27/04/2006

dia 8, 19:17

Ainda não vejo a porta.
Lá fora, a chuva continua, incessante, embora daqui não a consiga ouvir. O silêncio é gordo e sem moscas. Pegajoso. Tanto, que a cada passo, os meus pés transformam-se em cães enraivecidos, latindo contra um inimigo invisível ecoando pelas paredes e tecto.
O corredor é longo e largo. As paredes são cinzentas, sem brilho. E a luz baça ilumina-me os passos cadenciados. Sei que atrás destas paredes, de um lado e do outro, eles dormem. Ou fingem que dormem todos os que vão morrer. Mais cedo ou mais tarde. Todos sabem o seu fim. Mesmo assim respiram sem pressa e os corações batem-lhes baixinho para não se fazerem notar enquanto se preparam.
É a minha primeira vez. A dele também. E estas horas que antecedem a execução são demasiado longas e pesadas. São horas que fedem: odoríferas horas. No entanto, se para mim, estas, são as primeiras e as mais duras, da aplicação final de toda uma aprendizagem, para ele, serão as últimas; as últimas e as mais céleres. É luxuriantemente simples: um sabe que vai matar; o outro sabe que vai morrer; e sabendo nós o mesmo, estamos unidos a essa mesma morte, como dois gémeos siameses estão unidos à sobrevivência pela partilha de um orgão comum; de um orgão vital, do qual os dois dependemos em simultâneo, mas que tem de ser dividido, lancetado, e que dessa cisão, os dois também sabem, que depois apenas um sobreviverá: talvez o mais fraco.
A sombra de um homem robusto, de cabelo cortado à escovinha, caminha a meu lado. Um cheiro acético a desinfectante impregna o ar. O chão, as paredes, o tecto, as portas, as grades, as celas, os catres, a cozinha, os refeitórios, as casas de banho, tudo, está impecavelmente limpo, imaculadamente puro; entranhado para sempre com este odor a fruta asseada. Que faz lembrar o cheiro das putas lavadas; das higiénicas e desinfectadas vaginas, que de quando em quando, aguardam os clientes, palpitantes sobre a cama, com odoríferas fatias de maçã encostadas à carne por dentro das cuecas.
Paro à distância de dez passos. O puxador da porta interroga-me a mão. Procuro a razão pela qual as minhas pernas se recusam a avançar. As minhas pernas têm medo. Um medo individual. Como se fossem elas próprias seres autónomos com vida própria.
Com a cabeça mal voltada, volto-me para trás. Procuro no chão de mármore as marcas recentes dos meus passos ladrados. Tudo está limpo. Imaculadamente puro. Preciso de uma casa de banho. Quando os nervos trepam por mim acima tenho sempre vontade de ir à casa de banho. Não só para urinar ou defecar, fazer aquilo que todos os bichos fazem, mas para espremer borbulhas e pontos negros em frente ao espelho. Espremer borbulhas e, ou, pontos negros, ou os dois em simultâneo em frente do espelho, relaxa-me mais o sistema nervoso, a frequência cardíaca, que dez inspirações abdominais completas. Ver o sebo ejectar-se dos poros e projectar-se no vidro, transmite-me, não sei bem como, uma pseudo-mesquinha sensação de segurança. Uma segurança egocêntrica, que nenhum ansiolítico ainda assim me conseguiria dar desta forma tão absoluta e macrobiótica. Preciso de espremer borbulhas. Ou isso ou comer laranjas.
É melhor regressar. Não é medo. É uma necessidade fisiológica. Uma casa de banho. Não é medo. Não, não é.
( a continuar ... )
Sandro William Junqueiro, inédito, in "Cadernos do Algoz".

9 comentários:

Anónimo disse...

Bem vindo, Sandro, com este fortíssimo e muito belo texto... Promete!!!...
Parabéns pela superior qualidade das postagens do blog.

Anónimo disse...

A crueza e beleza deste texto jogam em igual proporção com a simpatia e a beleza do seu autor.

Regalos para a vista!!!!

beijos!

Unknown disse...

Hoje tomei a liberdade de divulgar o seu site... Bjs

Jorge Cardoso disse...

E para quando a continuidade...
Fiquei, não sei se com água ou sum ode laranja na boca.
Aguardo o futuro. Até este chegar, vou fazer companhia às borbulhas, as de espremer, não as de amor.
Sugcrasis

Anónimo disse...

obrigada, Susana!
o agradecimento deveria ter sido feito há tempo, mas, por questões de "manutenção" do Palácio, só foi possível fazê-lo hoje.
mas como diz o povo, na sua imensa sabedoria, mais vale tarde do que nunca.
um beijinho!

Anónimo disse...

plenamente de acordo, Cristina!...

Anónimo disse...

fez muito bem, Trequita! e, use e abuse. o Palácio também é seu...
bjocas

Anónimo disse...

o Palácio tem as portas e varandas abertas de par a par aos amigos e aos amigos dos amigos... venham todos... ninguém está a mais!!!
nós ADORÁMOS conhecer-te...
1 bj, Paula/Gatixa ( toca a encolher as garras!!!!! )

Anónimo disse...

oi, sugcrasis!!!!!
para quando? para já!
e.... cuidado, Amigo, sumo de laranja a mais provoca acidez crónica!!!!!! ( ehehehehehehehe )

cuidado com o acne juvenil!!!!!!