28/01/2012

Rosário Breve




O outro lado de Aníbal & Maria na mercearia

A minha mulher e eu estamos ambos desempregados excepto ela, felizmente. Cada primeiro sábado seguinte a ela receber, lá vamos nós à mercearia arregimentar víveres para as quatro semanas porvenientes. Chamamos a esse dia Sábado da Marca-Branca. Tal como o casal Aníbal & Maria, somos muitos poupados.
Compramos daquela margarina que sabe a manteiga. Cubos daquele caldo concentrado que sabe a galinha. Salsichas daquelas que sabem a lata de salsichas. Pão daquele que sabe a plástico de pão. Vinho daquele de cozinha que sabe a saudades de uva. Sangacho de atum daquele negro como a selecção de futebol da França. Toucinho salgado que sabe a porão de caravela rumo à Índia. Delícias-do-mar daquelas que sabem a chiclete de lagosta. Rabos e badanas de bacalhau que dão aquele gosto norueguês à açorda de pão com coentros. Tomate do espanhol que sabe a escravatura de beirões analfabetos na Andaluzia. Pasta de vísceras de salmão de aviário para a gata que a gente às vezes faz de conta que é pâté de canard au porto e prova em pão de plástico e vai-se a ver e até nem é mau, conforme o quanto vinho de cozinha que nessa mesma noite encetamos em aura & aparato de champanhe francófono da Anadia. Dois rissóis de leitão daqueles congelados que nos recordam os dourados dias do nosso primeiro acasalamento, que ocorreu por ocasião de eu andar a trabalhar ao negro, como pintor de uma engorda de bacorinhos para os estaminés da especialidade da Mealhada. Uma onça daquele tabaco de enrolar que sabe a hálito de prostituta de berma-estrada. Quatro laranjas daquelas ferrugentas como cuecas de pessoa incontinente. E um lingote de sabão azul-e-branco, que tanto dá para a louça como para fazer as vezes do champô, como muito bem e por igual sabe o casal Aníbal & Maria.
Chegados a casa, e por ser ela quem pagou, ele leva os sacos. São três andares. O elevador está avariado e ninguém se entende no condomínio, o que é pena e é penoso, já que somos sub-inquilinos de um inquilino de um condómino que foi para França e se calhar não volta, a avaliar até pelo preço do sangacho.
Por me ter portado tão bem, a minha mulher cede-me as moedas do troco, o que me permite ir logo para a tasca da Rosa amandar-me um copinho de bagaço que me sabe ao gin daquela Londres que Leiria nunca foi nem há-de ser. Lambo a bisca com o Proença, o Sampaio e o qualquer coisa Soares das Cortes para depois (que remédio!) ela me chamar Aníbal e eu lhe chamar Maria. Coisas de casa. Coisas de casal.
E somos estranhamente felizes assim, meus caros Portugueses, de mercearia.

Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», 26 de Janeiro de 2012.

Não deixe de visitar o canil do autor : http://www.canildodaniel.blogspot.com/

Foto: Augusto Mota, " Texturas que o tempo tece " na alvenaria de uma chaminé centenária, Carvalhais de Lavos, Fevereiro de 2008.

26/01/2012

tédio


-porte bonheur




se te disser que não leio livros e
se te disser que não escrevo versos e
se te disser que não ouso a vírgula e o ponto e
se te disser que não tenho vontade de fazer nada e
se te disser que tudo o que me rodeia me enfastia e enche
de vómitos

acreditas?

no passeio em frente há um homem com um pássaro pousado
sobre a língua que
se anula em igual sensação de tédio

coirmãos

descemos de mão dada a rua e -
dizendo adeus aos iconoclastas envoltos em xailes franjados -

deixamo.nos marinar num enjoo cozido à portuguesa





-gabriela rocha martins.

22/01/2012

Viajar ?




Viajar ? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (...)

(...) A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos. 

Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"
Flor de Passiflora alata / foto: Augusto Mota   

21/01/2012

texto transversal



20/01/2012

Na periferia do esquecimento






Quantas palavras se escondem por detrás de um gesto? E que olhares se escondem por detrás de uma palavra que navega na periferia do esquecimento? Será necessário, por certo, inventar uma nova semântica que ritualize o esforço dos gestos e dê ao corpo uma dimensão tão sublime como se alguém o estivesse a esculpir no mármore mais precioso, fazendo de seus veios as veias onde pulsam os mistérios da vida.

Algumas palavras também esculpem, em sua secreta significação, o corpo frágil da memória para, depois, se arrastarem pelos veios frios da pedra num delírio febril que vai deixando os sentidos ora  ausentes, ora exangues.

O escultor, então, confunde-se com a própria obra esculpida e cada silêncio é a força decidida e precisa do cinzel a desbastar a matéria e a vida.


Texto de Augusto Mota, in “A Geografia do Prazer,  2000  (não editado)
Escultura de João Cutileiro, "Recordação de Santa Clara" (pormenor)
Foto de Augusto Mota numa exposição colectiva na SNBA, Lisboa, Outubro de 2007

10/01/2012

Entrevista ao jornal "Terra Ruiva"*



TR - fale-nos um pouco, desta antologia que incluirá os seus poemas, como surgiu esta oportunidade/convite?

grm - esta Antologia ,como o seu coordenador-editor ,Adélio Amaro ,muito bem define no Prefácio ,é “ a continuação do encontro entre diversos poetas de variados e longínquos países, onde a distância é apenas terrena. É a união da Língua que consegue galopar todas as barreiras. É a Lusofonia Poética que Cecília Meireles defendia como “um espaço para publicação de música e de poesia de poetas da Língua Portuguesa”. É o encontro do mesmo idioma, mas de cores variadas”.
o convite partiu do Adélio Amaro que editou o meu primeiro livro de poesia “.delete.me.” .como ,segundo parece ,gosta da minha forma de vagamundear pelas e com as palavras ,convidou.me para ,em 2007 ,integrar a I Antologia de Poetas Lusófonos .destarte e porque era um desafio aliciante ,aceitei ,e ,voltei a fazê.lo este ano ,porque quem sabe? esta é uma Antologia que até pode ser a Última flor do Lácio, como Olavo Bilac defendia...

TR - foi a Gabriela que escolheu os poemas? ( ou quem os seleccionou)

grm - os poemas com que resolvi participar nesta Antologia ,foram seleccionados por mim ,mas ,quando os enviei ,não sabia se seriam todos publicados ,porque estavam sujeitos à apreciação ,prévia ,de uma comissão de avaliação.

TR - quantos poemas serão publicados?

grm - são quatro os poemas seleccionados e publicados - “o silêncio é de ouro” ( 14 de janeiro de 2011 ); “retratos de uma cidade” ( 25 de janeiro de 2011 ) ; “às vezes sou um sim ,às vezes não” ( 8 de fevereiro de 2011 ) e “sem explicação aparente” ( 29 de março 2011).

TR - e quantos autores estão incluídos?

grm - nesta Antologia ,encontram.se publicados poemas de 140 autores.

TR - penso que não é a primeira vez que seus poemas são publicados em antologias... já houve outras publicações?

grm - e pensa muito bem! de facto ,desde 2003 tenho poemas editados ( em Portugal e em Espanha ) no Ciberespaço ,em Revistas Literárias ,Colectâneas e em outras Antologias ,a saber:
2003, O Fulgor da Língua e o Estado do Mundo – ciberpoema , integrado em Coimbra Capital da Cultura;
2006, Inquietação e Poiesis XIV ,ed. Minerva;
2007, Poiesis XV ,ed. Minerva ;I Antologia de Poetas Lusófonos e Revista Litterarius , ed. Folheto & Design, Lda;
2009, Os Dias do Amor ,ed. Ministério dos Livros ;Revista Oficina da Poesia ,nº 12 ( Universidade de Coimbra ), ed. Palimage , e ,Entre o Sono e o Sonho ,II Vol. ,Chiado Editora;
2009//2010, Diálogos com a Ciência ( Universidade do Porto );
2010, SULscrito ,nº 3 , ed. 4Águas e Cuadernos Telira ,nº 13 , ed. Caja de Burgos;
2011, Se Lo Dije A La Noche - Poesia - Juan Carlos Garcia Hoyuelos ,( Burgos ) e IV Antologia de Poetas Lusófonos , ed. Folheto & Design, Lda;
2012, Antologia de Homenagem a Amato Lusitano ,Câmara Municipal de Castelo Branco ( no prelo ) e Antologia "Um Poema para Albano Martins", Ed. Labirinto ( no prelo ).

TR - além da poesia, escreve outro tipo de textos? (quais, onde)
       - está a trabalhar nalgum projecto actualmente?

grm - sim sim! muito embora entre a poesia e mim haja uma ligação uterina fortíssima que vem de há muito ,todavia ,com alguns interregnos ,mormente ,nas décadas de 80 e 90 do séc. passado ,onde a investigação me ocupou ,exclusivamente ,com trabalhos que vieram a ser mencionados ,na época ,por alguns autores ,académicos e estudiosos ,gosto de ousar.me na poesia visual ,na prosa poética e no conto ,e ,faço.o ,em revistas ,como foi o caso do “Letras e Letras” ,onde cheguei a ser correspondente redactorial ,na década de 80 do séc. XX ,como representante ,no Algarve ,da Fundação Natália Correia ,e ,como responsável pela edição da Revista Litterarius ,onde pautam alguns textos da minha autoria .hoje ,aceito participar em projectos a quatro mãos e aventuro.me em “textos rasurados” ,ao sabor do momento ,como é o caso da minha colaboração mensal no Terra Ruiva .a blogosfera ,porém ,é o meu domínio preferido ,e ,respondendo à sua pergunta se ,actualmente ,me encontro a trabalhar nalgum projecto, digo.lhe que sim que me encontro ,qual crisálida ,numa fase de amadurecimento e selecção da minha obra – ensaio ,lírica e prosa poética - a fim de publicá.la on-line ( ebooks ) ,começando por essa arte nobilíssima a que chamamos POESIA .o imenso respeito que a mesma me suscita tem.me levado a experiências diversas ,cujos resultados têm sido bem honrosos ,mormente ,com a escolha, por exemplo ,do meu livro .delete.me. para tese de um doutoramento.

TR - quando começou a escrever? e como descreveria a sua relação com o acto de escrever?

grm - comecei a escrever quando ,um dia ,já bem distante ,me ofereceram um lápis e com ele apontei a lua .disseram.me que era feio apontar .então ,qual transgressora nata ,tracei uma linha entre as duas e comecei ,diariamente ,a preenchê.la com palavras e palavras e mais palavras ,até criar aquela ligação uterina de que lhe falei ……
descrever a minha relação com o acto de escrita? minha querida amiga ,um acto de amor ,pratica.se ,não se descreve .satisfá.la a resposta? sei que não ,mas dos vagamundos não se rezam histórias……

………..e ,à laia de fim de entrevista ,permita.me que ,de forma sucinta ,mencione outras escritas:

1.PUBLICAÇÕES:
- “Notícia Informativa sobre a Cidade de Silves. Subsídios para a sua História”, brochura publicada pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Silves.
- “Silves Histórica”, artigo publicado na Revista Tribuna do Algarve.
- “Notícia Histórica sobre a Sé de Silves. Do Cartório Quinhentista ao Actual Arquivo Paroquial”. Congresso do Algarve.
- “O Pelourinho de Silves”, com prefácio do Académico Prof. José António Pinheiro e Rosa. Congresso do Algarve.
- “A Imprensa no Concelho de Silves. 110 anos de Actividades Jornalísticas”. Congresso do Algarve.
- “A Antiga Toponímia de Silves. Co-relação com os Actuais Topónimos”. Congresso do Algarve.
- “A Presença dos Judeus no Algarve”, artigo publicado na Revista “Correio do Algarve”.
- “1189-1989. Comemorações Centenárias da Conquista de Silves”, artigo publicado na Revista “Tribuna do Algarve”.
- “O Castelo de Silves” palestra apresentada em Silves e publicada no Boletim da Junta Directiva da APAC.
- “Algumas Achegas para o Levantamento dos Usos e Costumes de Silves. Suas Tradições” – alguns Capítulos encontram-se publicados nos Livros de Actas dos Congressos do Algarve.
- “Breve Síntese Histórica sobre a Cidade de Silves. Estudo Cronológico”, artigo publicado no jornal ALFANGE.
- Colaboração no artigo “Sun, Sea and History; Portugal,s Algarve”, de Geoffrey Moorhouse, publicado no “Traveler National Geographic”, vol II, number 4, Winter 1985/86.
- “O Teatro Gregório Mascarenhas”, artigo publicado no nº 3 da Revista “O Mirante”, Dezembro de 1991.
- “O Actual Edifício dos Paços do Concelho de Silves”, artigo publicado no nº 4 da Revista “O Mirante”, Março de 1992.
- “Casa-Museu João de Deus; O Homem, O Cidadão, o Poeta ou um Processo de Memória e Morte”, artigo publicado no nº 6 da Revista “O Mirante”, Março/Junho de 1993.
- “Algumas Considerações muito inoportunas… sobre Democracia e Solidariedade”, idem.
- “Silves…Uma Viagem ao Passado”, artigo publicado na Revista Algarve/Andalucia, nº 3, Outubro de 1998.
- “Casa Museu João de Deus”, artigo publicado na Revista Algarve/Andalucia, nº 5, Janeiro/Fevereiro de 1999.
- “Casa Museu João de Deus. O Futuro construído em Memória”. Congresso do Algarve.
- “A Ludoteca. Casa Museu João de Deus”. 4ª Conferência Nacional sobre Ludotecas. Oeiras, Maio de 2001.
- ”João de Deus ,Trajectos - Do Grés à Arte da Escrita” – coordenação geral, Março de 2010.

2.TRABALHOS MEUS CITADOS EM OBRAS DE OUTROS AUTORES
- O Pelourinho de Silves, sua classificação e possível datação, in “Levantamento Arqueológico-Bibliográfico do Algarve”, de Mário e Rosa Varela Gomes, Ed. Secretaria de Estado da Cultura, Faro, 1988.
- Levantamento dos Usos e Costumes de Silves. Suas Tradições, in “Guia da Cidade de Silves”, de Manuel Castelo Ramos e António Baeta de Oliveira, 1997.
- Algarviana, in “O ALGARVE. Da Antiguidade aos nossos dias: elementos para a sua história”, coordenação de Maria da Graça Maia Marques, Ed. Colibri, Lisboa, Abril de 1999.
- Notícia Histórico-Informativa sobre a Cidade de Silves, in “Museu da Cortiça da Fábrica do Inglês. Exposição Permanente. Estudos. Catálogo”, coordenação de Jorge Custódio e Manuel Ramos, Ed. Fábrica do Inglês, S.A.., Silves, 1999
- Levantamento dos Usos e Costumes de Silves. Suas Tradições, in “Museu da Cortiça da Fábrica do Inglês. Exposição Permanente. Estudos. Catálogo”, coordenação de Jorge Custódio e Manuel Castelo Ramos, Ed. Fábrica do Inglês, S.A.., Silves, 1999



* entrevista concedida no dia 9 de janeiro de 2012 ,por Gabriela Rocha Martins ,ao jornal mensal Terra Ruiva

01/01/2012

Texto sobre o «Acordo Ortográfico»



Quando eu escrevo a palavra acção, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o C na pretensão de me ensinar a nova grafia.

De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim.

São muitos anos de convívio.

Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes CCC's e PPP's me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância.

Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: - não te esqueças de mim!

Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí.

E agora as palavras já nem parecem as mesmas.

O que é ser proativo?

Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o R, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato.

Caíram hífenes e entraram RRR's que andavam errantes.

É uma união de facto, e para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.

Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os EEE's passaram a ser gémeos, nenhum usa (^^^) chapéu.

E os meses perderam importância e dignidade; não havia motivo para terem privilégios. Assim, temos janeiro, fevereiro, março, são tão importantes como peixe, flor, avião.

Não sei se estou a ser suscetível, mas sem P, algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos.

Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.

Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do C não me faça perder a direção, nem me fracione, e nem quero tropeçar em algum objeto.

Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um C a atrapalhar.

Só não percebo porque é que temos que ser NÓS a alterar a escrita, se a LÍNGUA É NOSSA ... ?! ?! ?!


Os ingleses não o fizeram, os franceses desde 1700 que não mexem na sua língua e porquê nós?

Será que não pudemos, com a ajuda da troika, recuperar do deficit na nossa língua?

Ou atão deichemos que os 35 por cento de anal fabetos fassão com que a nova ortografia imponha se bué depréça!

Email de Artur Martins in «O BALUARTE de Santa Maria», 22.12.2011