais e tem vasta obra publicada, em artigos e livros, sendo frequentemente solicitado a pronunciar-se sobre Educação, em jornais, rádios e televisão.

  
Antes de dar a palavra ao Professor Santana Castilho houve um momento prévio dedicado à poesia. Mercília Francisco, em jeito de homenagem, evocou Herberto Helder, lendo dois poemas publicados na revista do «Expresso»:

"Amo devagar os amigos que são tristes com cinco
dedos de cada lado. 
Os amigos que enlouquecem e estão sentados,
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a
eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente 
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão."

Herberto Helder, in «Lugar», 1960
 
 Mercília Francisco evocando Herberto Helder

"que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo
uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha, 
brilha inteira se um pouco da minha mão
sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas
entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que
regula a terra,
o canto comum-de-dois, 
o inexaurível, 
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda"

Herberto Helder, in «A Faca não Corta o Fogo», 2008


David Teles continuou o momento poético lendo seis Odes ao Vinho, do poeta persa Omar Khayyam (1048-1131), dos seus «Rubaiyat», onde canta a existência humana, a brevidade da vida e o amor, desenvolvendo ainda a concepção do êxtase do vinho como a transcendência do homem.


David Teles lendo "Odes ao Vinho", de Omar Kkayyam


ODES AO VINHO

1 (20)
Os nossos dias fogem tão rápidos como água do rio
ou vento do deserto.
Entretanto, dois dias me deixam indiferente:
o que passou ontem e o que virá amanhã.

2 (4)
Procede de molde a que a tua sabedoria
não cause sofrimento ao teu semelhante.
Domina-te sempre.
Nunca te abandones à cólera.
Se quiseres encaminhar-te para a paz definitiva,
sorri ao Destino quanto te ferir e não vás ferir ninguém.

3 (8)
Contenta-te com poucos amigos neste mundo.
Não tentes dourar a simpatia que podes experimentar
por alguém.
Antes de apertares a mão de um homem,
pergunta a ti mesmo se ela não irá ferir-te, um dia.

4 (10)
Como é vil o coração que não sabe amar,
que não pode embriagar-se de amor!
Se não amares, como poderás apreciar
a deslumbrante luz do sol e a doce claridade do luar?

5 (164)
Pobre homem, nunca saberás nada.
Não explicarás nunca um só dos mistérios que nos
rodeiam.
Já que as religiões te prometem o Paraíso,
toma cuidado de criar um para ti, sobre a terra,
porque o outro talvez não exista.

6 (68)
A vida passa como rápida caravana.
Pára a tua montada e procura ser feliz.
Rapariga, por que te entristeces?
Serve-me vinho. A noite chegará depressa.



Mercília Francisco e a sua leitura expressiva de "A Invenção da Água"

Depois do elogio do Vinho, Mercília Francisco fez uma leitura expressiva e “teatralizada” de “A Invenção da Água”, extraordinário discurso poético de Mário-Henrique Leiria (1923 – 1980), autor que integrou algumas manifestações do Grupo Surrealista de Lisboa:

"Como muito bem se sabe, no princípio não havia água.
Só havia o verbo.
Depois apareceram o sujeito e o complemento directo.
Mas de água, nada.

Então todos começaram a beber vinho e deus achou que era bom.
E lá isso era!

No entanto, com o aparecimento das primeiras culturas
do tipo comercial, tornou-se evidente
a falta de qualquer coisa
que pudesse aumentar a produção do vinho
e torná-lo mais rentável.

Era a água, claro.

Mas não havia água, como já fizemos notar.
As primeiras pesquisas,
então ainda bastante primitivas,
levaram à descoberta da água-pé.

Embora curiosa, essa descoberta não resolveu,
de forma alguma, o fim pretendido.
Continuava a não haver água. As pesquisas prosseguiram.

Felizmente o homem é assim, nunca desiste.
É isso que faz o progresso.
E largos tempos passados chegou-se a nova descoberta:
a aguardente. 

Era melhor, não duvidemos, mas realmente não era o desejado.
Faltava a água. Definitivamente.
As civilizações pastoris, no seu nomadismo constante
descobriram, acidentalmente, a água-bórica que,
aliás, nunca serviu para nada. Coisas de nómades.

Foi então que no seio das culturas orientais
mais avançadas tecnologicamente,
surgiu a grande invenção:
um misterioso pó branco que,
deitado em mínima quantidade de  água,
o convertia,
quase milagrosamente,
num litro de água.
ESTAVA INVENTADA A ÁGUA

Inicialmente rara e só usada para fazer vinho,
tornou-se no entanto com o desenvolvimento industrial,
bastante acessível e abundante.

Ergueram-se os primeiros lagos,
deu-se início aos rios pequeninos e,
finalmente surgiram os rios maiores,
aqueles muito grandes,
que consta várias pessoas já terem visto por aí.

Este progressivo desenvolvimento líquido
teve como consequência
o aparecimento de poderosas civilizações marítimas,
que se desenvolveram de tal maneira que nos puseram
no brilhante estado em que nos encontramos.

É o que fazem as invenções.

No entanto, e mesmo com a actual 
abundância, 
não devemos abusar, dada a tremenda
explosão demográfica que se está registando.

Parece-nos mais prudente beber gin. Sempre."


Mário-Henrique Leiria  


Laura Rosário lê o seu texto sobre os "Professores"


Como o Professor Santana Castilho iria falar sobre Ensino/Educação, a assistência foi motivada para o tema, através de três testemunhos vividos. Lídia Raquel leu um texto de Mia Couto sobre a influência e importância que os professores podem ter na formação dos alunos para a vida. Depois foi a vez de dar a palavra à jovem e habitual colaboradora destas tertúlias, Laura Rosário, que leu o original de um texto seu sobre os «Professores», escrito na véspera, ao “correr do lápis”:
 

Ainda dentro desta homenagem aos professores, Mariana Neves trouxe até nós um texto – «Homenagem ao Professor» - que escrevera em 2012, quando aluna do Colégio de Nossa Srª. de Fátima, em Leiria. Hoje é aluna do 12º ano de Artes Visuais, na Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo.

 
Mariana Neves lendo a sua "Homenagem ao Professor"


"O que são os professores?
Que papéis desempenham?
Que importância têm e que valores assumem
perante nós, nesta época turbulenta do nosso
crescimento intelectual, físico e psicológico?

Professores, não são apenas pessoas que passam pela estrada das nossas vidas como ténues sombras da noite, cujos contornos e detalhes, nos passam despercebidos. Não! São muito mais.
São alquimistas que transformam a matéria distinta e já deles conhecida há muito, em algo inovador e inspirador para os alunos.

São escultores que moldam os alunos como se fossem barro e ensinam os alunos a moldar o barro como se fosse gente! Ajudam a formar a sua personalidade, o seu intelecto… e levam-nos a tornarem-se maduros e preparados para a temida responsabilidade que a vida adulta lhes traz.

São pensadores inatos que influenciam a nossa forma de ver o mundo e a sociedade, influenciam a nossa opinião e confrontam-nos com novas ideias a cada dia que passa. Trazem consigo olhares e erspectivas singulares, que só a experiência de uma vida árdua, como professor, nos pode proporcionar. Eles entregam um pouco de si a cada aluno!

Os alunos marcam os professores, disso não há duvido. Mas os professores é que realmente fazem a diferença e nos marcam irrefutavelmente! De outra maneira, como teríamos as bases necessárias para dar asas às nossas capacidades? Cairíamos no primeiro voo…

Um bom professor será aquele a quem também possamos agradecer pelo que somos hoje, pelo que seremos no futuro. Aquele que nos pegou na mão e nos mostrou o mundo sob as mais diversas formas, por mais contraditórias que entre si sejam.

Agradecemos aos professores, que nos têm acompanhado ao longo destes anos, o facto de também eles se entregarem a nós! Agradecemos o conhecimento, a palavra, o elogia, a repreensão.

Obrigada a todos os professores por caminharem lado a lado com esta geração que, no futuro, se irá impor como aquela que tem a responsabilidade e quer promover um mundo melhor, mais justo e mais fraterno!"


 
Laurinha e Mariana Neves distribuindo as amêndoas

Como já estávamos em época de Páscoa, antes de dar a palavra ao Professor Santana Castilho, a Laurinha, ajudada pela Mariana Neves, distribuiu por todos os presentes uma pequena e doce lembrança: um bonito embrulhinho com algumas amêndoas.



E assim se entrou no tema central desta tertúlia: “CRÓNICAS DE DIAS DE DESESPERO”, que também é o título da mais recente obra do Professor Santana Castilho (Edições Pedago, Outubro de 2014). Dada a dificuldade em transcrever, com precisão, todas as ideias e palavras tão pertinentes do Professor, para não cometermos qualquer incorrecção, recorremos ao blogue que tem o seu nome (http://santanacastilho.blogspot.pt/), para de lá respigarmos afirmações suas e de outrem, afirmações que também foram por ele aqui proferidas. “Este é, pois, um blogue sobre e para um Homem bom e solidário, que a todos nós tem vindo a servir com a acutilância da sua inteligência, a justeza e a clarividência das suas posições, a incansável tenacidade da sua luta, a ousada verticalidade do seu carácter” (Ana Lima, editora do referido blogue).  


 
Santana Castilho e as "Trêstúlias": Cristina Barbosa, Rosa Neves e Lídia Raquel
  
"O coração de muitos políticos parece reduzir-se a um código legal, que interpretam a seu modo. O meu é feito de matéria diferente e por isso dói e sangra como nunca. Foram muitas as situações ao longo da minha vida em que a minha lei foi ser contra a lei. Contra a lei iníqua. Contra a lei astuta que protege os poderosos e ignora os que nada podem. Contra a lei que despreza a moral e a ética. Contra o direito que não serve a justiça."

“Assim se define o homem que é conhecido, sobretudo, pelas crónicas que publica no jornal «Público»: textos imperdíveis  que, de 15 em 15 dias, vêm agitar as águas turvas da torpe política nacional, nomeada e principalmente a referente às coisas da educação.”
"O estilo contundente dos seus artigos é um tiro certeiro na generalizada apatia, uma pedrada neste charco onde o país se afunda. A clarividência das suas análises, a sua prosa empolgante, cheia de garra, lucidez, inteligência, desassombro, são uma bênção - sempre! -, e uma inspiração, para aqueles poucos a quem a raiva ainda cresce nos dentes e nos dedos, professores ou não. Lê-lo é um bálsamo e um incitamento, saber-lhe o pensamento, uma força reposta.
O que o move: a persistência e uma vontade férrea, um humanismo que cada dia se vai tornando mais raro, uma  absoluta urgência de transformar o mundo."


 

"Não desisto de convocar políticos e cidadãos comuns para o debate das ideias e para o exercício de informar com seriedade e verdade. Sem informação e discussão não há vida democrática."

Quando o seu livro «Os Bonzos da Estatística» foi apresentado em Setembro de 2009, pelo Professor Manuel Ferreira Patrício, este definiu assim Santana Castilho:

(…)
Santana Castilho é um homem frontal, dos que dizem o que pensam e não têm medo de tornar públicas as suas opiniões e posições, cumprindo um mandamento fundamental das sociedades livres e democráticas. Sintetizando o ideal e  programa das Luzes, na segunda metade do século XVIII, escreveu Kant: Sapere aude, Ousa saber. Saber significa aqui pensar, conhecer, criticamente. A todos nos disse Kant, portanto: Ousa conhecer criticamente. A humanidade europeia e ocidental ouviu o grande filósofo de Könisberg. Mas hoje temos a nítida percepção de que não basta pensar, não basta conhecer, ainda que criticamente. É preciso, é indispensável, é imperioso comunicar.
(…)
 

Aquilo que o Professor Manuel Ferreira Patrício disse acerca do livro «Os Bonzos da Estatística» pode aplicar-se igualmente hoje, e cada vez mais, a «Crónicas de Dias de Desespero»:

(…)
“As crónicas de Santana Castilho reunidas neste livro são acções comunicativas críticas visando o nascimento da luz comum para transformar a realidade que é comum, mesmo que alguns o não queiram e dela se queiram apropriar como se proprietários da sociedade fossem. Não são. Não vão ser. Esse é o grito de ousadia kantiano que sai poderoso e sereno, e bem fundamentado, de cada página, de cada crónica, da Crónica da Educação Portuguesa presente e recente que é este livro. Esse é o passse de agir comunicacional, a faena elegante e fatal deste magnífico toureiro que é Santana Castilho, que projecta o conhecimento crítico da Educação portuguesa do diâmetro solipsista da consciência individual para o diâmetro universal da consciência colectiva; que muda, portanto, o sujeito de «eu» em «nós».
(…)
 
 À frente, à esquerda, Mariana Neves vai desenhando o retrato do Professor

Foi esta força comunicacional que perpassou por todos nós, levando as pessoas a sentirem-se mais à vontade para colocar as suas questões ao Professor Santana Castilho, o que deu a esta tertúlia um carácter muito dinâmico. 

 

Durante a sessão Mariana Neves foi desenhando, calmamente, o retrato do Professor e, à despedida, ofereceu-lhe o trabalho, gesto que muito apreciou e o comoveu, pelo inesperado da situação.
E assim terminou mais um "Café com livros". Voltaremos a encontrar-nos em Maio. Até lá não recusem

Um café quente
 
Um livro fresco
 
Uma ideia nova



Fotos (excepto as identificadas), texto e edição de Augusto Mota