31/03/2006

Legenda Íntima 97. Augusto Mota.

30/03/2006

as sílabas do silêncio

Com as mãos amacio as palavras e o néctar dos dias que amanhecem em cada gesto. O prazer repete o olhar e molda cada segundo ao ritmo de um desejo que é sagração primaveril de todas as estações do corpo.
Vai longe a maré alta do equinócio, quando as ondas trouxeram à praia a rebentação dos dias. Oficiamos agora outros conhecimentos entre as redes e o perfume da maresia que envolve a espuma dos dias.
Habitamos, assim, o ritmo das ondas que se desfazem no gesto do olhar, lá onde as palavras não dizem mais do que as mãos querem percorrer. Longa jornada esta entre o carinho e o verbo! Como contornar, então, as sensações que se erguem entre os dedos e acariciam o despontar desta madrugada?
Tarefa difícil esta em que as sílabas do silêncio vivem e morrem na revolta das palavras que traem as sensações-todas que habitam as mãos. Cada gesto irá perpetuar a dimensão da oferta e os dias claros esbatem-se para além das colinas que festejam o amanhecer da cidade.
O futuro despertará satisfeito por entre as sensações de cada gesto!
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
Legenda Íntima 95. Augusto Mota.

Postais da Tasmânia

1. Em Paz, Na Tasmânia
Cheguei à Tasmânia no avião
Da Aircanguru, a companhia
Que ao voar vai pulando com mestria,
Fugindo a poços de ar e furacão.
Ao meu lado, Ambrósio dava a mão
À condessa que lânguida dormia.
Trouxera os dois na minha fantasia,
Comigo na Tasmânia ficarão.
Aqui vou estar, quanto tempo não sei;
Cansado de sofrer a humana lei,
Que, corrupta, os ares da pátria empesta.
Do tasmânico diabo não sinto temor;
Do mundo que deixei, o vasto rumor
Não chega ao meu reduto da floresta.
A. Inocêncio Príncipe, inédito.

27/03/2006

Legenda Íntima 89. Augusto Mota.

Rosas, Rosas de Água

Rosas, rosas de água,
escorrendo dos meus lábios
para os teus -
assim nossas bocas
se diluem uma na outra
e os nossos corpos se confundem,
fluindo como um riacho de primavera -
Rosas líquidas
viajando dentro dos sentidos
pelos íntimos corredores das nossas veias -
Eterno vai ser o nosso fugidio amor,
porque mesmo de água
estas rosas arderão sempre -
António Simões, inédito.

23/03/2006

Fotopoema 60. Augusto Mota.

O Bater das Rosas

As rosas ardem
nos olhos, nas mãos,
no coração dos poetas -
Mas ser rosa
dá-lhes esta condição:
enquanto ardem,
refrescam, lavam os olhos, as mãos,
o coração dos poetas -
Há ainda outra razão
para cultivarmos sua chama
em nossas chácaras secretas:
cada uma delas bate
exactamente como bate
o coração dos poetas.
António Simões, inédito.

22/03/2006


Poésie Rouleaux de Printemps. Ossiane.

21/03/2006

entre as colinas da memória

A verde escrevo o sol que escorre pelas minhas mãos e tudo se dilui na saudade de infinito e nos desejos dos olhos claros da madrugada. Antes fosse um poema que perpetuasse os segundos que em mim ardem como bicos aguçados que sangram os lábios e a dor do futuro. Mas futuro é o presente que arde e sente, que fere e pressente o rosto que acaricia um horizonte de mãos entre as colinas da memória.
Se o futuro é cada segundo que hoje vivemos, que se eternize o júbilo da sagração e se festeje cada gesto como dádiva sequiosa que inunda o corpo e percorre, em êxtase, os caminhos da cidade sitiada.
Sobre as colinas de Jerusalém dormem as mãos e a boca dessa memória renascida das cruzadas, dessas lutas sem inimigo, desse esvair por dentro do passado sem futuro, ou do futuro sem presente. De qualquer modo sentem-se e pressentem-se as mãos que ardem entre as colinas da memória, agora rejuvenescida, e sentem-se e pressentem-se as lágrimas que escorrem entre os dedos do dia que amanhece. Serão contas, talvez, de um novo rosário de feitiços e encantamentos.
Um outro sufrágio das mãos ritualiza, agradecido, uma nova religião de gestos em oferenda. O oficiante está pronto para as trindades do amanhecer!
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
Fotopoema 59. Augusto Mota.

O Equinócio da Primavera

Ontem, dia 20 de Março, a Terra, no seu movimento de transladação, colocava o Sol, exactamente, entre os dois hemisférios, seccionando o Equador Celeste ( linha imaginária que corresponde ao equador terrestre ) a 0º. O Sol espalhou de forma igual os seus raios nos dois hesmisférios, Norte e Sul, fazendo com que o dia tivesse a mesma duração da noite.
Para nós, tal significou o fim do Inverno e o início da Primavera.
E, tal como se fazia na Antiguidade, a chegada da Primavera foi celebrada, hoje em Portugal, a partir das 07h30 até 8h00, frente ao portal do antigo santuário rupestre de Tambores, em Chãs, concelho de Foz Côa, com cantos e danças, segundo rituais celtas.
Muitas eram as civilizações antigas que marcavam estes momentos com rituais e cerimónias sagradas, que, infelizmente, vão-se perdendo.
Com ou sem rituais, a Primavera chega, indubitavelmente, a fim de dar novo viço às plantas que, adormecidas durante o Inverno, reflorescem, e, os animais, por seu lado, iniciam a estação do acasalamento. É tempo de renovação. É um novo ciclo de vida que principia.

14/03/2006

Legenda Íntima 91. Augusto Mota.

A Pedra e o Vento

O lume das rosas me refresca,
A água dos teus olhos aquece-me por dentro,
Mas só no silêncio das pedras
Minha alma se aquieta -
Ou nas asas do vento
Ou nas asas do vento -.
António Simões, inédito.

12/03/2006

Legenda Íntima 94. Augusto Mota.

11/03/2006

o passo a seguir / alguns dias depois...

Ontem, intervim na sessão de apresentação do livro "Meandros Translúcidos", de Maria do Sameiro Barroso, a propósito do posfácio que escrevi para a referida obra. O evento teve lugar no Museu Nacional de Arqueologia e transformou-se num momento terno e próximo, como devem ser todas as apresentações. Sempre desejei que estes actos fossem momentos onde se pudesse dizer e saber aquilo que os livros não trazem. Assim aconteceu, ao final da tarde, entre amigos, no recinto mágico do Museu. De entre os presentes, contavam-se: João Artur Pinto, editor e resistente das coisas imperdíveis, Luís Raposo, director do Museu e guardião sensível da sua alma, José Encarnação, apresentador, amigo e cúmplice da obra revelada, Isabel Wolmar, voz elevada de um tempo imprescindível e António Ramos Rosa, o mais belo poeta.
Maria do Sameiro Barroso ofereceu-nos as palavras que já estavam no livro, mais algumas trazidas de casa, mas sobretudo deu-nos o seu olhar emocionado que perguntava e recriava em cada face, em cada objecto, em cada paaisagem que, entretanto, revisitava durante a sessão. E quando um autor nos oferece um olhar assim íntimo e irrepetível, que mais se pode exigir de uma sessão?
Esta tarde de domingo, roubei algum tempo para procurar uma construção, de Joseph Cornell, "Object ( Rose des vents )", realizada em 1953. Essa obra é uma peça para a leitura do livro de Maria do Sameiro, significando o passo a seguir à releitura dos seus versos, calma e longamente, como se recomenda, trazendo para o infinito baú, onde guardamos aquilo que nos sugerem os poemas, os objectos e a magia que encontramos e a outra, aquela que ainda não vimos, porque a vida ainda o não permitiu e porque são infinitos e ilimitados os versos e as suas leituras.
Pompeu Miguel Martins, domingo, 5 de Março de 2006.
Legenda Íntima 103. Augusto Mota.

10/03/2006

Orlando

à Fernanda Sal Monteiro,
com dois dias de atraso
Orlando era um rapazinho estranho. pertencia ao 2º-5ª, a turma dos reguilas.
"foram todos escolhidos a dedo" - diziam alguns colegas.
era o Orlando, o Rui, o Fernando, o "Caixinha". irreverentes, não submissos, nos seus 15 anos. fartos de matérias repetidas em anos transactos, tornadas monótonas pelo cansaço do próprio cansaço. procuravam pelo afrontamento, acordá-la do tédio, despertá-la para a realidade do quotidiano, despi-la das suas certezas.
era a esperança metamorfoseada na adolescência.
era a Vida.
"sôtora, o Orlando hoje está bêbado. foi almoçar na venda da esquina e obrigaram-no a beber uma porrada de vinho. é verdade, sôtora - dizia o Caixinha -
começaram a dizer-lhe que não era homem, não era nada, se não aguentasse um copo de vinho. que o vinho dá força à gente. eu cá tive medo e não quis. o gajo chamou-me maricas. depois o Orlando sentiu-se mal disposto e fartou-se de vomitar. se a sôtora visse o ar do homem
volta-se aos berros com a gente - como se eu tivesse alguma culpa -, a dizer que não queria javardos no restaurante dele. que até tinha uma filha professora no Alentejo".
a cabeça loura do Orlando acordava nos braços cruzados sobre a carteira. olhos brilhantes. uma babedeira, a que a estupidez dos homens tirara toda a irreverência e tornara submissos, aguardavam, confusos, a cumplicidade da sentença
uma falta, a participação, outro chumbo, uma nova turma de repetentes reguilas, porque "foram todos escolhidos a dedo" - lia-se na semiconsciência dos seus olhos brilhantes.
no dia seguinte não apareceu na Escola. passou o trimestre.
as matérias repetiram-se. a monotonia e o tédio vestiram a insapiência do seu saber. os dias voltaram a ser iguais no cansaço do seu cansaço.
começava o mês de Março. um sorriso louro escondia uma camélia queimada pelo orvalho das manhãs. era o Orlando.
"amanhã vou para Lisboa e depois para Inglaterra. a minha mãe que trabalha num hotel escreveu a dizer que arranjou-me trabalho. o meu irmão também lá está. foi por isso que eu deixei a Escola. andei com os pedreiros".
"não tens pena de deixar a tua avó, os teus amigos?"
"a minha avó? essa nunca me ligou, e amigos há muitos. mas não queria abalar sem me despedir da sôtora e trazer-lhe isto".
estendeu-a sem jeito e partiu.
"obrigada, Orlando".
"obrigado, não. - voltou-se. - ou melhor!, obrigado, sim, pela falta que não me marcou naquele dia".
aquela camélia murchou. muitas outras se têm aberto. todavia, a cabeça loura do Orlando adormece ainda nos braços cruzados da sua memória ...
gabriela rocha martins
Legenda Íntima 105. Augusto Mota.

09/03/2006

as orquídeas selvagens

Para a Fernanda Sal, esta evocação de Leiria avistada da
Senhora do Monte, temperada com o perfume de outras vivências.
São orquídeas selvagens as flores que desabrocham entre as mãos do entardecer, quando a névoa sobre os montes deixa adivinhar os caminhos secretos que, solitariamente, temos de percorrer através de nós. Ao longe já se acendem as luzes da cidade. Toda a paisagem em volta fica salpicada de amarelo. É a noite qua cai. Os sons que chegam do vale, lá em baixo e muito ao longe, vão esmorecendo no meio da escuridão que, cada vez mais, aviva os sentidos todos e nos faz iniciar o percurso em direcção aos segredos da botânica.
São orquídeas as flores selvagens que brotam entre os dedos da madrugada, quando o horizonte avermelhado anuncia o acordar de toda a natureza. Vão-se apagando as luzes dos caminhos que levam à cidade e já chega até nós a azáfama de um novo dia. É a cidade que desperta. As cores dos pomares e das leiras da terra multiplicam-se pela paisagem além, até se confundirem com o verde dos pinhais que desaparecem no horizonte em direcção ao mar.
São selvagens as flores que emudecem as palavras que a boca tenta articular, quando o espanto incita os sentidos e o desejo se deixa levar pelos atalhos corajosamente perfumados de tomilhinha ( Thymus zygis ) e sempre ladeados de alecrim ( Rosmarinus officinalis ), rosmaninho ( Lavandula stoechas ) e madressilva caprina ( Lonicera etrusca ). Com tantos e tão frescos aromas fizemos um cesto de ervas do monte e a elas juntámos uns ramos de erva-abelha ( Ophrys apifera ), sargaço ( Cistus monspeliensis ) e roselha ( Cistus crispus ). É o corpo que rejuvenesce. O odor forte da terra dá outro ânimo às palavras apenas segredadas, até se confundirem com os sentimentos que as mãos exprimem em seu lento trajecto de encontro ao tempo que habita a nossa realidade.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.
Fotopoema 52. Augusto Mota.

03/03/2006

A Lua na Montanha

A lua era toda a sua voz, junto ao Marão,
a montanha de gelo, a albergar brisas divinas.
À noite, a lua era Deus, e a voz da montanha
ecoava em S. João de Gatão, onde a Senhora do Céu
descia, envolta em palavras leves.
Em seu regaço de oiro Deus repousava
e a sua face lívida ainda Teixeira de Pascoais escutava,
derivando para a distância, onde a saudade ecoava.
No céu, estendiam-se constelações silenciosas.
Na montanha, as brisas cristalizavam,
como a voz do Poeta, quando a noite é mais funda
e a Senhora da Noite vela,
humedecendo as palavras que do seu regaço azul
emanam ainda frescas, odorosas,
em florescentes arquipélagos.
É neles que a sua palavra acorda, com suas membranas
de névoa.
No seu coração imune, a música respira,
junto às sílabas suaves que harmonizam dissonâncias.
Os dias tornam-se então longos, opalescentes,
porque a Primavera nasce e, com ela, a palavra,
celebração sagrada das brisas que circulam,
leves, carregadas de aromas.
O céu é então a expressão da poesia e o mar,
na extensão da sua presença viva.
Nas membranas da memória, os seus sons reavivam-se.
Nos pássaros, no seu coração ardente, a luz inflama-se,
numa paz luminosa que no silêncio consuma
o que à dor e ao mundo,
em sua harmonia resguarda.
Maria do Sameiro Barroso*, in "Homenagem a Teixeira de Pascoais", Lisboa.
__________________________________
* Amanhã, a partir das 14h30, no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, Tarde Poética, com muita música, poesia e palavras.
Maria do Sameiro Barroso, na presença de António Ramos Rosa e mulher, Júlio Machado Vaz, Isabel Wolmar e muitos mais, fará o lançamento do seu livro de poesia "Meandros Translúcidos". Se gosta de Poesia e de Música, apareça.

02/03/2006

Legenda Íntima 102. Augusto Mota.

as muralhas de jericó

O peito aberto é a espada ávida dos novos cruzados. A conquista passa sempre pelo ritual dos dias e Jericó anuncia o cantar da madrugada. Os guerreiros despem a cota de malha e oferecem o corpo à sagração da luta e beijam a vida e a morte no ardor de cada segundo. Mas o silêncio da luta só perpetua o gesto das mãos que correm e percorrem o calor da eternidade. Se cada segundo é o pulsar da artéria, então, aí, jaz a eternidade, no pulsar da artéria, entre as mãos que conquistam o amanhã de todas as madrugadas e a boca que saboreia o ocaso do futuro. É nesse momento preciso, em que tudo excita e consome a memória dos dias, que a vitória canta e rejubila entre as muralhas do desejo.
Depois amanhece o presente como se fora o sabor de um horizonte proibido e tudo se esvai entre as mãos que acariciam o sol, ou o futuro.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

em vez de láurea



um agradecimento a Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira faleceu no dia 1 de Março de 1996. fez ontem, precisamente, dez anos. o Palácio das Varandas, propositadamente, não falou dele no dia 1. fá-lo hoje.
há datas que prefiro esquecer.
todavia, Vergílio Ferreira foi um dos escritores e filósofos portugueses que mais me marcou e ao qual reservo um estádio muito pessoal de ser em. com ele aprendi a reorganizar um pensamento construído na génese do , do ser em solidão, para ser no outro, e/ou com o outro.
o existencialismo português. a perceber, a ler e a gostar de Jean Paul Sartre. foi ele que me fez, à terceira tentativa, terminar, sem náusea, "A Náusea".
mas, comecemos pelo princípio...
Vergílio Ferreira nasceu na Serra da Estrela, em 1916.
em 1926, vai estudar para o Seminário do Fundão, onde fica até 1932. sete anos mais tarde, muda-se para Coimbra, onde se licencia em Filologia Clássica, pela Universidade de Letras, da Universidade de Coimbra. leccionou Português e Latim.
entre os prémios que obteve, destaco, por duas vezes, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, e, o Prémio Femina, em França.
da sua obra, saliento, os romances, "O Caminho Fica Longe", publicado pela primeira vez em 1943, "Onde Tudo Vai Morrendo", "Mudança", "A Face Sangrenta", "Manhã Submersa"( filmado sob sua orientação e com participação do prório ), "Aparição" , "Estrela Polar", "Até ao Fim"..., e os diários, "Contra Corrente..."
faleceu em Lisboa.
no seu livro "Para Sempre", em que se conjuga o romance em tom de memória e a filosofia, Vergílio Ferreira escreve quase como requiem - "Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta - sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio".
pelo Ser - Vergílio Ferreira - "Para Sempre". obrigada.
gabriela rocha martins.

01/03/2006



Carnaval em Veneza.
Fotografias de Netplan.