Repetiu-se
o ritual: um a um, aos pares, em grupos, os participantes em mais uma sessão de
“Café com Livros” foram chegando e a sala do Museu Moinho do Papel, tão
elegantemente recuperada pelo Arquiteto Siza Vieira, foi-se transformando no
que cada um tem dentro de si, foi-se transformando na sala de visitas de
leitores, ouvintes, artistas, escritores e poetas; na sala de visitas de amigos
que aqui trocam silêncios e vozes comuns.
Mais uma vez a “Fábrica do Papel” assume o papel principal e desvenda-se em cada livro que aqui é descoberto, pois a história primordial do papel passou por aqui. Do lado esquerdo da sala, a mostrar-nos a história da palavra escrita, está uma máquina de impressão antiga, não automática, que parece estar ali para nos lembrar o trabalho que dá a composição das palavras e aos poucos, para cada um que chegou, a sala foi-se transformando no aconchego literário que procuramos na obra de cada escritor.
Mais uma vez a “Fábrica do Papel” assume o papel principal e desvenda-se em cada livro que aqui é descoberto, pois a história primordial do papel passou por aqui. Do lado esquerdo da sala, a mostrar-nos a história da palavra escrita, está uma máquina de impressão antiga, não automática, que parece estar ali para nos lembrar o trabalho que dá a composição das palavras e aos poucos, para cada um que chegou, a sala foi-se transformando no aconchego literário que procuramos na obra de cada escritor.
Fernando Paulouro Neves
A resistência do jornalista na metamorfose da escrita
Fernando Paulouro Neves (FPN) jornalista, cronista, escritor, poeta, com uma intensa intervenção cultural e cívica desenvolvida ao longo de mais de 50 anos no «Jornal do Fundão», órgão de referência na história da imprensa nacional, onde foi Jornalista, Chefe de Redação e Diretor. Há já vários anos, numa entrevista atirada para altas horas da madrugada, na RTP2, ouvi referirem-se a FPN não como um jornalista, mas como “O” jornalista! Agradou-me o conteúdo que aquela forma expressava e pensei: - até que enfim que alguém distingue o “O” de “Um”! - e lá aparecia ele com a sua humildade e discrição, carregando um saber imenso, feito de gentes e lugares; sempre a passar despercebido e a falar, não de si, mas da luta do jornal que ainda hoje lhe corre no sangue e lhe brilha nos olhos.
Jornalista singular influenciou, sobretudo, a vida dos que mais precisavam. Talvez ele já nem se lembre de quantas vidas influenciou e mudou, com a sua ação, mas foram muitas, tanto individuais como coletivas, dentro e fora das fronteiras portuguesas. Quem sempre o leu recorda-se. Socorrendo-me das palavras de António Gedeão, magistralmente interpretadas por Manuel Freire, atrevo-me a comparar FPN a um “bichinho álacre e sedento… em perpétuo movimento”! Sempre humanista, sempre fraterno, sempre presente. Com ele estiveram e estão, sempre vivos, temas como a interioridade, desigualdade, emigração, mineiros, violência, deficiência, justiça… e tantos, tantos outros temas, que abordados de forma mais formal ou através de humor fino e assertivo, fazem parte do seu património de vida e são testemunhos de mudança. Temas prementes.
Temas prementes, sempre, que o Fernando parecia querer esgotar como se não houvesse amanhã e a urgência fosse hoje! Que parecia querer esgotar como se esse fosse o propósito da sua vida. E com esse propósito, adotou a palavra como espada para fazer sair tanta gente do esquecimento, mesmo que para isso fosse necessário andar por serras, veredas, atalhos, tal como andou outro escritor, também de seu nome Fernando, Fernando Namora, que também cumpriu propósitos, levando a ação médica ao obscurantismo da interioridade raiana…
Homem de letras e de cultura, cidadão de méritos indiscutíveis e reconhecidos em vários domínios, para além da intervenção ativa no âmbito cultural e social, FPN foi também elo de ligação no aprofundamento e reforço da cooperação ibérica, tendo mesmo sido galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço. Prémio este que se destina a galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas, e que já tinha sido atribuído a personalidades como Mia Couto, Maria João Pires, Agustina Bessa Luís, Luís Sepúlveda, entre outros. O júri deste prémio salientou que a ação de FPN tem a caraterística de ser “Regional, mas sempre com relevância global, mostra que o mundo precisa da reflexão vinda dos pequenos lugares”. O próprio Eduardo Lourenço referiu que FPN é “um escritor honrado, de sonho, que da nossa Beira nos faz sonhar a nossa casa e o mundo.”
Destaco uma frase do texto que o nosso convidado leu na cerimónia da entrega do prémio e que define a sua cruzada: “as palavras foram nesta caminhada, as minhas mãos e os meus olhos para descobrir o mundo na sua matriz de humanidade e no desafio de o tornar mais habitável.” – E é tão reconfortante conhecer alguém que faz da sua vida uma jornada de causas, que está atento à essência dos dias e contribui para que o mundo seja um lugar melhor.
Mas para além dos propósitos sociais que atingiu como jornalista, FPN como escritor proporciona aos seus leitores uma escrita imperdível, tão segura e sólida quanto discreta. A sua narrativa é um universo rico de substância, sempre didática e humanista, sempre interventiva.
Hoje, mais uma vez, FPN vem conversar connosco sobre a sua mais recente produção literária, «O Informador e Outros Contos». O livro, composto por vinte contos, transporta-nos para uma narrativa cheia de simbolismo, onde se destaca o conto que dá título ao livro e que vivencia o inferno de Guilherme Dantas, um PIDE, especialista na tortura do sono, que alcança um patamar elevado dentro da organização por distinta eficiência nos serviços prestados...
O autor faz aqui uma inversão nas narrativas habituais sobre este tema e resgata a figura de “O Informador” como peão do xadrez de um tabuleiro maior que era a polícia política. Ambicioso, sempre atento, este “Informador” não deixa de relatar aos seus superiores a notícia da fuga, para França, de um escritor a quem tinha sido atribuído o Prémio de Novelística Almeida Garret pela “vergonhosa” novela «Os Três Seios de Novélia».
Vamos conhecer o universo do mundo imaginário de FPN que, cruzando a ficção passada com a realidade presente, traz consigo também outro grande escritor, Manuel da Silva Ramos, o tal escritor visado pelo eficiente “Informador” e obrigado ao exílio.
Como disse o poeta e crítico literário francês Stéphane Mallarmé, “O mundo existe para chegar a um livro”...
Hoje chegámos ao «Informador e Outros Contos», e foi das
páginas deste livro que Mercília Francisco retirou algumas personagens e encantou,
com o seu talento e expressividade habituais, todos os presentes. Ninguém fica
indiferente à força das palavras de FPN na interpretação fantástica de Mercília
que, acompanhada pela jovialidade do seu filho, Miguel Morna, trouxe à ribalta
as memórias do “Informador” que se gaba das eficazes sessões de tortura que era
capaz de levar a cabo:
“ Uma
vez, numa mariscada com o inspetor Tinoco, numa cervejaria fina da Almirante
Reis, festejaram calorosamente a vitória sobre um dirigente comunista que
vergara, após longas sessões de tortura.
- Às vezes, os
gajos parecem de pedra! – afirmou Tinoco, que falava de um saber de experiência
feito. – Dezenas de dias de tortura do sono e de estátua, e, por mais pancada
que levem nas fuças, não dizem palavra…
…/…
Riram muito e
ergueram os copos.
…/…
Lembrou-se
desse fim de tarde na cervejaria, mas o que agora lhe poisou na memória foi uma
sessão violentíssima de agressões físicas em que a vítima fora o arquitecto
Nuno Teotónio Pereira, acusado de acções contra a guerra colonial. Ficara com a
cara num bolo e o corpo cheio de equimoses.
Guilherme
Dantas gostava particularmente das sessões de tortura aos intelectuais, quando
o caderno de encargos mandava fazer prolongada tortura de sono.
…/… Na cervejada,
também ergueram os copos para lembrar a jovem estudante universitária que se
lançara da janela do terceiro andar, na António Maria Cardoso (“a gaja
obrigou-nos a pôr grades na janelas”) e outro jovem, o Zé Pedro Soares, que foi
brutalmente espancado e queimado com muitas pontas de cigarro, tendo ficado com
o corpo negro.
…/… Riram os
dois e selaram o convívio com mais um brinde.”
Do
conto “A Caminheira” sai também a Ti Emília do Correio:
“Passou a vida nestas andanças,
sempre com uma palavra doce nos lábios, quando encontrava os destinatários. Lá
vai ela, vergada ao peso do saco do correio, amparada ao bordão, subindo e
descendo; é preciso ir além, àquela casa isolada no meio da montanha. …/… A
mulher-caminheira é uma aparição de alegria. Traz notícias que quebram a
solidão.
…/…
A mulher-caminheira alisa a carta com as mãos e estende-a à outra mulher, que a
recebe com um brilhozinho nos olhos.
Maria dos Anjos abre a carta vinda
de longe, de terras de França, com o coração a bater mais depressa. Lá dentro estava, apenas, metade de uma
fotografia. Era o sinal do código premeditado: “cheguei, estou bem”. A outra
metade ficara cá. O marido tinha ido “a salto” para França.
Com a fotografia rasgada, vinha um
papel com uma palavra em caligrafia grossa. Dizia apenas: Amo-te.
A mulher voltou a juntar numa as
duas metades da foto.
O poeta tinha razão: «há palavras que nos beijam / como se tivessem boca».
Um sorriso grande cruzou-se no rosto das duas mulheres.”
O poeta tinha razão: «há palavras que nos beijam / como se tivessem boca».
Um sorriso grande cruzou-se no rosto das duas mulheres.”
“ A primeira pancada atingiu-a de
surpresa e um fiozinho de sangue escorreu-lhe do canto da boca. Gosto
adocicado. À segunda, esquivou-se como pôde. Desviou o rosto do punho que lhe
caía em cima e que raspou na quina do armário…./… Outro golpe, o terceiro,
atingira-a em cheio na face. Uma dor aguda quase a deixara sem sentidos. Ele
voltou à carga, agarrou-a pelos cabelos, parecia agora segurar matéria inerte.
Amedrontou-se com o peso morto que tinha entre as mãos e deixou-a cair,
desamparada, no chão. Estaria morta? …/…
…/… Eulália ouviu vagamente uma porta que se fechava. E horas depois – quantas? – despertou do torpor de sofrimento e abriu outra vez os olhos para o mundo. Os sinais de agressão marcavam-lhe o corpo. …/… Doía-lhe o corpo todo, mas a dor maior ia até ao fundo da alma.
…/… O que era isto que lhe estava acontecer? Tudo lhe parecia absurdo. O respirar do medo, o barulho da loiça a estilhaçar-se no chão, as cadeiras arrastadas, os restos de comida espalhados ao acaso – despojos avulsos de uma guerra doméstica, sinais de um combate oculto entre quatro paredes. Tudo tão rápido, sombras de sombras, gritos sufocados, gestos de medo, palavras amordaçadas em silêncios de vergonha.”
A sessão continuou com FPN a partilhar com os
leitores histórias que não cabem nos livros, mas que estão relacionadas com
eles, embora não façam parte integrante da narrativa. Muitos escritores por ali passaram no diálogo e na lembrança de quem sempre esteve habituado a lidar de perto com o universo literário. FPN assinalou também a relevância da obra de Manuel da Silva Ramos no contexto da literatura contemporânea. Foram momentos intimistas que captaram a atenção dos presentes e nos aproximaram, mais ainda, da essência dos dois escritores.
E
neste Moinho, ligado ao Papel e ao Pão, o encerramento de mais um “Café com
Livros” deu-se com algumas surpresas, conversas de proximidade, livros, pão e o
habitual sabor a café da avó, servido numa caneca personalizada que cada
participante traz consigo e que encantou os nossos convidados e a nossa apreciadora de livros Filipa Barbosa,
que lia com atenção o nosso lema estampado na sua nova caneca de café.
Neste encontro ainda
não suspeitávamos da extensão e dimensão da crise sanitária que já se
adivinhava. Ficámos reféns de um medo que não conhecíamos, de um medo que nos
obrigou ao isolamento e afastamento social. Por esse motivo a agenda do “Café
com Livros” fica temporariamente suspensa.
Voltaremos, mas até lá não esqueçam o nosso lema:
Não recusar
Um café quente
Um livro fresco
Uma ideia nova
Texto de Rosa Neves
Fotos de Augusto Mota e Joaquim Cordeiro Pereira
Edição de Augusto Mota