24/03/2012

um rasgo de mulher sentada dentro da chuva*



sairei porta fora com um saco de poemas
na mão e
deixá.los.ei à porta do primeiro vagamundo
que encontrar certa de que com eles cobrirei
o ruído deixado pelos carros que percorrem
a marginal dos sonhos
por vezes acho.me num torvelinho de entrar
vida a dentro trocando ditames por um pedaço
de ilusão ou
prendo.me à sombra de um regaço se o fio de
água que escorre de uma nuvem me deixar
fixa na figura que se esvai esguia em solidão
sou um murmúrio apodrecido no vento suão
ou um pássaro que segreda a um ouvido a
última balada que um dia há.de compor
diagnostico.me como uma palavra prenha de
alarmes e escorrego por uma brevíssima gota de
água ao encontro das marés vivas
há sinais de passos oblíquos no asfalto molhado e
a ignomínia da dor provoca.me um sentimento
intransponível de tristeza maior é ( então) que
acendo um cigarro na labareda do anoit'ser
antes de parir
o último poema vomitado por Cronos

um pássaro amarelo desfeito em escamas
cola.se ao meu silêncio


_____________________________________________
*poema inserido na Antologia “100 Poemas para Albano Martins” ,da Editora Labirinto


20/03/2012

Eis a Primavera!



Fotopoema





Quando vier a Primavera




Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro



Glória





Depois do Inverno, morte figurada,
A Primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.

Miguel Torga


Era preciso agradecer às flores




Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura

Sophia de Mello Breyner



fotos: Augusto Mota / a exuberância das ameixieiras em flor.

19/03/2012

Texto transversal





Silo da EPAC





                                            O Tejo
                                            Tem na boca,
                                            Encostada ao lábio inferior,
                                            Uma flauta de Pã.
                                            Trigo!
                                            Pão!
                                            Coração do sol,
                                            Suor do sul,
                                            Sangue em flor
                                            Feito grão.
                                            E agora,
                                            Há fome, há?
                                            Não, que não há!

Pedro Frazão, Lisboa, anos 80.

18/03/2012

As letras do meu afecto




A palavras não são meros conjuntos de letras e fonemas,
 são também a memória que trazem dentro delas.



Por acordo com a direcção do «Diário do Alentejo», as crónicas que a partir de agora partilharei nestas páginas não seguem o novo Acordo Ortográfico. Não por caturrice cinquentenária ou porque seja avesso à inovação, mas muito simplesmente porque este (des)Acordo é desonesto nos princípios que proclama, inútil nos fins a que se propõe e criminoso na forma como pretende alcançá-los.

Destina-se a coisa a unificar o que não pode nem deve ser unificado, e o facto de não conseguir fazê-lo é a razão primeira da sua inutilidade. Com ou sem o AO, um facto em Portugal continua a ser um fato no Brasil. E o fato que eu use não há-de ser diferente do terno que vestem os meus amigos do Rio e de São Paulo. Tal como, se lá for, não duvido que continuarei a ter boa recepção. Mas se os receber em minha casa, por vontade do AO não poderei proporcionar-lhes mais do que uma modesta receção.

De disparate em disparate, nem o nome dos meses escapa à fúria alegadamente normalizadora. Querem com isto que Abril passe a ser apenas abril, haja vinho novo em setembro e o Natal seja celebrado em dezembro. E qual é a utilidade de tal gesto?

Não é por os ingleses subirem de lift e os americanos de elevator que ambos deixam de chegar ao mesmo destino. Os espanhóis viajam de coche e os cubanos andam de carro, eventualmente da mesma marca, mas com certeza de anos diferentes. E entendem-se muito bem.

O AO não serve porque não presta, e não presta porque não faz sentido. A Língua defende-se preservando a sua diversidade, porque ela reflecte a história dos povos que a falam. As palavras não são meros conjuntos de letras e fonemas, são também a memória que trazem dentro delas. Memória delas e das coisas que designam, e das mulheres e dos homens que a falam. Não basta, pois, conhecer as palavras todas, é preciso saber como se usam.

O AO confunde muito mais do que simplifica, por exemplo ao promover o uso facultativo de uma ou de outra variante. Mas ninguém perguntou aos espectadores se queriam ser transformados em espetadores. E é o que se vê: tolejar converteu-se num desporto alternativo, a comunicação tornou-se mais difícil e a Língua ficará seriamente ferida se a prossecução do crime não for interrompida. E ainda pode sê-lo: uma iniciativa legislativa de cidadãos está presentemente em curso e as hipóteses de ser bem sucedida dependem apenas da vontade de todos nós.

As línguas têm o seu próprio tempo, as palavras crescem, vivem, e às vezes morrem, mas isso deve acontecer no respeito pelo ciclo natural do desenvolvimento humano. Uma língua amputada artificialmente e sem rigor nem sabedoria torna os povos que a usam inevitavelmente mais pobres, porque menos cultos. E um povo menos culto é um povo menos livre.

No apontamento sobre os lugares de Zeca Afonso que aqui publiquei há duas semanas, o AO retirou o c da palavra afecto. E eu gosto dele, entre outras razões porque me ajuda a abrir a vogal anterior. E porque aquele c é parte do código genético daquela palavra, e não há razão para que seja eliminado. No que depender de mim, farei tudo para poder continuar a usar todas as letras do meu afecto.

Viriato Teles, in «Diário do Alentejo», 16.Mar.2012

www.viriatoteles.net

06/03/2012

Texto transversal