David &
da Vida
Sucedeu
numa casa-de-pasto de cujo balcão sou freguês recorrente há bons (e menos bons)
anos. Foi pela finimanhã de quarta-feira, 21 de Março de 2018, já o meio-dia
não vinha longe. Aos que estávamos, juntou-se-nos um homem perdido. Em segundos
velocíssimos, aquela aparição disse ao patrão da casa que não vinha pedir
esmola em dinheiro mas sim a caridade de alguma coisa para comer – porque não
comia há muitos dias, porque tinha sido escravizado em Espanha, porque não
sabia o que fazer à ou da vida. E era de facto, na vida, David. David era
deveras: fiquei a sabê-lo pelo diário local cá da paróquia na manhã seguinte,
quinta-feira, 22 do corrente.
Por
tal periódico, aprendi que este pedinte se chama David S., tem 50 anos, há sido
trolha de profissão e foi dado como desaparecido pela família. A notícia (com
retrato do extraviado senhor) acrescentava que é gente portuguesa de Joane
(Vila Nova de Famalicão). A irmã, Rosa S., fornecera às autoridades e ao jornal
um número de telemóvel, rogando que lhe ligassem em caso de avistamento do
extraviado mano dela. Assim fiz. Liguei à senhora.
Disse-lhe
o que Vos conto. Falei-lhe da cena na casa-de-pasto. Falei-lhe de Espanha. Ela
disse-me: “É ele. Isso de Espanha é uma
história que ele costuma alegar.” (Sim, ela disse “alegar”.) Perguntou-me depois se ele andava de barba (na
fotografia do jornal, não a tinha.) Disse-lhe que sim, barba de muitos dias.
Barba & casaco de couro acastanhado. E ela: “É ele. Tem de ser ele. Muito obrigada pela sua atenção.” Tinha a
voz anestesiada pelo desespero.
Nessa
mesma quinta-feira/22, fiz duas coisas: uma, fui à esquadra central da PSP cá
do burgo, onde dei conta do facto aos uniformes competentes; antes, porém,
comentei o caso com a freguesia & com a gerência da dita casa-de-pasto. Os
demais clientes interessaram-se pelo episódio – mas a gerência nem tanto. A
gerência nem tanto por pura má-consciência: é que, na véspera, tinha recusado
comer ao homem – talvez por receio de tanga ou de ociosa pedinchice parasitária
como tanta por aí anda, talvez. Percebendo o embaraço do remorso, não insisti.
Paguei o meu copo e fui à polícia.
Tenho
agora o recorte de jornal colado no caderno em que escrevivo estas crónicas
para Vós. Não sei mais. Desconheço se o senhor de Joane, Vila Nova de
Famalicão, foi já ou não ainda encontrado. Redijo estas linhas na sexta-feira,
23 de Março de 2018. Entrementes, a chuva voltou, maciça & massiva. Quarta
& quinta foram dias muito formosos, de um azul oceânico feito céu a que o
Sol presidiu com autoritário garbo & majestoso esplendor. Mas a chuva
voltou, o que me faz temer pelo desaparecido.
E
agora, Leitor meu, confesso: também eu padeço de má-consciência. Sim,
má-consciência. Não reagi a tempo. Na manhã acabando-se de quarta/21, eu tinha
duas sandes & uma banana no saco. Não me ocorreu sair à rua, perseguir
David, dar-lhe de comer. Eram boas sandes: de mortadela & queijo-creme,
uma; outra, de capitoso presunto translúcido & corado a fumo de lenha viva.
Não me ocorreu, o que agora amargosamente lamento. Quando me lembrei, era tarde
de mais: o perdido reiterara de si a perdição, invisibilizando-se na
indiferente luz da manhã terminal.
A
comparação seguinte pode parecer-Vos reles ou mentirosa ou lingrinhas ou
auto-coitadinha: mas é mais friamente verídica do que meramente verosímil –
também eu já me achei perdido. De família, de anos estragados, de projectos
calçados a barro, de manuscritos sem tipografia, de animais amados como pessoas
singulares & de pessoas não plurais como bichos de estimação. E de
sozinhíssimas, insensatas copofonias.
Verdade, tudo isto. Não hei-de hoje mentir.
Em
lenitivo & paliativo contraponto, porém, a minha salvação tem sido esta mesma
janela ribatejana de última-página, que há quase onze anos, em uma hora feliz,
se me abriu para Vós. Porquê? Ora, porque não se pode perder tudo: a começar
pelo que fazer, David, da Vida.
Crónica de Daniel Abrunheiro in «O Ribatejo», de 29 de Março, 2018
Fotos de José Eduardo
Edição de Augusto Mota