ISTO DAS CORES
Na
mesa em frente à minha, um homem doente. É quase ’inda rapaz: uns bons (ou
maus) quinze anos deve ele perfazer a menos dos meus. O rosto dele é um clarão
sanguíneo. A moção gestual dele é muito lenta – como se até o ar lhe doesse. De
que sofrerá? De estar vivo naquele corpo, talvez. Tomou (mas tão lentamente!)
um copo alto de café-com-leite. Ei-lo a respirar do esforço. O copo de água
atira-lhe quatro comprimidos (um azul, um verde, um rosa e um prateado) para o
labirinto gástrico (vermelho-negro). O olhar dele é feito de duas ilhotas
pretas sobre nácar coagulado. A roupa é de lavada decência – alguém (a mãe?)
trata dele ainda. Usa ao pescoço um fio religioso que lhe pesa na cerviz: Deus
custa quilogramas na aflição.
Chega entretanto à esplanada a minha pomba das sete e dez. Veio com a alba no bico. É lustrosa fêmea: maciça, virente-plúmbea, duas graciosas dedadas de tinta permanente na junção posterior das asas. Cabeça muito viva, mui latina, mui ladina. Mesmeriza-me sem pudor: quer do comer que sabe ela lhe trago eu no saco. Faço-a esperar um pouco: estou a escrever para o meu Leitor. Ela circunvagueia como um polícia aborrecido da vida. Pica do chão, por desfastio, uma migalha invisível. Sinto a indignação a crescer nela. Mas, por me faltarem dois parágrafos crónicos, haverá de esperar um pouco mais.
Quando dela aparto o olhar, descubro, para serena mágoa minha, que se foi já embora o moço do atávico coração. Ei-lo longe já além, além passando milimetricamente a passadeira. Causa ele uma fila nervosa de carros impacientes: ser automobilista é não cuidar do coração. Perdi-o. O meu Leitor perde-se dele. Não voltaremos, talvez a escreve-lê-lo. Resta-nos a pomba. São sete e dezassete da manhã, sete minutos a demorámos já.
Vou ao saco. Tenho arroz para ela. Quatro singelos bagos tenho eu para ela: um azul, um verde, um rosa e um todo de prata – como só ela.
Tomou-o cedo de mais a terminação: o meu Leitor e
eu, é a um moribundo que assistimos.
Repórter
coscuvilheiro, junto da patroa do botequim indago dele. Diz-me ela que o rapaz
é de família de bem & de bens. Mais me conta que, de quatro filhos, é ele o
último. Último duas vezes: porque dos quatro o mais novo e porque único desde
que, aos três outros, os finou aquela maleita irreciclável da turbina cardíaca.Chega entretanto à esplanada a minha pomba das sete e dez. Veio com a alba no bico. É lustrosa fêmea: maciça, virente-plúmbea, duas graciosas dedadas de tinta permanente na junção posterior das asas. Cabeça muito viva, mui latina, mui ladina. Mesmeriza-me sem pudor: quer do comer que sabe ela lhe trago eu no saco. Faço-a esperar um pouco: estou a escrever para o meu Leitor. Ela circunvagueia como um polícia aborrecido da vida. Pica do chão, por desfastio, uma migalha invisível. Sinto a indignação a crescer nela. Mas, por me faltarem dois parágrafos crónicos, haverá de esperar um pouco mais.
Quando dela aparto o olhar, descubro, para serena mágoa minha, que se foi já embora o moço do atávico coração. Ei-lo longe já além, além passando milimetricamente a passadeira. Causa ele uma fila nervosa de carros impacientes: ser automobilista é não cuidar do coração. Perdi-o. O meu Leitor perde-se dele. Não voltaremos, talvez a escreve-lê-lo. Resta-nos a pomba. São sete e dezassete da manhã, sete minutos a demorámos já.
Vou ao saco. Tenho arroz para ela. Quatro singelos bagos tenho eu para ela: um azul, um verde, um rosa e um todo de prata – como só ela.
Crónica de Daniel Abrunheiro, in "O Ribatejo", de 4 de Setembro de 2014
Ilustração: Arte postal, Miguel Flávio, flo-master e tinta da china sobre postal dos CTT, 1963
Editado por augusto mota
Editado por augusto mota
1 comentário:
Belo, belo postal. Obrigado: enriquece a crónica.
Enviar um comentário