22/02/2019

Café com Livros




No dia 26 de Janeiro, p.p., teve lugar no museu Moinho do Papel, em Leiria, a 29ª tertúlia “Café com Livros”, tendo como convidado o “Contador de Histórias itinerante” Carlos Alberto Silva.
Juntar amigos é um privilégio, fazê-lo em prol das palavras é um prazer, por isso as Trêstúlias começaram por desejar as boas vindas a todos os amigos, porque é nessa qualidade que cada um é sempre recebido e tido nestas tertúlias.
“Café com Livros” não é uma conferência, não é um seminário, é apenas a essência da verdadeira tertúlia, que se resume a um encontro de amigos que se reúnem para conversar sobre temas comuns, neste caso ligados à escrita e à leitura, sendo, sobretudo, um espaço independente, despretensioso.  
Num dia frio e chuvoso de inverno achou-se oportuno começar a tertúlia com uma reflexão sobre uma frase do escritor Manuel da Silva Ramos: 
“neste tempo de solidões só as tertúlias combatem como deve ser o narcisismo mais agudo”.

Lídia Raquel deu uma visão do extenso currículo de Carlos Alberto Silva, que, enquanto professor e escritor, desenvolve diversas acções no âmbito da mediação e promoção da leitura, tanto como autor, como contador de histórias.
Dedicado à investigação e inovação, tem desenvolvido trabalhos no domínio da Robótica Educativa como instrumento de aprendizagem da leitura e da escrita. Tem ministrado vários cursos e dinamizadas oficinas no âmbito das Expressões Artísticas e da promoção e animação da leitura.
 

Carlos Alberto Silva recheia os seus livros com recados ambientais, lendas tradicionais, poesia divertida e ilustrações apelativas que fazem com que a leitura se transforme no prazer da interrogação e do conhecimento.
Escritor que nos surpreende com uma imensa criatividade, saber e boa disposição, tem vários livros publicados e a sua escrita está espalhada por blogues e exposições:
Antes de dar início à sua participação nesta tertúlia, Carlos Alberto Silva foi surpreendido com a leitura de vários textos humorísticos da sua autoria:

A vingança do guardanapo

Um guardanapo alvo e engomado foi admitido como agente da Guarda. O comandante do posto, um esfregão grosseiro e insolente, achava que o guardanapo era demasiado fino para o exercício daquelas funções e estava sempre a implicar com ele.
- Olhe lá, você não será antes um guarda-nabo? Isto aqui é para gajos de barba rija. E quando as coisas não vão a bem, vão mesmo à bruta. Como é que você, um engomadinho do caraças, vai fazer valer a sua autoridade, se nem pêlo tem na venta, hã?
O pobre guardanapo ficava humilhadíssimo com estes comentários boçais, mas engolia em seco e permanecia em silêncio. É que ele, quando se enervava, gaguejava descontroladamente. E imaginava o vexame que passaria se descobrissem nele aquilo que seria considerado como mais uma fraqueza.
Foi ouvindo, foi engolindo, foi enchendo, mas aguentava-se estoicamente, fingindo que fazia orelhas moucas às provocações do sargento esfregão… embora, por dentro, ficasse a ferver.
Numa tarde de pouco movimento - estava o posto cheio de agentes
- ao ouvir mais uma série de ordinarices do comandante, não aguentou mais e rebentou.
- Vá-vá-á lim-lim-limpar la-latrinas, seu-seu la-lateiro.
Atirou o bivaque para cima do balcão de atendimento e saiu porta fora. O resto da corporação ria perdidamente.
- Ó pá! O gajo não é só engomadinho, também é gago - dizia um escovilhão lambe-botas.
- Pois. É um engo-gugu-mamadinho - respondeu outro.
- Eu é que tinha razão. É um verdadeiro guarda-nabo - rematou o comandante.
Mas cá se fazem, cá se pagam! Quando o esfregão chegou a casa, ao fim do dia, ia tendo um chilique. A mulher, uma bela toalha de bilros, tinha feito as malas e fugira para o Brasil com o guardanapo.

O Strip-tease da cebola

Crivada de dívidas, uma cebola desempregada não teve outro remédio senão aceitar um trabalho de stripper num night-club de terceira categoria.
Nessa noite, a cebola estava nervosíssima, já que era a primeira vez que se iria expor assim aos olhares de gente estranha. Mas lá subiu ao palco e começou a descascar-se. Conforme iam caindo as peças do vestuário da cebola, a clientela ululante gritava «tira, tira», cada vez com mais entusiasmo. E a pobre cebola lá se ia descascando a contragosto.
O problema é que, com tanta roupa, nunca mais chegava ao que interessa. E depois havia aquele estranho odor corporal que ia libertando…
Horas depois, os clientes, frustrados e lavados em lágrimas, iniciaram um motim e destruíram todo o mobiliário do night-club.
O patrão despediu a cebola imediatamente e pô-la no olho da rua sem lhe dar um tostão.
Mas a cebola não ficou desempregada, não. Um agente de espectáculos, que assistira a tudo, arranjou-lhe emprego como actriz num dramalhão de fazer chorar as pedras da calçada.


Multifacetado exprime também as suas emoções através da poesia:

Havia naquela manhã de Abril
            A Salgueiro Maia, nos 40 anos do 25 de Abril

havia naquela manhã de abril
um odor a cravos
perfumando a cidade
 
eram brancos, vermelhos, matizados
da cor dos sonhos oprimidos
sem idade

havia no ar primaveril
um som de vozes
bailando à toa no eco das ruas

eram risos, cantos, brados festivos
arrojados do mais fundo
das almas nuas

havia no radioso céu de anil
uma alegria pura
sem conta nem medida

e uma maré de gente laboriosa
tomava por fim nas mãos
o rumo da sua própria vida


Carlos Alberto Silva
       25.04.2014

Pinhal de Leiria

Num ligeiro remoinho 
o vento arrasta a cinza 
das flores do verde pino

E traz consigo a memória
do velho rei trovador:
- Ai flores do verde pino.

Quem suspira mansamente
pelos pinhais do litoral?
Será o vento ou o mar?

Ou serão ainda os ecos
duma cantiga de amigo?
- Ai flores do verde pino.

Perdida na bruma densa
do tempo sem remissão
soa a mágoa do poeta:

- Ainda ouvis minha voz?
Ainda vos lembrais de mim?
ó flores do verde pino?

Mas só responde o murmúrio
do vento que arrasta a cinza
das flores do verde pino.



A magia de um grande contador de histórias itinerante revelou-se, de imediato, no sorriso aberto com que Carlos Alberto Silva começou por nos contar a maneira como decorriam as suas sessões de animação da leitura junto dos mais jovens. Também aqui trouxe para dentro da sala uma bicicleta colorida carregando uma grande caixa suspeita e outras caixas mais pequenas, mas não menos suspeitas! Entre todo este aparato delicioso, uma conversa, um livro, um chá e um café quente, a tarde estava a prometer!




No exercício da sua itinerância Carlos Alberto Silva vai transportando a magia escondida em caixas e caixas carregadas de história e estórias. Carlos Alberto Silva é um escritor que coloca todo um mundo encantado na simplicidade com que, magistralmente, dá vida às personagens das histórias que conta através  dos seus “Teatros de Papel”. Transforma-se ele próprio numa criança encantada que, de repente, é apanhada na trama das histórias que relata. Ver:
Encantou-nos a tarde, deliciou-nos com as histórias que escreve e com as estratégias que usa para lhes imprimir vida e encantamento. Sem nos darmos conta enfeitiçou-nos e introduziu-nos também nas histórias; sorrimos, aprendemos a magia das palmas a tantos dedos; fomos Saramagos inteiros e divertidos; fomos estranhas formas de nuvens…




Para completar, da forma mais terna e com sabor a futuro, este “Café com Livros”, só outro momento bonito, privilégio até, que foi, de vez em quando, ouvir-se ao fundo da sala o choro ternurento e breve de um bebé, que ao colo dos pais estava pela primeira vez a ouvir estas histórias de encantar… chamava-se Oriana!
Delicioso o tempo que nos permitiu sonhar através dos contos do nosso convidado, pois como dizia o poeta Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos.” E fomos…
Obrigada Carlos Alberto Silva por tanto que nos enterneceu e comoveu; pelo trabalho fantástico que desenvolve; pela criatividade, pela generosidade com que dá a sua arte, e pela alegria contagiante com que sorri e põe os outros a sorrir.
Voltaremos a encontrar-nos por aí, na itinerância das histórias…
Encerramos este “Café com Livros” com um belíssimo poema que o Carlos escreveu em 2016 e que se chama:
Quando eu morrer não tragam flores…
quando eu morrer
não tragam flores
que flor cortada
logo fenece
e morto por morto
basta no esquife
o cadáver que arrefece

não tragam sequer
lamento e pranto
que a morte
- porque certa -
não vale o espanto
nem a mágoa da perda
que o peito descerra

tragam histórias
e canções
e poemas vibrantes
com as memórias felizes
dos dias de antes
perenes como as flores
de pé na terra


Obrigada a todos.
Voltaremos a encontrar-nos no dia 6 de abril, com outro convidado muito especial: Álvaro Laborinho Lúcio.

Até lá, não recusem:

           Um livro fresco
                   
                            Um café quente
                                       
                                            Uma ideia nova





 
Texto de Rosa Neves

Fotos de Joaquim Cordeiro Pereira e Mariana Neves

Edição de Augusto Mota



03/02/2019

Texto transversal